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quarta-feira, 30 de março de 2022

Resenha nº 187 - A Sucessora, de Carolina Nabuco



Título: A Sucessora

Autora: Carolina Nabuco

Editora: Instante

Edição: s/n

Copyright: 2018

ISBN: 978-85-52994-02-2

Gênero literário: romance

Origem: literatura brasileira

 

Carolina Nabuco, nome de batismo Maria Carolina Nabuco de Araújo, nasceu em 09/02/1890, na cidade do Rio de Janeiro. Faleceu em 18/08/1981, na mesma cidade. Filha do famoso Joaquim Nabuco, como o pai, foi também batalhadora pela causa abolicionista. Ela passou grande parte de sua infância em Petrópolis; sua adolescência, entretanto, deu-se nos Estados Unidos, onde o pai fora servir como embaixador do Brasil.

Seu primeiro livro data de 1929, uma biografia do pai. Por ele, Carolina ganhou o Prêmio de Ensaio da Academia Brasileira de Letras. Trabalhando como tradutora e escritora, ela sempre se manteve discreta, como no polêmico caso que envolve precisamente seu romance A Sucessora.

Sua trajetória como escritora é pontuada com as seguintes obras: A Vida de Joaquim Nabuco (1929, biografia); A Sucessora (1934, romance); Chama e Cinzas (1947, romance); Meu Livro de Cozinha (1977, receitas culinárias); O Ladrão de Guarda-Chuva e Dez Outras Histórias (contos); Oito décadas (memórias); Santa Catarina de Siena (biografia); Virgílio de Melo Franco (biografia); Retrato dos Estados Unidos à luz da sua literatura (ensaio).

Causa-me um desconforto muito grande constatar que uma escritora como esta tenha sido relegada ao esquecimento; aliás, outras escritoras brasileiras também o foram, como, por exemplo, Dinah Silveira de Queiroz, Júlia Lopes de Almeida, Maria Firmina dos Reis... Felizmente, porém, parece haver um movimento de redescoberta destas importantes artesãs da narrativa. Há publicações recentes, como este volume que tenho, da Editora Instante.

Carolina Nabuco deveria ter escrito outras obras ficcionais. Pena, foram apenas duas, este A Sucessora e Chama e Cinzas. Abolicionista e feminista, escrevendo numa época em que a abolição acabara de acontecer, no Brasil, e em que o feminismo, como movimento, sequer existia, provavelmente, ela teria muito a nos dizer com sua prosa elegante e culta.

Linhas acima disse que A Sucessora se envolveu numa polêmica. Uma polêmica internacional. Quando a publicação da escritora inglesa, Daphne du Maurier, Rebbeca – A Mulher Inesquecível veio a lume, dando, inclusive, um filme famoso do mesmo nome, dirigido por Alfred Hitchcock, verificou-se que aquela história era muito semelhante à de A Sucessora. Esta, por sua vez, foi adaptada por Manoel Carlos como novela da TV Globo, de enorme sucesso.

A respeito, a sempre discreta Carolina Nabuco se manifestou:

“Eu fiquei muito triste. Mas pus a minha dignidade acima de interesses financeiros do filme. Um advogado norte-americano veio cá ao Brasil me perguntar se eu escrevesse um papel dizendo que podia ser coincidência, eles me pagariam uma quantia patrimonial”. (Desvelando a intimidade feminina entre o concreto e o imaginário, de Mauro de Alencar, página 5)

O crítico Álvaro Lins, muito prestigiado na época, não titubeou em afirmar que Rebbeca era plágio da obra brasileira. Daphne lançou seu romance em 1934, no mesmo ano da publicação de Carolina. As histórias eram absolutamente semelhantes.

Polêmicas à parte, Carolina Nabuco escreve com um estilo, ao mesmo tempo, leve e elegante. Pertencente à Segunda Geração Modernista – mais conhecida como A Geração de 30 – o romance da nossa escritora contribuiu para a concretização dos novos valores sociais. Leitora, desde cedo, da literatura francesa, há muitas expressões desta língua em seu texto.

Cronista de seu tempo, eis como A Sucessora se inicia:

“A volta ao Rio. O encostar do grande transatlântico. Os primeiros passos em terra firme, entre a escada de bordo e a limusine que os esperava. Depois. O movimento embalador do belo carro; o alvoroço da avenida Rio Branco ao cair da tarde, na hora do êxodo para os lares.

