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quarta-feira, 30 de março de 2022

Resenha nº 187 - A Sucessora, de Carolina Nabuco



Título: A Sucessora

Autora: Carolina Nabuco

Editora: Instante

Edição: s/n

Copyright: 2018

ISBN: 978-85-52994-02-2

Gênero literário: romance

Origem: literatura brasileira

 

Carolina Nabuco, nome de batismo Maria Carolina Nabuco de Araújo, nasceu em 09/02/1890, na cidade do Rio de Janeiro. Faleceu em 18/08/1981, na mesma cidade. Filha do famoso Joaquim Nabuco, como o pai, foi também batalhadora pela causa abolicionista. Ela passou grande parte de sua infância em Petrópolis; sua adolescência, entretanto, deu-se nos Estados Unidos, onde o pai fora servir como embaixador do Brasil.

Seu primeiro livro data de 1929, uma biografia do pai. Por ele, Carolina ganhou o Prêmio de Ensaio da Academia Brasileira de Letras. Trabalhando como tradutora e escritora, ela sempre se manteve discreta, como no polêmico caso que envolve precisamente seu romance A Sucessora.

Sua trajetória como escritora é pontuada com as seguintes obras: A Vida de Joaquim Nabuco (1929, biografia); A Sucessora (1934, romance); Chama e Cinzas (1947, romance); Meu Livro de Cozinha (1977, receitas culinárias); O Ladrão de Guarda-Chuva e Dez Outras Histórias (contos); Oito décadas (memórias); Santa Catarina de Siena (biografia); Virgílio de Melo Franco (biografia); Retrato dos Estados Unidos à luz da sua literatura (ensaio).

Causa-me um desconforto muito grande constatar que uma escritora como esta tenha sido relegada ao esquecimento; aliás, outras escritoras brasileiras também o foram, como, por exemplo, Dinah Silveira de Queiroz, Júlia Lopes de Almeida, Maria Firmina dos Reis... Felizmente, porém, parece haver um movimento de redescoberta destas importantes artesãs da narrativa. Há publicações recentes, como este volume que tenho, da Editora Instante.

Carolina Nabuco deveria ter escrito outras obras ficcionais. Pena, foram apenas duas, este A Sucessora e Chama e Cinzas. Abolicionista e feminista, escrevendo numa época em que a abolição acabara de acontecer, no Brasil, e em que o feminismo, como movimento, sequer existia, provavelmente, ela teria muito a nos dizer com sua prosa elegante e culta.

Linhas acima disse que A Sucessora se envolveu numa polêmica. Uma polêmica internacional. Quando a publicação da escritora inglesa, Daphne du Maurier, Rebbeca – A Mulher Inesquecível veio a lume, dando, inclusive, um filme famoso do mesmo nome, dirigido por Alfred Hitchcock, verificou-se que aquela história era muito semelhante à de A Sucessora. Esta, por sua vez, foi adaptada por Manoel Carlos como novela da TV Globo, de enorme sucesso.

A respeito, a sempre discreta Carolina Nabuco se manifestou:

“Eu fiquei muito triste. Mas pus a minha dignidade acima de interesses financeiros do filme. Um advogado norte-americano veio cá ao Brasil me perguntar se eu escrevesse um papel dizendo que podia ser coincidência, eles me pagariam uma quantia patrimonial”. (Desvelando a intimidade feminina entre o concreto e o imaginário, de Mauro de Alencar, página 5)

O crítico Álvaro Lins, muito prestigiado na época, não titubeou em afirmar que Rebbeca era plágio da obra brasileira. Daphne lançou seu romance em 1934, no mesmo ano da publicação de Carolina. As histórias eram absolutamente semelhantes.

Polêmicas à parte, Carolina Nabuco escreve com um estilo, ao mesmo tempo, leve e elegante. Pertencente à Segunda Geração Modernista – mais conhecida como A Geração de 30 – o romance da nossa escritora contribuiu para a concretização dos novos valores sociais. Leitora, desde cedo, da literatura francesa, há muitas expressões desta língua em seu texto.

Cronista de seu tempo, eis como A Sucessora se inicia:

“A volta ao Rio. O encostar do grande transatlântico. Os primeiros passos em terra firme, entre a escada de bordo e a limusine que os esperava. Depois. O movimento embalador do belo carro; o alvoroço da avenida Rio Branco ao cair da tarde, na hora do êxodo para os lares.

