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domingo, 30 de outubro de 2016

Resenha nº 82 - A Louca da Casa, de Rosa Montero

Resultado de imagem para livro a louca da casaTítulo: A louca da casa
Autora: Rosa Montero
Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman
Edição: 2ª
Editora: HarperCollins
Copyright: 2003
ISBN: 978.85.209.4061-7
Gênero Literário: Romance (?)
Bibliografia da autora (incompleta): Crónica del desamor (1979); La funcíon Delta (1981); Te trataré como a uma reina (1983); Amado amo (1988); Temblor (1990); Bella y oscura (1993); La hija del canibal (1997); El corazón del tártaro (2001); La loca de la casa (2003); Historia del Rey Transparente (2005); Instrucciones para salvar el mundo (2008); Lágrimas em la lluvia (2011); La ridícula idea de no volver a verte (2013); El peso del corazón (2015); La carne (2016). Ganhou vários prêmios, entre os quais: Premio de la Crítica de Madrid, em 2014, por La ridícula idea de no volver a verte e Premio José Luis Sampedro, em 2016, pelo conjunto de sua obra.

Rosa Montero nasceu em 3 de janeiro de 1951, em Madri. É consagrada jornalista e escritora espanhola e trabalha no jornal El País desde 1977. Realizou várias entrevistas importantes e começou a escrever na infância, quando sofreu tuberculose dos cinco aos nove anos. Inscreveu-se na Faculdade de Filosofia aos 17 anos, tendo, no ano seguinte, mudado para a Escola de Jornalismo. Ao mesmo tempo, fez teatro independente. A partir de 1976, passou a trabalhar exclusivamente para o já citado diário espanhol. Dois anos depois, ganhou o Prémio Mundo de entrevistas. Lançou seu primeiro livro em 1979, Crónica del desamor. Desde que seu marido morreu, Rosa Montero passa alguns meses por ano num condomínio na cidade de Cascais, em Portugal. No Brasil, alguns de seus livros foram traduzidos, como Paixões, Histórias de Mulheres, Muitas coisas que Perguntei e Algumas que disse, A Louca da Casa, História do Rei Transparente, A Filha do Canibal, Instruções para salvar o mundo e Lágrimas na chuva.

Ao receber meu kit da TAG - Experiências Literárias, já no começo de A Louca da Casa observei que seria difícil resenhar este livro. Por quê? Se o leitor se deu ao trabalho de prestar atenção nos dados catalográficos acima, verá classificado como gênero literário a palavra “romance”, seguida de um ponto de interrogação posto logo adiante, entre parênteses. Coloquei o sinal entre parênteses exatamente por questionar a classificação do livro, em sua ficha. Não é, exatamente um romance; pelo menos não no sentido corrente.
Um romance é uma narrativa que trabalha com vários núcleos dramáticos que se encadeiam, formando um enredo. A Louca da Casa não tem esta estrutura. Trata de vários núcleos dramáticos, mas a ligação entre eles é frouxa; não que seja um defeito, é antes uma escolha da autora. A história é composta de várias colagens, eventos, fatos, memórias e sensações.
Uma narrativa um tanto autobiográfica, mas de uma autobiografia nem sempre fiel aos fatos vividos, como Rosa Montero vai deixar claro no post scriptum do livro:
“Tudo o que conto neste livro sobre outros livros ou outras pessoas é verdade, quer dizer, responde a uma verdade oficial documentalmente verificável. Mas receio que não possa garantir o mesmo sobre o que se refere à minha própria vida. Porque toda autobiografia é ficcional, e toda ficção, autobiográfica, como dizia [Roland] Barthes. ”
A autora, portanto, se de um lado, acrescenta dados autobiográficos não muito confiáveis, de outro, adiciona dados confiáveis de vários escritores, como por exemplo:
“Por isso, Stevenson, que tinha uma relação muito fluida com seus brownies[1], pôde sonhar seu O médico e o monstro, uma história que hoje todo mundo conhece embora quase ninguém tenha lido o romance. E por que foi tão importante esse relato, por que passou a fazer parte da cultura popular, da representação convencional do mundo? Porque Stevenson, com seu livro, descreveu aquilo que todos intuímos mas não podíamos saber porque não tínhamos palavras para nomear: que os seres humanos somos muitos dentro de cada um de nós; que estamos dissociados, que como diz Henri Michaux numa frase formidável, “o eu é um movimento na multidão”. (página 76)
Rosa faz várias reflexões sobre o ato de escrever, sobre outros escritores e suas relações com suas obras. Dotada de autocrítica ferina, suas observações, às vezes, recaem sobre ela própria, pois também escritora:
“Não conheço nenhum romancista que não sofra do vício descontrolado da leitura. Somos, por definição, bichos leitores. Roemos as palavras dos livros incessantemente, como a carcoma emprega todo o seu ser ao devorar a madeira. Além disso, para aprender a escrever é preciso ler muito; por exemplo, George Eliot tinha uma vastíssima cultura e lia Homero e Sófocles em grego e Cícero e Virgílio em latim: eu sou incapaz de semelhante proeza e esta pode ser uma das razões pelas quais escrevo pior que ela. Em seu precioso ensaio Letra ferida, Nuria Amat propõe aos escritores uma pergunta cruel que consiste em decidir entre duas mutilações, duas catástrofes: se, por alguma circunstância que não vem ao caso, você tivesse que escolher entre nunca mais escrever ou nunca mais ler, o que escolheria? Nestes últimos anos, formulei esta inquietante questão, na base da brincadeira, a quase todos os autores com quem me encontrei pelo mundo afora e descobri duas coisas interessantes. A primeira é que a esmagadora maioria deles, pelo menos noventa por cento e possivelmente mais ainda, escolhe (escolhemos: eu também) continuar lendo. ” (páginas 126/127)
A Louca da Casa é uma leitura extremamente prazerosa, um texto fácil, que conversa conosco. Vai arrolando coisas, em tom assim, de brincadeira, de crítica às vezes. Livro fino, de 172 páginas, pode ser lido quase que de uma sentada só. Sem esforço.