Tudo, até o grito dos jornaleiros, apregoando vespertinos, encantava Marina. Os marcos familiares da cidade surgindo um por um. As vitrinas que se iluminavam. O cansaço delicioso que a vencia. O aconchego em que viajava, com os olhos distraídos pela agitação exterior e a mão presa na de Roberto. A sensação feliz de se lhe abrirem na vida largos horizontes de ventura.” (página 9)

Então, temos que o casal formado por Marina e Roberto aportam ao Rio de Janeiro, recém-chegados da Europa, em viagem de lua-de-mel... Dirigem-se à mansão da Rua Paissandu, propriedade do marido. É lá que se desenvolve todo o drama narrativo; para melhor entendimento, diremos que aquele não era o habitat da bela Marina. Ela fora criada em uma fazenda, no interior do Rio de Janeiro.

O contato frequente com a natureza, com a gente simples das terras da família – agora uma fazenda em lento processo de decadência – constroem o jeito de ser de Marina:

“Mas nunca Marina conhecera o luxo e resistia-lhe inconscientemente. A fazenda protegera-a do amor ao dinheiro, não lhe dando modos de o gastar. Em Santa Rosa a vida era fácil e as necessidades poucas, mas não havia nada que se parecesse com esta riqueza de cortinas e tapetes de reluzentes painéis, de madeiras novas e de sedas frescas como na loja.” (página 12)

Num jogo de contrastes, Roberto representa a modernidade, os novos ares que respira o país:

“Este era o outro Brasil, o Brasil novo, industrial, no qual nascera Roberto, e que chamava os braços da lavoura, para as cidades, as fábricas e a tuberculose, mas que não produzira ainda, mesmo na capital, senão um fraco punhado de residências como esta, e de fortunas como a que Roberto gastava largamente, na vida organizada para o casal por Alice, no fausto que destoava dos hábitos de seus amigos e que atraía a atenção dos invejosos.” (página 12)

Esta Alice é a ex-esposa do viúvo Roberto. E o retrato dela, pintado por um célebre pintor francês, em moda em Paris, Verron, é o primeiro e impressionante contato de Marina com a casa da qual seria senhora. Um retrato posto na parede central da sala:

“Marina olhou depressa para Roberto. Percebeu ainda de seu primeiro olhar para o retrato, olhar de quem via um antigo companheiro, alguém cuja vista importasse num acréscimo de conforto moral, mas logo a boca se lhe esticou de contrariedade. Dera ordens para que o quadro fosse retirado dali, e não estava habituado a que se lhe não cumprissem as ordens. Veio a Roberto uma onda de irritação contra sua irmã por não ter respeitado o seu pedido urgente. Era bem da Germana isso, de florir-lhe a casa e ocupar-se de tudo, mas desatendendo à sua única recomendação positiva. Conhecendo-a tão bem, ele é que devia ter-lhe adivinhado a intenção, não ter tomado por aquiescência o silêncio repentino em que Germana caíra, depois de afirmar que um quadro de Verron era uma obra-prima impessoal, como o Reynolds e o Fragonard do salão nobre. Roberto deixar-se iludir pelo tom brando com que, desde a infância, a irmã costumava disfarçar sua teimosia.” (página 12)

Intensamente requisitada pelo retrato, a atenção de Marina sobre ele se detém, como que hipnotizada:

“Devia ser Alice viva. Os olhos viam. Penetravam o pensamento, olhavam o mundo como se fosse seu para conquistar, para governar. A boca palpitava. Ia falar. O corpo também ia mover-se. O veludo do vestido reluzia quase tão finamente quanto o do manto de Marina. O colar de pérolas era o mesmo que ela trazia no pescoço. Roberto percebeu este pormenor.” (página 14)

Lamentei, linhas acima, que Carolina Nabuco só tivesse produzido dois romances. Ela é uma escritora de vários recursos, sem dúvida. A tensão que se anuncia entre os dois Brasis – o agrícola, do passado e o industrial, embora por consolidar-se, do presente –, a mulher extraída de seu próprio mundo simples e o homem do mundo, a presença ainda intensiva da primeira esposa de Roberto, morta e viva no retrato, a insegura e inexperiente Marina.

Um diálogo muito bem-colocado acrescenta uma pimenta à narrativa, numa conversa entre o casal, a respeito das impressões de Marina quanto ao retrato de Alice:

“Puxou-a pela mão e ela pôs-se de pé, ainda em frente ao retrato.

— Há uma coisa que ela nos quer dizer – murmurou Marina, interrogando a imagem com olhos dilatados.

Roberto assustou-se, mas fingiu que gracejava.

— Isso é espiritismo? – perguntou.

Séria, Marina respondeu:

— Espiritismo? Deus me livre! Sou católica.

— Então não penses mais neste infeliz retrato, nestas bobagens. Como é que um retrato poderia te dizer alguma coisa?