Tudo, até o grito dos jornaleiros, apregoando vespertinos, encantava Marina. Os marcos familiares da cidade surgindo um por um. As vitrinas que se iluminavam. O cansaço delicioso que a vencia. O aconchego em que viajava, com os olhos distraídos pela agitação exterior e a mão presa na de Roberto. A sensação feliz de se lhe abrirem na vida largos horizontes de ventura.” (página 9)

Então, temos que o casal formado por Marina e Roberto aportam ao Rio de Janeiro, recém-chegados da Europa, em viagem de lua-de-mel... Dirigem-se à mansão da Rua Paissandu, propriedade do marido. É lá que se desenvolve todo o drama narrativo; para melhor entendimento, diremos que aquele não era o habitat da bela Marina. Ela fora criada em uma fazenda, no interior do Rio de Janeiro.

O contato frequente com a natureza, com a gente simples das terras da família – agora uma fazenda em lento processo de decadência – constroem o jeito de ser de Marina:

“Mas nunca Marina conhecera o luxo e resistia-lhe inconscientemente. A fazenda protegera-a do amor ao dinheiro, não lhe dando modos de o gastar. Em Santa Rosa a vida era fácil e as necessidades poucas, mas não havia nada que se parecesse com esta riqueza de cortinas e tapetes de reluzentes painéis, de madeiras novas e de sedas frescas como na loja.” (página 12)

Num jogo de contrastes, Roberto representa a modernidade, os novos ares que respira o país:

“Este era o outro Brasil, o Brasil novo, industrial, no qual nascera Roberto, e que chamava os braços da lavoura, para as cidades, as fábricas e a tuberculose, mas que não produzira ainda, mesmo na capital, senão um fraco punhado de residências como esta, e de fortunas como a que Roberto gastava largamente, na vida organizada para o casal por Alice, no fausto que destoava dos hábitos de seus amigos e que atraía a atenção dos invejosos.” (página 12)

Esta Alice é a ex-esposa do viúvo Roberto. E o retrato dela, pintado por um célebre pintor francês, em moda em Paris, Verron, é o primeiro e impressionante contato de Marina com a casa da qual seria senhora. Um retrato posto na parede central da sala:

“Marina olhou depressa para Roberto. Percebeu ainda de seu primeiro olhar para o retrato, olhar de quem via um antigo companheiro, alguém cuja vista importasse num acréscimo de conforto moral, mas logo a boca se lhe esticou de contrariedade. Dera ordens para que o quadro fosse retirado dali, e não estava habituado a que se lhe não cumprissem as ordens. Veio a Roberto uma onda de irritação contra sua irmã por não ter respeitado o seu pedido urgente. Era bem da Germana isso, de florir-lhe a casa e ocupar-se de tudo, mas desatendendo à sua única recomendação positiva. Conhecendo-a tão bem, ele é que devia ter-lhe adivinhado a intenção, não ter tomado por aquiescência o silêncio repentino em que Germana caíra, depois de afirmar que um quadro de Verron era uma obra-prima impessoal, como o Reynolds e o Fragonard do salão nobre. Roberto deixar-se iludir pelo tom brando com que, desde a infância, a irmã costumava disfarçar sua teimosia.” (página 12)

Intensamente requisitada pelo retrato, a atenção de Marina sobre ele se detém, como que hipnotizada:

“Devia ser Alice viva. Os olhos viam. Penetravam o pensamento, olhavam o mundo como se fosse seu para conquistar, para governar. A boca palpitava. Ia falar. O corpo também ia mover-se. O veludo do vestido reluzia quase tão finamente quanto o do manto de Marina. O colar de pérolas era o mesmo que ela trazia no pescoço. Roberto percebeu este pormenor.” (página 14)

Lamentei, linhas acima, que Carolina Nabuco só tivesse produzido dois romances. Ela é uma escritora de vários recursos, sem dúvida. A tensão que se anuncia entre os dois Brasis – o agrícola, do passado e o industrial, embora por consolidar-se, do presente –, a mulher extraída de seu próprio mundo simples e o homem do mundo, a presença ainda intensiva da primeira esposa de Roberto, morta e viva no retrato, a insegura e inexperiente Marina.

Um diálogo muito bem-colocado acrescenta uma pimenta à narrativa, numa conversa entre o casal, a respeito das impressões de Marina quanto ao retrato de Alice:

“Puxou-a pela mão e ela pôs-se de pé, ainda em frente ao retrato.

— Há uma coisa que ela nos quer dizer – murmurou Marina, interrogando a imagem com olhos dilatados.

Roberto assustou-se, mas fingiu que gracejava.

— Isso é espiritismo? – perguntou.