Quando comecei a leitura, o título me era estranho: por que a autora o havia escolhido? E, a partir de certa altura da narrativa, as razões foram ficando muito claras, até fazer o leitor concordar: não poderia ser outro o título: A Louca da Casa. É um livro cujo assunto é a imaginação, a criatividade, a “loucura” proporcionada pela imaginação criadora. Os escritores e, de quebra, todos os artistas, são vistos por muita gente como seres estranhos, prestigiados conforme o caso, mas estranhos.
Não é à-toa que os governos ditatoriais de qualquer parte do mundo veem com maus olhos essa atividade humana, a da criação artística. É o campo do incontrolável. É o campo das ideias subjacentes, metáforas enlouquecidas. No caso dos escritores, é o lugar do texto que não se deixa apreender por um sentido apenas, podendo autorizar várias leituras, todas elas coerentes com determinada proposta interpretativa, autorizada pelo texto. E aqui, não é demais lembrar o falecido e genial Umberto Eco, quando ele nos diz que os limites da interpretação são exatamente os do texto. Quer dizer, não posso elaborar qualquer proposta interpretativa, não validada pelo próprio objeto de análise, mas posso, sem dúvida, elaborar uma grande quantidade: a obra aberta.
Enfim, leitor, esse é um livro original, originalíssimo. Há um fio tênue que amarra tudo, como disse no início. Esse fio é a criatividade, a imaginação. Basta lembrarmos: artistas de vanguarda nem sempre são aceitos ou compreendidos pelo público e pela crítica de sua época; muitas vezes, são necessários anos se passarem, para ele então ser considerado como verdadeiro artista.
Ulysses, de James Joyce, continua incompreendido de muita gente. John Williams não vendeu nada de seu absolutamente fantástico livro Stoner (já resenhado neste blog) e o livro teve de esperar cinquenta anos para alcançar sucesso de público e de crítica no ocidente. Depois de John morto. Picasso foi incompreendido, com seus traços vanguardeiros.
Enfim, assim é a arte!




[1] Brownies: Eram duendes marrons da mitologia da Irlanda. Viviam nas casas e, se bem tratados, auxiliavam os moradores com as tarefas domésticas, enquanto os humanos dormiam. (consulte o blog filhoocultodosdeuses.blogspot.com.br/2011/03/seres-da-mitologia-celta-e-germanica.html)

domingo, 23 de outubro de 2016

Resenha nº 81 - Azul-corvo, de Adriana Lisboa

Resultado de imagem para livro azul corvo adriana lisboaTítulo: Azul Corvo
Autora: Adriana Lisboa
Editora: Alfaguara (Ed. Objetiva)
Edição: 1ª edição, 2014
Copyright: 2010
Gênero Literário: Romance
Bibliografia da autora: Romances – Os fios da memória, 1999; Sinfonia em branco, 2001; Um beijo de colombina, 2003; Rakushisha, 2007; Azul-corvo, 2010; Hanói, 2013; Poesia – Parte da paisagem, 2014; Contos – Caligrafias, 2004; Contos populares japoneses, 2008; O sucesso, 2016; Livros infantis e juvenis – Língua de trapos, 2005; O coração às vezes para de bater, 2007; A sereia e o caçador de borboletas. Participação em antologias literárias e coletâneas de contos: 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (org. Luiz Ruffato), 2004; Prosas cariocas (org. Marcelo Moutinho e Flávio Izhaki), 2004; Aquela canção, 2005; Rio literário (org. Beatriz Resende), 2005; Contos que contam, 2005; Lusofônica – La nuova narrativa in língua portoghese, 2006; Antología de cuento latinoamericano, 2007; Inimigo rumor nº 19 (revista poesia), 2007; Dicionário amoroso da língua portuguesa (org. Marcelo Moutinho e Jorge Reis-Sá), 2009; Brazil: A traveler’s literary companion (org. Alexis Levitin), 2010; Brasilien berättar: Ljud av steg (Estocolmo), 2011; Amar, verbo atemporal (org. Celina Portocarrero), 2012; Revista Granta em português, vol. 1: Medidas extremas, 2013.
