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quarta-feira, 2 de março de 2022

Resenha nº 185 - Amor Nenhum Dispensa Uma Gota de Ácido, de Carlos Drummond de Andrade

 


Título: Amor Nenhum Dispensa Uma Gota de Ácido

Autor: Carlos Drummond de Andrade

Organização: Hélio de Seixas Guimarães

Editora: Três Estrelas

Copyright: 2019

ISBN: 978-85-68493-55-7

Gênero: Ensaios

Origem: Brasil

 

Carlos Drummond de Andrade é bastante conhecido pelo Brasil afora. Um dos nossos maiores poetas, nasceu na cidade mineira de Itabira, em 31/10/1902. Foi poeta, farmacêutico, cronista, contista. Drummond pertenceu ao que se convencionou chamar de segunda geração do modernismo brasileiro.

Nosso poeta passou pelo Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, pelo Colégio Anchieta de Nova Friburgo e formou-se em farmácia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Com Emílio Moura, fundou A Revista, para divulgar o modernismo no Brasil.

Em 1925, casou-se com Dolores Dutra de Moraes, com quem teve dois filhos – Carlos Flávio e Maria Julieta; o menino, entretanto, teve apenas meia hora de vida. A ele, o pai dedicou o poema O que viveu meia hora, constante da Obra Completa, edição da editora Nova Aguilar (2002).

Sua primeira publicação em livro foi Alguma Poesia (1930). A partir daí, segue-se longa lista de títulos: Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940), José (1942), A Rosa do Povo (1945), etc. A lista é tão grande que seria enfadonho publicá-la aqui nesta resenha.

Vários escritores brasileiros optaram por exercer o serviço público e com Carlos Drummond não foi diferente. Foi Chefe de Gabinete do governador Gustavo Capanema, de Minas Gerais (1933) e Chefe de Gabinete do Ministério da Educação do Brasil (1934-1945). Foram vários prêmios literários obtidos por ele: Prêmio Jabuti (1968), Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (1973), Prêmio Morgado de Mateus (1980), Prêmio Juca Pato (1982) e Ordem do Mérito Cultural (2010). Carlos Drummond de Andrade morreu no Rio de Janeiro, em 17/08/1987, aos 84 anos de idade.

O interesse por este livro, Amor Nenhum Dispensa Uma Gota de Ácido, pelo selo editorial Três Estrelas, com organização de Hélio de Seixas Guimarães, justifica-se por entender qual a relação entre o poeta mineiro e Machado de Assis. Além disto, os textos de Drummond, por si sós, são interessantes de se resgatar.

Afiliado literário do vendaval que foi a Semana de Arte Moderna, em 1922, é bastante motivante se saber como Drummond via Machado de Assis; sim, porque, de modo geral, o trator modernista condenou os escritores que vieram antes. Propunha uma nova estética, novas ideias. Desejava quebrar com tudo o que havia sido feito antes. E, certamente, Joaquim Maria Machado de Assis era um ícone a ser quebrado. Além de fama de maior escritor brasileiro, era o fundador da Academia Brasileira de Letras.

Drummond de Andrade sempre fora crítico, reflexivo, irônico. E o pesquisador Hélio de Seixas deixa isto bem claro, ao reunir ensaios do poeta.

“Mas, no princípio, Drummond teve de se defrontar com a sombra do outro, que era ainda a da velha tradição dos “mestres do passado”, na expressão de Mário de Andrade, que trouxe aos moços não só o fermento do novo, mas a necessidade de uma “deseducação salvadora”, como percebeu o próprio Drummond, jovem aprendiz modernista em 1924, ao comentar “Suas cartas”, nas Confissões de Minas.” (orelha do livro, Davi Arreguci Jr.)

O jovem Drummond, na força contestatória de sua juventude e aprendizado, não tinha o velho Machado em alta conta. Ele comenta, em Sobre a tradição em literatura:

“O que chamamos de tradição propriamente não existe. Que vem a ser uma tradição literária? Talvez o mosaico fantasista e caprichoso com que o tempo se divertiu em transformar a sucessão de obras e autores que constituem uma literatura? Não pode ser mais do que isso, e a nossa época, terrivelmente dotada de espírito crítico, acha pouco. Temos, pois, mais que o direito de desrespeitar essa falsa tradição: temos o imperioso dever.” (página 40)

E assesta sua metralhadora, no mesmo ensaio:

“Amo tal escritor patrício do século XIX, pela magia irreprimível de seu estilo e pela genuína aristocracia de seu pensamento. Mas se considerar que este escritor é um desvio na orientação que deve seguir a mentalidade de meu país, para a qual um bom estilo é o mais vicioso dos dons, e a aristocracia um refinamento ainda impossível e indesejável, que devo fazer? A resposta é clara e reta: repudiá-lo. Chamemos este escritor pelo nome: é o grande Machado de Assis. Sua obra tem sido o cipoal em que se enredou e perdeu mais de uma poderosa individualidade, seduzida pela sutileza, pela perversidade profunda e ardilosa deste romancista tão curioso e, ao cabo, tão monótono.” (página 41)

Verdadeira saia-justa, autêntica sinuca-de-bico: Drummond diz reconhecer o engenho do bruxo, seu estilo sedutor. Recusa-se, entretanto, a se render a ele pelo que Machado representa para a ideologia da modernidade. E, peremptório, arrogante até, declara, no final do texto,

“E é inútil acrescentar que temos razão: a razão está sempre com a mocidade.” (página 41)

Em outro texto, intitulado T’aí!, o autor afirma:

“É verdade que andaram por aqui uns doutores sutilíssimos, um Machado de Assis principalmente... Mas estes caixa-d’óculos vieram com os navios estúrdios de Tomé de Souza, e a culpa não é nossa, é dos navios. Estes senhores anteciparam o desenvolvimento do nosso fenômeno literário. Saiu todo errado. Nos deram uma solução em que o elemento humano em vez de se fundir com o elemento físico tende a esmagá-lo. Quando na realidade sucede o inverso: a terra bruta, por lapidar, esmagando o homem. Nem uma coisa nem outra, que diacho!” (página 44)

Aos poucos, à medida que amadurece, entretanto, Carlos sai da posição de iconoclasta para a de uma admissão de valores, ainda que resistente, como na reprodução abaixo, De costas para a Academia:

“O velho Machado continua em sua roupa de bronze, de costa para a Academia que ele fundou. Mas nem sempre será justa essa posição de amargo humorista. Sábado último, por exemplo, entrou pra lá um mineiro douto, malicioso, tão bom contador de anedotas como atento frequentador do seu Horácio, e pronunciou uma oração que nos faz esquecer muito discurso ruim proferido à sombra da imunidade acadêmica. Entre os casacas e os decotes do ritual, o Sr. Afonso Pena Júnior proferiu palavras organizadas por um pensamento claro, substancioso e amadurecido no contato do melhor humanismo. Foi bom que o recebesse o homem de alta categoria intelectual que é o Sr. Alceu Amoroso Lima. Conservo de meus vinte anos um certo preconceito acadêmico, e carinhosamente o cultivo; quisera falar mal da Academia; mas hoje não posso.” (página 61)

Em Machado sempre atual, o amadurecido Carlos escreve:

“Não entendi por que para exaltar Lima Barreto é necessário diminuir Machado de Assis. Ambos escritores indispensáveis, ambos merecedores de respeito. Essa história de ser fiel à classe está muito batida e não convence. O destino social de Machado não tem nada a ver com a qualidade de sua obra, e um conto dele, como “Pai contra mãe”, vale por três manifestos abolicionistas.” (página 148)

Voltando ao começo do livro, onde o organizador desta coletânea temática pousou, estrategicamente o melhor dos elogios a Machado, o preito mais bonito, sob o título já antecipador do que se lerá, A um bruxo, com amor:

“Em certa casa da rua Cosme Velho

(que se abre no vazio)

venho visitar-te; e me recebes

na sala trastejada com simplicidade

onde pensamentos idos e vividos

perdem o amarelo

de novo interrogando o céu e a noite.

 

Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.

Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,

uma luz que não vem de parte alguma

pois todos os castiçais

estão apagados.” (página 35)

O bonito desta coletânea é ver como, por meio de textos cronologicamente apresentados, Carlos Drummond amadurece. Amadurece como homem, como escritor. Dono de suas convicções – ele nunca abriu mão do seu estilo inovador, da sua voz literária – mas concede a César o que é de César.

Pode-se não gostar de Machado de Assis; pode-se, perfeitamente, achá-lo pessimista demais em sua visão de mundo. Negar-lhe o engenho... é já outra coisa! Além do mais, não poderia saber ainda, este querido Drummond que, um dia, ele mesmo, se transformaria em ícone para uma geração de poetas brasileiros, tendo seus trabalhos traduzidos para várias línguas do mundo. E mais, com uma vasta fortuna crítica a classificá-lo como um dos nossos maiores poetas!

Se você, leitor, gosta de ensaios e de coletâneas feitas com textos publicados em jornais, aqui vai a sugestão. Um ótimo trabalho de pesquisa do professor Hélio de Seixas. Orquestrado com muito respeito e muito amor aos dois autores envolvidos. Eu me deliciei!

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