Séria, Marina respondeu:

— Espiritismo? Deus me livre! Sou católica.

— Então não penses mais neste infeliz retrato, nestas bobagens. Como é que um retrato poderia te dizer alguma coisa?

— Quer sim, mas não percebo.” (página 17)

O tom alusivo a coisas ocultas se repete, páginas à frente, numa recepção que Marina e Roberto dão, organizada por Germana (aliás, é Germana, de fato, quem governa a casa), em que brilha a figura culta e provocativa de Munhoz:

“Laurita Menezes pusera-se a apregoar uma série de superstições e de fetiches. Bastaria a Marina fechar os olhos para acreditar-se outra vez no meio do povinho de Santa Rosa. Faltava apenas a pronúncia negra. O desembargador, abandonando as reminiscências, passara a falar de espiritismo. Tinha um reluzir de apóstolo nos olhos, tal qual o velho Carlos, cozinheiro da roça.’

— A senhora daria uma excelente médium – disse a Marina. – Tem intuição. Eu conheço pelos olhos e pelas mãos.

— Eu também vejo pelos olhos e pelas mãos de Dona Marina que ela tem intuição – intercalou Munhoz, sorrindo. – Mas não só para as influências ocultas. Para todas as influências. Vejo também que é uma natureza tímida, embora corajosa, não é?” (página 65)

O olhar percuciente do embargador Munhoz acabara de desenhar, para todos, o perfil de Marina: tímida, mas corajosa; dona de muita sensibilidade, impressionável.

Outro fato vem acrescentar mais condimento à trama (já que iniciei esta linha de metáforas temperadas). Marina, sem intenção, deixa uma ponta de cigarro cair sobre o divã da sala; o fogo começa a alastrar-se rapidamente. É contido pelos empregados da mansão, mas rende outro trecho que mostra bem como um escritor de talento constrói seu clima de mistério e suspense:

“Depois, no quarto, Isabel banhou os dedos de Marina com unguentos. Acabou, num excesso de piedade, por beijá-los, chorando tolamente.

— Foi pena ela [Alice] não queimar mesmo – disse Isabel com ar vingativo.

Marina ficou perplexa diante desse comentário estranho.  Mais de uma vez lhe parecera que Isabel tinha a intuição do seu sofrimento secreto.

Uma coruja gritou no arvoredo. Isabel parou repentinamente para ouvir. Com a expressão concentrada, a máscara ficou-lhe um tanto trágica.

— A coruja, Sinhazinha! Este pássaro desgraçado anda sempre por aí. Deus nos livre.

Marina ralhou com ela. Imitou o tom de Dona Emília repreendendo os pretos que repetiam histórias de augúrios e de feitiços. Nas censuras de Dona Emília alternavam-se a irritação e a mofa, sinceras ambas.” (página 133)

De posse destes elementos fornecidos, aqui e ali, pelo narrador onisciente de A Sucessora, o leitor analisará: sei que o principal embate será entre esta Marina, nova esposa de Roberto, e forte presença da defunta Alice. Como acabará tudo isto?

Sei que o romance tem uma história já por demais conhecida, por ter sido bastante divulgada, quer pelo filme de Hitchcock (há, ainda, um remake em rede de streaming, em catálogo), quer por muito ainda se lembrarem da telenovela. Mas, como desejo que você, leitor, busque este livro e o leia, não vou dar spoiler.

O ambiente sociopolítico é o do Brasil do começo do século. O comércio do café sofre declínio; a atividade fazendeira perde mão-de-obra para a indústria que se instala no país. A escravidão – período terrível da história do Brasil – se encerrara; mas, não de todo, uma vez que, aqueles escravos libertos, mas idosos ou acostumados à saga perversa, ainda permanecem junto aos Sinhôs e Sinhás. Como na fazenda Santa Rosa, que ainda abrigava alguns destes serviçais.

Neste caldo de cultura, move-se o político, médico e escritor, Adolfo Bezerra de Menezes. Para quem não se recorda, Bezerra de Menezes era também abolicionista e... espírita. Na verdade, uma das figuras mais importantes dos primórdios do movimento espírita brasileiro. Impossível Carolina Nabuco não ter, pelo menos, ouvido falar de Bezerra e suas atuações. Daí, justificar-se a alusão ao espiritismo.

A Sucessora: um bom romance, um clássico da literatura brasileira. Merece este lugar. Aborda uma história de fundo universal – o enfrentamento de um mundo em mutação.