Prêmios: José Saramago, por Sinfonia em branco, 2003; Prêmio Moinho Santista, pelo conjunto da obra, 2005; Prêmio e Autor Revelação da FNLIJ - Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, por Língua de Trapos, 2006; Altamente recomendável pela mesma FNLIJ, por Língua de trapos e Contos populares japoneses; finalista do Prêmio Jabuti, categoria romance, com Um beijo de colombina, 2004 e Rakushisha, 2008; Hay Festival, selecionada entre os 39 mais importantes autores latino-americanos até 39 anos; finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa, Portugal, com Rakushisha; finalista do Prix des Lectrices de Elle Magazine, França, por Sinfonia em branco; finalista do PEN Center USA Literary Awars, por Sinfonia em Branco, 2011; finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio  Zaffari & Bourbon, por Azul-corvo, 2011; finalista do Prêmio São Paulo de Literatura por Hanói, 2014.


Adriana Lisboa nasceu no Rio de Janeiro, em 1970 e cresceu em sua cidade natal. Depois, mudou-se para a França, em Paris e Avignon; a partir de 2007 vive a maior parte do tempo nos Estados Unidos, numa localidade próxima a Boulder, no Colorado. Seus livros foram traduzidos para vários idiomas: inglês, francês, espanhol, alemão, árabe, italiano, sueco, romeno e sérvio e publicados em catorze países. Pelo seu romance Sinfonia em branco, como consta de sua bibliografia acima, ganhou o Prêmio José Saramago, entre outros galardões literários. Adriana formou-se em música pela Uni-Rio, foi cantora de MPB na França, então com dezoito anos; mais tarde, abraçou a carreira de professora de música no Rio e atuou, também como tradutora. Fez mestrado em literatura brasileira e doutorado em literatura comparada pela UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora visitante no Nichibunken, em Kyoto, em 2006, na Universidade do Novo México, em 2007 e na Universidade do Texas, em Austin, de 2008 a 2009. Traduziu autores como Cormac McCarthy, Margaret Atwood, Stefan Zweig, Robert Louis Stevenson, Jonathan Safran Foer, Emily Bronte e Maurice Blanchot. Sua novela O coração às vezes para de bater foi adaptada para o cinema, no Brasil, por Maria Camargo, num premiado filme de curta-metragem.

Algumas coisas chamam nossa atenção, na bibliografia de Adriana Lisboa: além da quantidade de prêmios importantes, que atestam claramente a qualidade literária do seu trabalho, a intensa participação em diversas antologias pelo mundo e seu gosto pela cultura japonesa.
Eu não a conhecia, fato de que me penitencio agora, ao resenhar este excelente Azul-corvo. Tomei contato com o nome Adriana Lisboa por meio do pessoal da TAG – Experiências Literárias, quando recebi o kit de maio/2016, pois Adriana foi a curadora do mês e indicou-nos O caminho estreito para os confins do norte, de Richard Flanagan – já resenhado neste blog.
A protagonista de Azul-corvo é Evangelina, mais conhecida pelo apelido de Vanja. É uma adolescente de treze anos e deixa o Rio de Janeiro para ir morar num subúrbio de Denver, no Colorado, EUA. Sua mãe havia morrido e ela parte em busca do pai, do qual não sabe muitas coisas. Havia escrito a ele (Fernando) uma carta, utilizando o endereço de que dispunha; ele respondeu, dizendo que sim, poderia recebê-la em terras americanas. Já em contato com ele, Vanja fica sabendo: Fernando, seu pai, não é seu pai. A pedido de sua mãe, ele registrara seu nome, na Certidão de Nascimento de Evangelina, como seu progenitor. Daí para frente, a vida de Vanja será a busca da sua própria identidade, de seu pai biológico verdadeiro, um tal de Daniel, com quem sua mãe tivera uma rápida relação.
Este não é um spoiler; é apenas a trama básica, sobre a qual se constituirá o romance Azul-corvo. Muitas e muitas peripécias vão acontecer, Vanja encontrará outras personagens, como Elisa, Isabel, Carlos, Florence; saberá com mais minúcias do passado de Fernando, a quem se afeiçoa.    
O personagem Carlos explica à Vanja que existem dois tipos de corvos, o corvus corax (raven, em inglês) e o corvus brachyrhynchos (crow, em inglês). O raven tem características mais individuais, enquanto o crow é mais sociável. Mas os crows possuem uma característica mais interessante: quando jovens, seus olhos são azul-claros, escurecendo depois. É essa mudança (ou indefinição) que liga a característica da ave ao tema do livro.