— Quer sim, mas não percebo.” (página 17)

O tom alusivo a coisas ocultas se repete, páginas à frente, numa recepção que Marina e Roberto dão, organizada por Germana (aliás, é Germana, de fato, quem governa a casa), em que brilha a figura culta e provocativa de Munhoz:

“Laurita Menezes pusera-se a apregoar uma série de superstições e de fetiches. Bastaria a Marina fechar os olhos para acreditar-se outra vez no meio do povinho de Santa Rosa. Faltava apenas a pronúncia negra. O desembargador, abandonando as reminiscências, passara a falar de espiritismo. Tinha um reluzir de apóstolo nos olhos, tal qual o velho Carlos, cozinheiro da roça.’

— A senhora daria uma excelente médium – disse a Marina. – Tem intuição. Eu conheço pelos olhos e pelas mãos.

— Eu também vejo pelos olhos e pelas mãos de Dona Marina que ela tem intuição – intercalou Munhoz, sorrindo. – Mas não só para as influências ocultas. Para todas as influências. Vejo também que é uma natureza tímida, embora corajosa, não é?” (página 65)

O olhar percuciente do embargador Munhoz acabara de desenhar, para todos, o perfil de Marina: tímida, mas corajosa; dona de muita sensibilidade, impressionável.

Outro fato vem acrescentar mais condimento à trama (já que iniciei esta linha de metáforas temperadas). Marina, sem intenção, deixa uma ponta de cigarro cair sobre o divã da sala; o fogo começa a alastrar-se rapidamente. É contido pelos empregados da mansão, mas rende outro trecho que mostra bem como um escritor de talento constrói seu clima de mistério e suspense:

“Depois, no quarto, Isabel banhou os dedos de Marina com unguentos. Acabou, num excesso de piedade, por beijá-los, chorando tolamente.

— Foi pena ela [Alice] não queimar mesmo – disse Isabel com ar vingativo.

Marina ficou perplexa diante desse comentário estranho.  Mais de uma vez lhe parecera que Isabel tinha a intuição do seu sofrimento secreto.

Uma coruja gritou no arvoredo. Isabel parou repentinamente para ouvir. Com a expressão concentrada, a máscara ficou-lhe um tanto trágica.

— A coruja, Sinhazinha! Este pássaro desgraçado anda sempre por aí. Deus nos livre.

Marina ralhou com ela. Imitou o tom de Dona Emília repreendendo os pretos que repetiam histórias de augúrios e de feitiços. Nas censuras de Dona Emília alternavam-se a irritação e a mofa, sinceras ambas.” (página 133)

De posse destes elementos fornecidos, aqui e ali, pelo narrador onisciente de A Sucessora, o leitor analisará: sei que o principal embate será entre esta Marina, nova esposa de Roberto, e forte presença da defunta Alice. Como acabará tudo isto?

Sei que o romance tem uma história já por demais conhecida, por ter sido bastante divulgada, quer pelo filme de Hitchcock (há, ainda, um remake em rede de streaming, em catálogo), quer por muito ainda se lembrarem da telenovela. Mas, como desejo que você, leitor, busque este livro e o leia, não vou dar spoiler.

O ambiente sociopolítico é o do Brasil do começo do século. O comércio do café sofre declínio; a atividade fazendeira perde mão-de-obra para a indústria que se instala no país. A escravidão – período terrível da história do Brasil – se encerrara; mas, não de todo, uma vez que, aqueles escravos libertos, mas idosos ou acostumados à saga perversa, ainda permanecem junto aos Sinhôs e Sinhás. Como na fazenda Santa Rosa, que ainda abrigava alguns destes serviçais.

Neste caldo de cultura, move-se o político, médico e escritor, Adolfo Bezerra de Menezes. Para quem não se recorda, Bezerra de Menezes era também abolicionista e... espírita. Na verdade, uma das figuras mais importantes dos primórdios do movimento espírita brasileiro. Impossível Carolina Nabuco não ter, pelo menos, ouvido falar de Bezerra e suas atuações. Daí, justificar-se a alusão ao espiritismo.

A Sucessora: um bom romance, um clássico da literatura brasileira. Merece este lugar. Aborda uma história de fundo universal – o enfrentamento de um mundo em mutação.

Ainda uma questão que desejo abordar. Na passagem do incêndio da mansão da Rua Paissandu, uma carta do pintor Verron para Alice quase não se salva. Apenas um fragmento, como nos relata o narrador desta história:

“Da carta de Verron, Marina só encontrou um fragmento carbonizado, onde apenas eram legíveis duas palavras, em linhas diversas... vous... affection [sua... afeição].” (página 132)

Teria havido aí um caso de traição de Alice, quando esteve em Paris com Roberto, e o pintor Verron? A reação de vingança da criada Isabel contra Alice revelaria algo do caráter daquela?

Carolina Nabuco não nos revela. O narrador se cala.

Muito importante resgatarmos esta obra. Romances de fundo histórico são bons caminhos para se compreender uma época; ao dar vida a personagens em seus mundos de referência, o autor acaba por nos fornecer várias informações sobre a cultura, a sociedade, o pensamento de uma época. 

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