Ainda uma questão que desejo abordar. Na passagem do incêndio da mansão da Rua Paissandu, uma carta do pintor Verron para Alice quase não se salva. Apenas um fragmento, como nos relata o narrador desta história:

“Da carta de Verron, Marina só encontrou um fragmento carbonizado, onde apenas eram legíveis duas palavras, em linhas diversas... vous... affection [sua... afeição].” (página 132)

Teria havido aí um caso de traição de Alice, quando esteve em Paris com Roberto, e o pintor Verron? A reação de vingança da criada Isabel contra Alice revelaria algo do caráter daquela?

Carolina Nabuco não nos revela. O narrador se cala.

Muito importante resgatarmos esta obra. Romances de fundo histórico são bons caminhos para se compreender uma época; ao dar vida a personagens em seus mundos de referência, o autor acaba por nos fornecer várias informações sobre a cultura, a sociedade, o pensamento de uma época. 

quinta-feira, 17 de março de 2022

Resenha nº 186 - Nós, de I. I. Zamiátin

 



Título original: MЫ

Autor: I. I. Zamiátin

Tradutora: Gabriela Soares

Editora: Aleph

Copyright: obra em domínio público

ISBN: 978-85-7657-311-1

Gênero literário: Romance (ficção científica)

Origem: Literatura russa

 

Ievguêni Ivanóvitch Zamiátin nasceu na Rússia, em 01/02/1884 e faleceu em Paris, em 10/03/1937. Seus pais foram Ivan Zamiátin, sacerdote ortodoxo e professor, e Maria Zamiatina, musicista. Consta que ele se casou com Ludmila Zamiatina, mas não consegui encontrar o ano do evento. O escritor estudou Engenharia Naval na cidade de São Petersburgo, no período entre 1902 e 1908. 

Começou a escrever ficção como passatempo, após ter concluído o ensino superior. Durante seus estudos, apoiou a revolução bolchevique. Preso durante a revolução russa em 1905, foi exilado; retornou à cidade peterbuguense de modo clandestino, vivendo ali até 1906, quando partiu para a Finlândia para conclusão de estudos.

Preso outra vez em 1911, conseguiu anistia em 1913. Pouco tempo depois, foi para a Inglaterra, supervisionar a construção de navios quebra-gelo nos estaleiros Newcastle-upon-Tyne, na Inglaterra. Desta sua estada inglesa resultou um conto, The Islanders (Os Ilhéus), em que faz críticas ao modo de vida britânico.

Progressivamente, foi se tornando cada vez mais crítico do regime socialista e, como consequência, seus trabalhos foram severamente censurados. Para se ter uma ideia, Nós – obra aqui resenhada – só obteve sua primeira edição em inglês. Na verdade, esta distopia nunca foi publicada em solo russo.

Nós é livro considerado, hoje, o pai das distopias. A tempo, distopias são histórias de ficção científica que têm uma visão catastrófica do futuro da humanidade. Reportam-se, no mais das vezes, a civilizações (ou o que restou delas) pós-apocalípticas. Nós foi publicado em 1920, como disse, na Inglaterra. É extraordinária a semelhança com outras distopias famosas, como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, 1984, de George Orwell, Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, Farenheit 451, de Ray Brudbury e, ainda, teria influenciado Anthen, de Ayn Rand. Não é pouca coisa e por isso, merece ser lido.

Mas, quais foram as influências recebidas pelo próprio Zamiátin, além daquelas de H. G. Wells, de quem foi tradutor para o russo? Sua distopia tem digressões sobre moral e religião muito próximas às de Dostoiévski. Este sempre foi um “cristão atormentado”, oscilando entre crer e não crer nas propostas do cristianismo. Aponto, por exemplo, o trecho em que o narrador de Zamiátin – D-503 – nos relata no capítulo 36:

“Não lhe parece que o papel dos que estão no alto é o mais difícil, o mais importante? Se não fosse por eles, seria possível realizar toda essa magnífica tragédia? Eles foram vaiados pela multidão ignorante: mas, por tudo isso, o autor dessa tragédia, Deus, devia tê-los recompensado ainda mais generosamente. O próprio Deus cristão e misericordioso queimava lentamente no fogo do inferno todos os insubmissos. Ele não é um carrasco? E não são menos os queimados pelos cristãos nas fogueiras do que os cristãos queimados? E, contudo, compreenda isso, contudo, esse Deus, ao longo dos séculos foi glorificado como o Deus do amor. Absurdo? Não, ao contrário: é uma permissão escrita com sangue, do inerente juízo humano.” (página 290)

As pessoas não são chamadas pelos seus nomes. Nesta sociedade, elas recebem números e assim mesmo são referidas – números. Assim, temos I-330, uma mulher com quem D-503 se relaciona, com ideias, a princípio, disfarçadamente subversivas. Há também O-90, a quem o nosso protagonista dedica um afeto não muito bem compreendido por ele mesmo.