A simplicidade da trama é um achado. O romance não se caracteriza como uma obra de ação, mas um trabalho de reflexão. O que move Vanja, e também afeta os outros personagens é a busca da identificação. Vejamos um pequeno trecho:
 “Eu tinha treze anos. Ter treze anos é como estar no meio de lugar nenhum. O que se acentuava devido ao fato de eu estar no meio de lugar nenhum. Numa casa que não era minha, numa cidade que não era minha, num país que não era o meu, com uma família de um homem só que não era, apesar das interseções e das intenções (todas elas muito boas), minha.
Os nós dos dedos ficavam esbranquiçados, querendo rachar. Era estranho. Eu parecia me transformar progressivamente em outra coisa, como se estivesse passando por uma lenta mutação.” (página 16)
O tom que perpassa o livro é o de uma amargura contida, mas que, estranhamente, não impossibilita algo de esperança de um futuro. E um dos recursos literários de que se vale Adriana Lisboa – ela é, sem dúvida, uma escritora que sabe manejar muito bem vários deles – é a ironia:
“Quanto a mim, quando alguém me perguntava o que eu gostaria de ser quando crescesse só me passavam pela cabeça atividades que se desenrolassem numa faixa de areia, diante de alguma arrebentação. Vendedora de empada? Assim, o ano compartilhado entre Copacabana e a Barra do Jucu, com a máquina possante chamada Fiat 147, era cem por cento conveniente. E fora Janis Joplin viva, nada mais me faltava. Nunca.” (páginas 46/47)
Permito-me transcrever outro trecho, pois, ao mesmo tempo em que ele me servirá para dar ao leitor uma ideia do estilo detalhista da autora, ainda nos dará a indicação do tempo em que Vanja vivia (ainda pequena) no Brasil:
“Os anos eram os noventa e ela votava para presidente da República, todos os brasileiros maiores de idade votavam para presidente da República, ainda estavam aprendendo a manejar esse grau de civismo, mas um dia chegariam lá, ela dizia. Chegaríamos lá. Se eu não fosse uma criança tão pequena, à época, poderia ter perguntado como, se a primeira coisa que o primeiro presidente eleito democraticamente em três décadas tinha feito, em seu primeiro dia de governo, havia sido confiscar o dinheiro que as pessoas tinham na caderneta de poupança. Segundo ele, ia devolver depois. Isso aconteceu um ano antes da nossa volta ao Brasil e minha mãe lavava as mãos, mas Elisa certamente esbravejou e disse palavrões que eu poderia ter registrado para futura referência, se estivesse presente e tivesse condições de entendê-la. Mas, fosse como fosse, eles eram adultos e deviam saber o que estavam fazendo, elegendo-se, confiscando-se, xingando-se.” (páginas 41/42, destaques da autora)
Fernando havia sido um militante na Guerrilha do Araguaia. De acordo com a Wikipédia, a “Guerrilha do Araguaia foi um movimento guerrilheiro existente na região amazônica brasileira, ao longo do rio Araguaia, entre fins da década de 1960 e a primeira metade da década de 1970. Criada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), tinha por objetivo fomentar uma revolução socialista, a ser iniciada no campo, baseada nas experiências vitoriosas da Revolução Cubana e da Revolução Chinesa.”
Vanja se apodera dos relatos de Fernando e nos repassa; a participação de Fernando nos fatos narrados sobre a Guerrilha do Araguaia vai ser o que justificará a permanência dele lá nos Estados Unidos. Os guerrilheiros trouxeram vários benefícios para a população pobre da região: assistência médica gratuita, alfabetização, enquanto recebiam treinamento eficiente; logo, vários dos militantes eram capazes de sobreviver sozinhos na selva, portando apenas armas, munição, sal e farinha.
Há no livro todo um sentimento de não pertencimento a qualquer lugar; ao tomar imigrantes ilegais nos Estados Unidos, Adriana Lisboa acentua essa sensação, que se não chega a ser nomeada explicitamente pelos personagens criados, permeia a psique de todos eles. A família de Carlos é porto-riquenha, vive assustada com as intervenções policiais próximas a sua casa.
Fernando trabalha como vigia numa biblioteca pública, coisa que – raciocina Vanja em determinado trecho – é no mínimo estranho, pois se, como dizia o escritor argentino Borges, “sempre imaginei o paraíso como um tipo de biblioteca”, como então um lugar com status de paraíso poderia precisar de um vigia?
Azul-corvo é um livro absolutamente sensacional. Adriana Lisboa, uma escritora de mão-cheia, como diziam os antigos. Dá vontade de sair copiando trechos, deixar o texto falar por si e, por isso mesmo, o leitor há de ser paciente e me perdoará por mais uma transcrição (a última, prometo!).