Numa passagem bastante elucidativa, logo após ter tido uma conversa com I-330, o narrador nos diz:

“Essa mulher me afetava da mesma maneira desagradável que um termo irracional e irredutível que se intromete ao acaso numa equação. Fiquei feliz de passar algum tempo a sós com a querida O.

De mãos dadas, passamos quatro avenidas. Na esquina, ela teve de virar à direita, e eu, à esquerda.

— Hoje eu gostaria muito de ir para casa com você e fechar as cortinas. Hoje, agora mesmo... – O-90 levantou timidamente para mim os olhos redondos, de um azul cristalino.

Graciosa. Mas o que eu poderia dizer? Ela havia estado em minha casa ainda ontem e sabia tão bem quanto eu que nosso próximo dia sexual seria depois de amanhã. Esse era simplesmente mais um caso de seu “pensamento antecipado”, como acontece (e às vezes é prejudicial) com uma faísca antecipada num motor.

Ao despedir-nos, duas... Não, serei preciso, três vezes beijei seus maravilhosos olhos azuis, não maculados por nenhuma nuvem.” (página 26)

Sim, é isto mesmo, leitor. Os números (cidadãos) têm “horas particulares” e, dentro destas, alguns dias em que podem fechar as cortinas contras as paredes de vidro de suas residências e terem o que D-503 chamou de “dia sexual”:

“Naturalmente, tendo submetido a Fome (algebricamente=a soma dos bens externos) o Estado Único conduziu uma ofensiva contra outro senhor do mundo: contra o Amor. Finalmente, esse elemento também foi vencido, isto é, organizado e matematizado, e por volta de trezentos anos atrás foi promulgada nossa histórica Lex Sexualis: “todo número [leia-se pessoa] tem direito a qualquer outro número como produto sexual”.

Bem, o que se segue é apenas técnico. No laboratório do Departamento Sexual examinam-nos e calculam exatamente a composição de nossos hormônios sexuais no sangue, e produzem para nós uma Tábua apropriada dos dias sexuais. Em seguida, fazemos uma declaração de que queremos utilizar nossos dias com esse ou aquele número, e recebemos o devido talão cor-de-rosa. Isso é tudo.” (páginas 42/43)

A cultura, os costumes e desejos da civilização antiga, antecedente à implantação do Estado Único são considerados nocivos, desorganizadores, causadores de infelicidade. Em poucos termos, todo individualismo foi banido. Obras de arte, discursos, poesias só podem existir se exaltarem as qualidades deste Estado, pois

“O homem só deixa de ser uma besta selvagem quando construiu a primeira parede. O homem só deixou de ser um selvagem quando construímos o Muro Verde, quando com esse Muro isolamos nossas máquinas, nosso mundo perfeito, do insensato e repugnante mundo das árvores, pássaros, animais...” (página 132)

As cidades são cercadas por muros, apartando delas os rebelados, os insensatos que ousaram resistir ao término da dor, da inveja, do crime. Isoladas em células administráveis e sobre elas, paira a figura do Benfeitor – alguém que garante o funcionamento das mínimas peças deste estado totalitário – tais cidades eliminaram quaisquer diferenças, uniformizando todos os humanos, certamente sem paixões, mas igualmente acríticos, acéfalos, submissos. Em suma, sem possibilidade de evolução.

Uma das poucas figuras admiradas da sociedade antiga é Taylor, autor do taylorismo. Num artigo buscado na Internet, intitulado “Entenda o que é o taylorismo, como surgiu e quais são seus princípios”, assinado por Thiago Coutinho, há explicação sobre em que consiste tal termo:

“O taylorismo é um método de produção idealizado pelo teórico Frederick Winslow Taylor, no final do século XIX. Ele também é conhecido pelo nome de Administração Científica.

Ele é marcado por uma forte racionalização do trabalho, sendo a especialização dos colaboradores a expressão máxima desse conceito. Isso quer dizer que cada trabalhador, ao invés de executar várias tarefas, deve ser treinado e capacitado para somente algumas delas, de maneira a executá-las melhor.

Podemos considerar isso como a aplicação do método científico na organização do trabalho. Por isso o nome "administração científica". Portanto, cada aspecto do trabalho deve ser planejado cientificamente, com o objetivo de maximizar a produção.

Além disso, a administração científica de Taylor ainda dizia que era tarefa dos gerenciadores da empresa desenvolverem sistemas de produção apropriados para alcançar a eficiência econômica.

Apesar dos termos "administração científica" e "taylorismo" serem utilizados como sinônimos, é mais preciso considerar o taylorismo como uma primeira forma de utilização de métodos científicos na administração.”

Ficam evidentes os motivos para a exaltação de Taylor:

“Sim, esse Taylor foi, sem dúvida, o mais genial dos antigos. É verdade que ele não chegou a pensar em estender seu método para todas as esferas da vida, para cada passo, dia e noite. Não soube integrar seu sistema às 24 horas do dia. Mas, de qualquer forma, como eles puderam escrever uma biblioteca inteira sobre um tal de Kant, sem quase notar Taylor, esse profeta que conseguiu enxergar dez séculos à frente?” (página 57)

A completa aceitação dos postulados do Estado Único, pelo narrador em primeira pessoa – D-503 – é algo que nos irrita, como leitores. Sabiamente instituído por Zamiátin, este narrador “colado” ao que se quer denunciar, torna-se uma ferramenta poderosa, do ponto de vista discursivo, contra o Estado Único. Esta submissão derrama-se para fora da obra literária, articula-se com o nosso conhecimento de mundo de leitores, fere-nos os conceitos morais e libertários:

“A tabuada de multiplicação é mais sábia e absoluta do que o antigo Deus: ela nunca erra, entenda, nunca erra. E não há cifras mais felizes do que as que vivem pela lógica eterna das leis da tabuada de multiplicação. Sem variações, sem erros. Existe apenas uma verdade e um caminho verdadeiro; e essa verdade é o dois vezes dois, e o caminho verdadeiro é o quatro.” (página 98)

D-503 é o construtor da “Integral” – uma nave espacial que terá como tarefa grandiosa levar o Estado Único ao restante do universo, obrigando – que paradoxo! – todos os seres a serem felizes.

O romance é o gênero literário que permite digressões de um personagem, de um narrador. Entretanto, tais digressões não podem se afastar do tema central, sob pena de perda de coerência, o que será fatalmente notado pelo leitor.

No capítulo 28 há uma dessas digressões, importante para se entender até onde vai o domínio da ideologia do Estado Único:

“Então há duas forças no mundo: a entropia e a energia. Uma tende ao repouso beatífico, ao equilíbrio feliz; a outra tende à destruição do equilíbrio, ao doloroso movimento sem fim. A entropia, os nossos, ou melhor, os seus antepassados, os cristãos, adoravam-na como a um Deus. E nós, os anticristãos, nós...” (página 224)

A propósito desta postura anticristã, dentro do projeto literário de Nós é perfeitamente compreensível. O que caracteriza o Antigo Testamento é exatamente a Justiça, a Ordem. Entretanto, o Novo Testamento tem como tônica a nova revolucionária do Amor. Não mais aquele Deus sisudo, punitivo e inflexível, mas outro, o da compreensão, do Amor Incondicional, que nos diz, pela boca de Jesus, seu filho, que “o que fazeis ao mais pequenino é a mim mesmo que o fazeis”.

Não é demais lembrar, todos os regimes ditatoriais têm verdadeiro horror às expressões de arte e a seus criadores. É que sabem muito bem, a forma mais definitiva de se dominar as pessoas é lhes possuindo a mente, a consciência. Abafado o senso crítico, a segurança do ditador se instaura.

Excelente livro. A edição que tenho, da Editora Aleph – graficamente muito bonita, por sinal – conta com uma carta de Zamiátin a Stálin, em que o autor solicita a permissão de sair da Rússia e, ainda, uma análise de ninguém menos que George Orwell. Autor do aclamado 1984, ele é de opinião que, embora Admirável Mundo Novo e Nós tenham tantas semelhanças, Aldous Huxley tem menos consciência política que Zamiátin. Não entro nesta discussão. Basta-me reconhecer que tanto um quanto o outro são duas legítimas análises sociais.