Escolhi uma pequena parte, na qual outra característica do estilo lisboano fica bem evidente: o da palavra-que-puxa-outra-palavra, ou ideia-puxa-outra-ideia:
“Fui eu quem consegui nos tirar do corn maze. Fernando deixou tudo por minha conta. Carlos estava nervoso, com o mesmo nervosismo de uma criança pequena que vai ver pela bilionésima vez o lobo mau tentando enganar a Chapeuzinho. E que olhos grandes você tem etc. O drama se encena mesmo quando o desfecho já é sabido de cor. E você do mesmo jeito. É desse modo que as crianças testam o mundo, verificam se ele de fato vai dar sempre a mesma resposta para a mesma pergunta. E concluem  que sim. Mais uma das promessas falsas de campanha do mundo adulto. Sim, Carlos, somos coerentes. Cresça e veja você mesmo. ”  (página 145)
A referência feita à personagem Chapeuzinho Vermelho, de nossas histórias infantis evoca a visualização dos acontecimentos da própria história. (Esse processo mental é muito comum e se constitui em certo tipo de intertextualidade (um texto dialoga com outro, num jogo de espelhos).
A leitura de Azul-corvo foi repleta de prazer da boa leitura e gratas descobertas estilísticas. Livro destinado a várias releituras no futuro, por isso, vai a recomendação. Boa leitura, leitor amigo!

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Resenha nº 80 - Vidas Provisórias, de Edney Silvestre

Resultado de imagemTítulo: Vidas Provisórias
Autor: Edney Silvestre
Editora: Intrínseca
Copyright: 2013
Número de páginas: 242
Gênero Literário: Romance
ISBN: 978-85-8057-389-3
Romance Brasileiro
Bibliografia: Se eu fechar os olhos agora (2009), A felicidade é fácil (2011), Vidas Provisórias (2013) e Boa Noite A Todos (2014). Welcome to Copacabana (2016) é a sua primeira incursão na área do conto. Outras obras: Contestadores (entrevistas, 2003); Outros tempos (crônicas e memórias, 2002); Dias de cachorro louco (crônicas, 1995); Grandes entrevistas do milênio, 2009); em co-autoria, O livro das grandes reportagens e As melhores reportagens da Globo.
Edney Silvestre é apresentador do programa Globo News Literatura, no canal por assinatura Globo News. Nasceu em Valença, Rio de Janeiro, em 27/04/1950. É jornalista, apresentador de TV, escritor, documentarista; recebeu o prêmio Jabuti por Se eu fechar os olhos agora (Livro do Ano, em 2010) e Prêmio São Paulo de Literatura, como autor estreante. Na área jornalística, talvez a cobertura que mais lhe tenha tornado a imagem conhecida junto ao grande público foi a dos acontecimentos do 11 de setembro, nos EUA. Para os que não se lembram mais, foi quando os americanos sofreram um grande atentado, com a destruição das Torres Gêmeas (World Trade Center) em Nova Iorque, onde pereceram milhares de pessoas.
  Neste Vidas Provisórias há o retorno de seus personagens Paulo (de Se eu fechar os olhos agora) e Bárbara (de A felicidade é fácil). Estes dois seres estão separados geográfica e temporalmente. Paulo é um expatriado pelo regime da ditadura militar para o Chile e, posteriormente, para a Suécia, depois França. Já Bárbara vai ilegalmente para os EUA, ainda adolescente, com passaporte falso tentar a vida. Trabalha como faxineira e manicure.
  O livro apresenta uma interessante solução gráfica para as duas linhas de condução da trama. Temos, de um lado, “O Livro de Paulo”, em texto com tipos pretos e afastado em relação à margem interna; de outro, “O Livro de Bárbara, com tipos azuis e texto de tamanho reduzido em relação à margem inferior. As duas vidas correm paralelas sem se tocarem, até quase o final da obra.
  O romance trabalha a questão da perda da identidade. Paulo tem seu passado completamente apagado: documentos novos, identidade nova; Bárbara porta um passaporte falsificado e torna-se Barbara Jannuzzi, argentina de nascimento. Mas a questão da perda de identidade não se restringe a documentos. Como veremos, o problema é bem mais agudo. Paulo vive na Suécia e, apesar de não contar com o seu passado, mas com algo criado para apagar completamente sua existência no Brasil da ditadura, é um homem atormentado por suas próprias recordações. Tem dificuldades com o idioma sueco, não fala inglês, mas se apaixona por Anna, militante da Anistia Internacional:
What’s your name? ’, ela perguntou, enquanto o despia – primeiro, desenrolando o cachecol em torno do pescoço com pontas de barba escura, logo, desabotoando e tirando o sobretudo úmido de neve, depois o paletó, em seguida o boné –, na quarta língua em que tentava se comunicar. Ele não entendia sueco, como a maioria dos sul-americanos na reunião da Anistia Internacional em que o tinha conhecido, há algumas horas. Francês e alemão, os outros idiomas em que ela se movimentava com facilidade, tampouco tinham funcionado.
What’s your name, Brazilian guy?’ ela insistiu, com um sorriso de dentes perfeitos e hálito de cigarro.