Na minha opinião, mesmo as mais delirantes obras de ficção científica são sobre os humanos e suas ambições, seus abismos e altiplanos. Somos seres humanos. Por conseguinte, tudo o que produzimos nos reflete, conta a nossa própria história. Quer como indivíduos, quer como sociedade.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Resenha nº 185 - Amor Nenhum Dispensa Uma Gota de Ácido, de Carlos Drummond de Andrade

 


Título: Amor Nenhum Dispensa Uma Gota de Ácido

Autor: Carlos Drummond de Andrade

Organização: Hélio de Seixas Guimarães

Editora: Três Estrelas

Copyright: 2019

ISBN: 978-85-68493-55-7

Gênero: Ensaios

Origem: Brasil

 

Carlos Drummond de Andrade é bastante conhecido pelo Brasil afora. Um dos nossos maiores poetas, nasceu na cidade mineira de Itabira, em 31/10/1902. Foi poeta, farmacêutico, cronista, contista. Drummond pertenceu ao que se convencionou chamar de segunda geração do modernismo brasileiro.

Nosso poeta passou pelo Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, pelo Colégio Anchieta de Nova Friburgo e formou-se em farmácia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Com Emílio Moura, fundou A Revista, para divulgar o modernismo no Brasil.

Em 1925, casou-se com Dolores Dutra de Moraes, com quem teve dois filhos – Carlos Flávio e Maria Julieta; o menino, entretanto, teve apenas meia hora de vida. A ele, o pai dedicou o poema O que viveu meia hora, constante da Obra Completa, edição da editora Nova Aguilar (2002).

Sua primeira publicação em livro foi Alguma Poesia (1930). A partir daí, segue-se longa lista de títulos: Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940), José (1942), A Rosa do Povo (1945), etc. A lista é tão grande que seria enfadonho publicá-la aqui nesta resenha.

Vários escritores brasileiros optaram por exercer o serviço público e com Carlos Drummond não foi diferente. Foi Chefe de Gabinete do governador Gustavo Capanema, de Minas Gerais (1933) e Chefe de Gabinete do Ministério da Educação do Brasil (1934-1945). Foram vários prêmios literários obtidos por ele: Prêmio Jabuti (1968), Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (1973), Prêmio Morgado de Mateus (1980), Prêmio Juca Pato (1982) e Ordem do Mérito Cultural (2010). Carlos Drummond de Andrade morreu no Rio de Janeiro, em 17/08/1987, aos 84 anos de idade.

O interesse por este livro, Amor Nenhum Dispensa Uma Gota de Ácido, pelo selo editorial Três Estrelas, com organização de Hélio de Seixas Guimarães, justifica-se por entender qual a relação entre o poeta mineiro e Machado de Assis. Além disto, os textos de Drummond, por si sós, são interessantes de se resgatar.

Afiliado literário do vendaval que foi a Semana de Arte Moderna, em 1922, é bastante motivante se saber como Drummond via Machado de Assis; sim, porque, de modo geral, o trator modernista condenou os escritores que vieram antes. Propunha uma nova estética, novas ideias. Desejava quebrar com tudo o que havia sido feito antes. E, certamente, Joaquim Maria Machado de Assis era um ícone a ser quebrado. Além de fama de maior escritor brasileiro, era o fundador da Academia Brasileira de Letras.

Drummond de Andrade sempre fora crítico, reflexivo, irônico. E o pesquisador Hélio de Seixas deixa isto bem claro, ao reunir ensaios do poeta.

“Mas, no princípio, Drummond teve de se defrontar com a sombra do outro, que era ainda a da velha tradição dos “mestres do passado”, na expressão de Mário de Andrade, que trouxe aos moços não só o fermento do novo, mas a necessidade de uma “deseducação salvadora”, como percebeu o próprio Drummond, jovem aprendiz modernista em 1924, ao comentar “Suas cartas”, nas Confissões de Minas.” (orelha do livro, Davi Arreguci Jr.)

O jovem Drummond, na força contestatória de sua juventude e aprendizado, não tinha o velho Machado em alta conta. Ele comenta, em Sobre a tradição em literatura:

“O que chamamos de tradição propriamente não existe. Que vem a ser uma tradição literária? Talvez o mosaico fantasista e caprichoso com que o tempo se divertiu em transformar a sucessão de obras e autores que constituem uma literatura? Não pode ser mais do que isso, e a nossa época, terrivelmente dotada de espírito crítico, acha pouco. Temos, pois, mais que o direito de desrespeitar essa falsa tradição: temos o imperioso dever.” (página 40)

E assesta sua metralhadora, no mesmo ensaio:

“Amo tal escritor patrício do século XIX, pela magia irreprimível de seu estilo e pela genuína aristocracia de seu pensamento. Mas se considerar que este escritor é um desvio na orientação que deve seguir a mentalidade de meu país, para a qual um bom estilo é o mais vicioso dos dons, e a aristocracia um refinamento ainda impossível e indesejável, que devo fazer? A resposta é clara e reta: repudiá-lo. Chamemos este escritor pelo nome: é o grande Machado de Assis. Sua obra tem sido o cipoal em que se enredou e perdeu mais de uma poderosa individualidade, seduzida pela sutileza, pela perversidade profunda e ardilosa deste romancista tão curioso e, ao cabo, tão monótono.” (página 41)