‘Nelson’, ele mentiu, dizendo um dos muitos codinomes que utilizara nos últimos anos, enquanto dobrava o corpo para ela puxar o suéter demasiado largo, como as outras roupas de frio que lhe tinham sido doadas ao desembarcar em Estocolmo. ” (página 9)
  Barbara tem de abrir mão dos seus sonhos de fazer faculdade, de viajar por vários países. Ela foge do Brasil do governo Collor. Vive o medo, tão comum entre os imigrantes ilegais nas terras do Tio Sam, de ser descoberta, de ser presa pelo Departamento de Imigração. Faz faxina para sobreviver e sua clientela é composta de prostitutas brasileiras que trabalham em Atlanta, um homossexual e algumas americanas:
“Nem se dão ao trabalho de checar atentamente seu passaporte. Tudo é anódino na jovem que chega no voo lotado do Brasil: os cabelos castanhos presos em rabo de cavalo, o rosto pálido por trás dos óculos arredondados, as roupas em tons de cinza, o suéter de lã acrílica azul-marinho, o cachecol preto, o sapato baixo de couro preto, a bagagem de náilon preto na mão, a única mala de roupas, também preta, igualmente de náilon.
Carimbam o visto de entrada, chamam o brasileiro seguinte na fila, ela contorna a cabine, caminha na direção que indica Exit, a primeira palavra que abafa o medo de ser pega antes mesmo de entrar no país para o qual foge, escorraçada por tudo o que a faz sentir-se irrelevante e esmagada no Brasil. ” (página 13, não numerada)
  Enquanto Paulo, em Estocolmo, capital da Suécia, tem no aspecto amoroso, mais sorte, pois consegue viver com Anna e constituir uma família – que mais tarde se muda para Lausanne (ainda na Suécia), Barbara tem um amor impossível nos Estados Unidos. Em contrapartida, enquanto Barbara busca tornar-se neutra para não se expor, não ser descoberta, Paulo vive com os fantasmas do seu passado; passou por torturas, há um drama familiar que o envergonha.
  Edney Silvestre impõe ao seu romance um ritmo fragmentário, que torna o texto moderno, dotado de agilidade, mas não chega a ser o ritmo de uma história de ação, em que o leitor é quase surpreendido por ação nova a cada parágrafo. É mais contido, mais reflexivo, pois irá tratar dos problemas íntimos dos dois personagens envolvidos.
  Uma pequena amostra do que chamei de estilo fragmentário de Silvestre:
“Anna. Anna. Anna.
Pedi que soltasse o cabelo. Ou eu mesmo soltei seus cabelos. Tão bonita, tão bonita que parecia iluminada por dentro.
Anna.
Anna.
Anna. 
Por que não peguei seu telefone, seu endereço? Onde a encontrar?
Sou mais velha que você, ela me disse, I’m older than you, ela falou. Eu entendi. Older é o superlativo de old. Mais velha. You are just a boy, me lembro que ela me disse, um menino, my Brazilian boy, ela me chamou. Eu entendi. Eu gostei.
Bela. Tão bela quanto um pequeno milagre, se eu acreditasse neles.” (página 74)
  Engraçado como os livros têm momento certo para serem lidos. Quando tomei pela primeira vez o Vidas Provisórias nas mãos, iniciei a leitura e não passei da página 42. Ao retomá-lo, entretanto, desde o início, a leitura se tornou fluente. Em apenas dois dias, sem muita pressa, lá se foram as 234 páginas do texto.
  Li, em uma crítica – com a qual não concordo – que  o livro, perto do final, não atinge um crescendo para depois ser arrematado pelo desfecho. Bem sei que tais discussões estão longe do interesse do público, mas creio ser importante dizer algumas coisas. Tudo num livro deve ser significativo; não é como na vida, em que pessoas absolutamente casuais entram e saem de nossas vidas, sem afetá-las de qualquer modo. Personagens têm uma função dentro da obra literária.
  Assim, há um projeto, mesmo que o autor não se dê conta disso, não tenha botado um esquema no papel ou no computador, que vá seguir fielmente. Mas há um projeto, até porque o todo (o romance) terá de funcionar convincentemente.
  Vidas Provisórias tem como projeto tratar exatamente disso: vidas que, por um motivo ou outro, carecem de marcas próprias, de identidade e como esses personagens lidam com essa ausência identitária. Não há grandes lances emocionantes exatamente porque as vidas são provisórias, indefinidas. É um texto reflexivo.