Verdadeira saia-justa, autêntica sinuca-de-bico: Drummond diz reconhecer o engenho do bruxo, seu estilo sedutor. Recusa-se, entretanto, a se render a ele pelo que Machado representa para a ideologia da modernidade. E, peremptório, arrogante até, declara, no final do texto,

“E é inútil acrescentar que temos razão: a razão está sempre com a mocidade.” (página 41)

Em outro texto, intitulado T’aí!, o autor afirma:

“É verdade que andaram por aqui uns doutores sutilíssimos, um Machado de Assis principalmente... Mas estes caixa-d’óculos vieram com os navios estúrdios de Tomé de Souza, e a culpa não é nossa, é dos navios. Estes senhores anteciparam o desenvolvimento do nosso fenômeno literário. Saiu todo errado. Nos deram uma solução em que o elemento humano em vez de se fundir com o elemento físico tende a esmagá-lo. Quando na realidade sucede o inverso: a terra bruta, por lapidar, esmagando o homem. Nem uma coisa nem outra, que diacho!” (página 44)

Aos poucos, à medida que amadurece, entretanto, Carlos sai da posição de iconoclasta para a de uma admissão de valores, ainda que resistente, como na reprodução abaixo, De costas para a Academia:

“O velho Machado continua em sua roupa de bronze, de costa para a Academia que ele fundou. Mas nem sempre será justa essa posição de amargo humorista. Sábado último, por exemplo, entrou pra lá um mineiro douto, malicioso, tão bom contador de anedotas como atento frequentador do seu Horácio, e pronunciou uma oração que nos faz esquecer muito discurso ruim proferido à sombra da imunidade acadêmica. Entre os casacas e os decotes do ritual, o Sr. Afonso Pena Júnior proferiu palavras organizadas por um pensamento claro, substancioso e amadurecido no contato do melhor humanismo. Foi bom que o recebesse o homem de alta categoria intelectual que é o Sr. Alceu Amoroso Lima. Conservo de meus vinte anos um certo preconceito acadêmico, e carinhosamente o cultivo; quisera falar mal da Academia; mas hoje não posso.” (página 61)

Em Machado sempre atual, o amadurecido Carlos escreve:

“Não entendi por que para exaltar Lima Barreto é necessário diminuir Machado de Assis. Ambos escritores indispensáveis, ambos merecedores de respeito. Essa história de ser fiel à classe está muito batida e não convence. O destino social de Machado não tem nada a ver com a qualidade de sua obra, e um conto dele, como “Pai contra mãe”, vale por três manifestos abolicionistas.” (página 148)

Voltando ao começo do livro, onde o organizador desta coletânea temática pousou, estrategicamente o melhor dos elogios a Machado, o preito mais bonito, sob o título já antecipador do que se lerá, A um bruxo, com amor:

“Em certa casa da rua Cosme Velho

(que se abre no vazio)

venho visitar-te; e me recebes

na sala trastejada com simplicidade

onde pensamentos idos e vividos

perdem o amarelo

de novo interrogando o céu e a noite.

 

Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.

Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,

uma luz que não vem de parte alguma

pois todos os castiçais

estão apagados.” (página 35)

O bonito desta coletânea é ver como, por meio de textos cronologicamente apresentados, Carlos Drummond amadurece. Amadurece como homem, como escritor. Dono de suas convicções – ele nunca abriu mão do seu estilo inovador, da sua voz literária – mas concede a César o que é de César.

Pode-se não gostar de Machado de Assis; pode-se, perfeitamente, achá-lo pessimista demais em sua visão de mundo. Negar-lhe o engenho... é já outra coisa! Além do mais, não poderia saber ainda, este querido Drummond que, um dia, ele mesmo, se transformaria em ícone para uma geração de poetas brasileiros, tendo seus trabalhos traduzidos para várias línguas do mundo. E mais, com uma vasta fortuna crítica a classificá-lo como um dos nossos maiores poetas!

Se você, leitor, gosta de ensaios e de coletâneas feitas com textos publicados em jornais, aqui vai a sugestão. Um ótimo trabalho de pesquisa do professor Hélio de Seixas. Orquestrado com muito respeito e muito amor aos dois autores envolvidos. Eu me deliciei!