  Claro está, não irá agradar a todos, como de resto, qualquer obra. Não obstante, é um bom romance, escrito com a segurança de quem já é autor há mais tempo, acostumado no trato com os livros – inclusive como leitor. E o que é melhor, a experiência jornalística de Edney contribui muito para a qualidade do livro. Lugares variados são descritos, muitos fatos são interpretados e seus personagens se movem entre eles e são afetados por eles.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Resenha nº 79 - Fahrenheit 451, de Ray Bradbury

Resultado de imagem para livro Fahrenheit 451 folha de são pauloTítulo: Fahrenheit 451
Tradução: Cid Knipel
Copyright: 1953 renewed 1981
Edição: Mediafashion, 2016
Gênero: Romance de ficção científica
Número de páginas: 164
ISBN: 23-978-85-7949-298-3
Coleção “Grandes Nomes da Literatura”


Ray Douglas Bradbury nasceu em 22/08/1920, em Waukegan, estado de Illionois, nos EUA. Morreu em Los Angeles, em 06/06/2012, aos 91 anos de idade. Autor prolífico, começou escrevendo obras de ficção científica e fantasia. Sua bibliografia conta com a) Romances: Fahrenheit 451 (1953); It came from Outer Space (1953); Dandelion Wine (1957); Something Wicked This Way Come (1962); The Halloween Tree (1972); Death Is A Lonely Business (1985); A Graveyard For Lunatics (1990); Green Shadows, White Whale (1992); Ahmed and The Oblivion Machines (1998); From The Dust Returned (2001); Let’s All Kill Constance (2003). b) Contos: Dark Carnival (1947); The Martian Cronicles (1950); The Illustred Man (1951); The Golden Apples of The Sun (1953); The October Country (1955); A Medicine for Melancholy (1959); R Is for Rocket (1960); Bloch and Bradbury (1969); I Sing The Body Electric! (1969); S Is for Space (1970); Stories of Ray Bradbury (1980); The Toynbee Convector (1988); Quicker Than The Eye (1996); Driving Blind (1998); One More for The Road (2002); Bradbury Stories: 100 of His Most Celebrated Tales (2003); The Cat’s Pajamas: Stories (2004).
 Tome-se um bom tema de ficção científica, adicione-se a ele largas porções de fantasia; mexa-se bem essa mistura e acrescente-se, aos poucos, mas sem miséria, grandes partes de poesia. Criatividade a gosto. Não se esqueça de juntar uma forte e decisiva pitada de distopia. Se pudéssemos resumir este Fahrenheit 451 a uma receita, esta seria uma possibilidade.  Impossível de ser reproduzida por outro autor, vivo ou morto. Esta obra é diferente de tudo que já li, não só considerando o campo da ficção científica e fantasia, mas também o campo enorme de todos os livros lidos. E olha que já li horrores nesta vida!
 O enredo não é complicado: um certo bombeiro, de nome Guy Montag, faz seu serviço com eficiência, dentro de uma rotina montada para que ele tenha todas as satisfações básicas de um ser humano atendidas. Ele é casado com Mildred (Millie), tem uma boa casa, bom emprego, com alguma economia pode comprar o que a tecnologia da época lhe oferece.
 O mundo estável e confortável de Montag começa, lentamente, a se desmoronar quando ele conhece sua vizinha Clarisse McClellan. A garota impressiona fortemente o bombeiro:
“Que incrível poder de identificação tinha a garota! Era como o ansioso espectador de um teatro de marionetes, antecipando cada piscar de olhos, cada gesto de mãos, cada estalar de dedos, um instante antes de o movimento começar. Quanto tempo haviam caminhado juntos? Três minutos? Cinco? No entanto, como aquele momento agora parecia longo. Que figura imensa era ela no palco diante dele, que sombra projetava na parede o seu corpo esguio! Montag tinha a impressão de que caso ele coçasse os olhos ela talvez pestanejasse. E se os músculos de suas mandíbulas se tencionassem imperceptivelmente, ela bocejaria muito antes que ele o fizesse. ” (página 16)
 O curioso é que esse narrador onisciente, capaz de nos dizer o que se passa na cabeça e no coração dos personagens, não nos traz grandes emoções de Montag. Simplesmente, porque ele não as tem... Montag é superficial, não pensa, não deduz – é pago para fazer o que faz e o que faz, faz bem.
 Nesse estranho mundo plano, os bombeiros têm a sua função deslocada, pois, ao invés de apagar incêndios e salvar vidas e objetos, eles os queimam. Sim, é um mundo sem livros; os livros promovem sentimentos, reflexões, descontentamentos, questionamentos e isso deve ser extirpado dessa sociedade. É a “felicidade” do não-ser, do não-conhecer, do não-sentir. Toda a História do mundo fora apagada.
 Guy Montag se descobre infeliz. Seu desconforto, agora, ao queimar importantes obras literárias da humanidade é visível. E o incômodo não é porque saiba exatamente o valor dos livros postos na fogueira; o que o move é a curiosidade de experimentar aquele mundo antigo, escondido de quase todos e suas novas possibilidades.
 Como naquela outra excelente obra distópica, o 1984, de George Orwell, o menor desvio de conduta do indivíduo é notado pelos mecanismos de vigilância existentes por toda parte. E um sabujo – cão rastreador – eletrônico começa a “implicar” com Montag, dentro da corporação. Ele é uma máquina capaz de matar, infalível quando se atira sobre a presa, matemático e frio. Possui oito patas e uma agulha injetora de um anestésico que paralisa a vítima:
“Montag recuou. O Sabujo deu um passo para fora de seu canil. Montag agarrou o poste de metal com as duas mãos. O poste, reagindo, deslizou para cima e o fez atravessar o teto, silenciosamente. Montag estendeu o pé para o deque à meia-luz do nível superior. Seu corpo tremia e seu rosto estava pálido e esverdeado. Lá embaixo, o Sabujo tornara a assentar-se sobre as suas incríveis oito patas de inseto e zumbia novamente para si mesmo, os olhos multifacetados em paz.Montag parou ao lado do poço de acesso, aguardando o tremor passar. Atrás dele, quatro homens sentados a uma mesa de jogo, sob uma luminária verde no canto da sala, olharam de relance sem dizer nada. Apenas o homem com o quepe de capitão com a insígnia da fênix, por fim, curioso, as cartas na mão magra, falou do fundo do recinto:— Montag?...— Ele não gosta de mim – disse Montag.— Ele quem, o Sabujo? – O capitão estudou as cartas. – Deixe de bobagem. Ele não gosta ou desgosta. Apenas “funciona”. É como um exercício de balística. Ele tem uma trajetória definida por nós. Ele executa. Segue a pista, faz a mira e dispara. É só fio de cobre, baterias recarregáveis e corrente elétrica. ” (Páginas 29/30)
 Apesar da ameaça constante sobre sua cabeça, Montag está irremediavelmente mudado. E passa, cada vez mais, a ler o mundo e sua própria vida a partir dessa nova chave interpretativa. Conhece Fraser, e torna-se amigo dele. Fraser caracteriza a si mesmo como um covarde, que poderia ter gritado quando as coisas começaram a mudar, quando o mundo da conformação se instalava e preferiu ficar calado. O contraponto entre Fraser covarde e Montag, meio ingênuo, mas com vontade de buscar o que lhe falta é produtivo para os dois.
 Ray Bradbury é um escritor singular. Vejam como ele consegue juntar poesia, recursos literários à ficção científica que permeia seu texto:
“Uma gota de chuva. Clarisse. Outra gota. Mildred. Uma terceira. O tio. Uma quarta. O fogo de hoje à noite. Uma, Clarisse. Duas, Mildred. Três, tio. Quatro, fogo. Uma, Mildred, duas Clarisse. Uma, duas, três, quatro, cinco, Clarisse, Mildred, tio, fogo, pílulas para dormir, homens-lenços descartáveis, fraldas de camisas, assoar, limpar, dar descarga, Clarisse, Mildred, tio, fogo, pílulas, lenços, assoar, limpar, dar descarga. Uma, duas, três, uma, duas, três! Chuva. A tempestade. O tio rindo. Trovão descendo céu abaixo. O mundo inteiro se derramando em água. O fogo jorrando num vulcão. Tudo se apressando numa enxurrada estrondosa e fluindo como rio rumo à manhã. ” (página 22)
 Apesar de o livro Fahrenheit 451 ser bastante conhecido do público, resisto a fornecer um spoiler. Não vou adiantar o final da história. Mas tenho vontade de fazê-lo, há muito o que comentar. Além de não desejar a presença do spoiler, caro leitor, não é o objetivo deste blog entrar por análises textuais mais aprofundadas. Direi apenas que Montag, com uma visão mais crítica sobre a sociedade na qual está mergulhado, já não terá lugar nela. Torna-se um elemento por demais perigoso.
 Novas realidades o estarão esperando, para além da curva dos trilhos ferroviários enferrujados. Acorda dentro de um outro contexto e de lá, deste novo posto, pode enxergar melhor seu próprio trabalho, seu amigo Fraser, sua vizinha Clarisse McClellan, sua esposa Mildred e suas amigas, o capitão Beatty e suas ações (sobretudo a última).
 A resenha de Fahrenheit 451 já está muito longa, mas não posso deixar de fazer algumas contextualizações com a sociedade em que vivemos; o livro é por demais rico e a leitura por demais propícia para algumas reflexões.
 Vivemos numa sociedade atroz, em que parte dela é extremamente hedonista e valoriza a “felicidade” entregue pela tecnologia, pela falta de criticidade, manipulada pelas classes dominantes por trás das mídias. Os tais “formadores de opinião”, na verdade, formam apenas uma opinião – a dominante. Coisa igualmente instaurada nas escolas, instituição que deveria ser o espaço consagrador das opiniões variadas, das muitas visões de mundo; as escolas deixaram de ser a entidade “que não ensina a pensar”, como diziam os antigos. Agora, é pior: ensinam a pensar, sim; mas apenas de um modo. Esquecemo-nos de que a felicidade não pode ser construída na ignorância, a não ser, talvez, na infância. A felicidade adulta é mais difícil de ser atingida, deve ser construída pela paz interna nos contatos com o diferente. No respeito ao direito do próximo de ser quem é, de pensar como pensa. Pessoalmente, não acredito numa felicidade duradoura onde houver pessoas a quem faltam mesmo as coisas mais básicas.
 Tema para Zygmunt Balman e seu conceito de sociedade líquida, amor líquido, medo líquido. Resenha para um próximo livro, o Medo Líquido, do professor Balman.