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sexta-feira, 8 de abril de 2022

Resenha nº 188 - Véspera, de Carla Madeira

 



Título: Véspera

Autora: Carla Madeira

Editora: Record

Edição: 1ª

Copyright: 2021

ISBN: 978-65-5587-298-9

Origem: literatura brasileira

Gênero literário: romance

 

Carla Madeira é mineira de Belo Horizonte, nascida em 1964. Formada em jornalismo e publicidade, esta escritora nos deu, até agora, três livros: Tudo é Rio (2014), A Natureza da Mordida (2018) e este, agora, Véspera (2021). Carla foi professora de redação publicitária na UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais. É sócia e diretora de criação da agência de comunicação Lápis Raro.

No ano de publicação, o primeiro livro da escritora mineira vendeu muito bem, mesmo sendo publicado por uma pequena editora. Ficou apenas atrás do campeão de vendas, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. E, este ano, Tudo é Rio teve nova edição, desta vez pela Record.

Tão logo o vi na livraria, não tive dúvidas em comprá-lo. Carla Madeira já havia firmado seu nome em meu gosto literário, constituído pelas duas leituras anteriores (ambas resenhadas neste blogue). Quando gostamos muito de um livro de algum autor, seu nome se transforma em uma referência de leitura para nós.

Véspera é um autêntico Carla Madeira. Está ali seu estilo, ao mesmo tempo, poético e realista. Carla consegue, sem negacear o aproveitamento de palavras e expressões de uso popular, manter o bom nível de seu texto exatamente pelo tratamento poético dado às situações expostas no livro, e consequentemente, à linguagem.

Como costumeiramente gostamos de fazer, transcrevemos os dois primeiros parágrafos desta história:

“Aos primeiros raios de consciência, antes de abrir os olhos, Vedina Maria dos Santos, deitada em sua cama, como um feto que se recusa a nascer, deslizou o braço no espaço vazio ao lado do seu corpo e passou a mão no lençol impecável e frio. Mais uma vez, Abel não dormira com ela. Só então franziu a testa e se levantou como se dos talhos profundos entre as sobrancelhas encontrasse forças para mais um dia.

Caminhou até o banheiro, sentou-se no vaso, os pés dois palmos separados, os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça pendida para a frente. Esvaziou a mente enquanto ouvia, do início ao fim, o som de seu mijo bater na água parada. Única meditação do dia. Dali em diante, seria invadida por intermináveis diálogos mentais. Brutos, ressentidos. Polifônicos. Estava em guerra. Queria outra vida.” (página 13)

Eis que se anuncia, de cara, o drama vivido por Abel e Vedina. Ela queria outra vida, que não aquela; Abel, seu marido, não dormira com ela. Esta ausência a incomoda, pois ela “franziu a testa e se levantou como se dos talhos profundos entre as sobrancelhas encontrasse forças para mais um dia”.

O livro tem uma interessante estrutura, na qual a ordem de numeração dos capítulos segue da seguinte forma: 1, 18, 2, 17, 3, 16, 4, 15, 5, 14, 6, 13, 7, 12, 8, 11, 9, 10, 9, 11, 8, 12, 7, 13, 6, 14, 5, 15, 4, 16, 3, 17 e 2, 18 e 1. Esta organização nos indica que a narrativa possui duas linhas temporais: uma, no passado mais distante, com o enredo seguindo os fatos ocorridos com Antunes e Custódia (pais dos gêmeos) e outra linha, no passado recente, envolvendo o que acontece com os dois irmãos. Num ponto, no final do romance, as duas linhas temporais se conectam, formando um contínuo.

Indissociável da história bíblica de Caim e Abel, a narrativa criada por Carla muda aqui alguns elementos daquele relato. Primeiramente, os dois irmãos nascem juntos, são gêmeos univitelinos. Em segundo lugar, ninguém mata o outro.

Na história bíblica de Caim e Abel, constante do capítulo 4 do Gênesis, é dito que Caim, cultivador de terra, é o filho primogênito do casal Adão e Eva. O outro filho do casal é Abel, pastor de ovelhas. Os dois adoravam a Deus, dando em oferenda parte de suas produções. Acontece que o Senhor sempre gostava mais do que lhe ofertava Abel. Caim, então, enciumado, mata Abel.

Caim se arrepende do assassinato e Deus se apieda dele, colocando-lhe um sinal para que ninguém o matasse.

Em Véspera, Caim é o filho extrovertido, aluno brilhante – é participante de um grupo de bons alunos em matemática, organizado pelo professor Bruno Jardim –, é independente. Já Abel é o contrário: introvertido, ensimesmado, aluno fraco, dependente do irmão.

Na linha temporal mais recente, a narrativa parte de um fato da vida real, que impactou muito a autora do livro. Uma mãe abandonou o filho de dois anos e meio na rua. Foi notícia no país inteiro. Transposto para a ficção, Vedina, esposa de Abel, num surto, abandona o filho Augusto na rua, de cinco anos e meio. Arrepende-se, volta para pegá-lo, mas é tarde: alguém o levou.

Na linha temporal mais distante, o casal Antunes e Custódia forma uma família disfuncional. A mulher não ama o marido e apenas se submete ao sexo com ele. Nascem, então, os gêmeos. Na hora de registrá-los, o marido executa uma vingança:

“— Por que você fez isso, Antunes? Os meninos iam se chamar Pedro e Paulo. Nós combinamos que eles iam se chamar Pedro e Paulo...

— Mudei de ideia.

— Você sabe quem foram Caim e Abel, Antunes?

— Dois irmãos.

— Um matou o outro, Antunes.

— Tenho certeza de que algum Pedro já matou algum Paulo, ou vice-versa, e como somos todos irmãos... Bobagem.

— É diferente de Caim e Abel...

— Você é supersticiosa, Custódia!

— Não, Antunes, eu sou religiosa. E você não suporta minha fé.

— Não suporto a fé que você quer que eu tenha.” (página 28)

Além da referência aos irmãos, no Gênesis, há também outra. Um dia, no quintal, os irmãos tentam construir uma torre com o que acham por ali, na intenção firme de chegar ao céu. Esta é uma alusão direta à construção da Torre de Babel:

“Mas naquela tarde, a ideia de fazer uma torre que ultrapassasse o abacateiro e os levasse às alturas, driblando o interdito do pai, teve um efeito terapêutico. Ao ouvir a voz alegre de Antunes chamando por eles na varanda, Abelzinho esqueceu-se da mágoa e gritou:

— Pai, você tem alguma coisa pra pôr na nossa pilha?

— Tenho alguma coisa bem melhor aqui comigo, uma surpresa – respondeu Antunes.” (página 42)

Constitui-se um triângulo amoroso entre uma das meninas participantes do grupo de matemática do professor Bruno Jardim, Veneza, e os irmãos. Venerada incialmente por Abel, Veneza se apaixona por Caim. Conflitos acontecem entre esta menina, de ideias mais arejadas e Custódia, muito apegada ao fundamentalismo religioso.

Vedina, que aparece logo nos primeiros parágrafos deste livro, é amiga de Veneza, igualmente participante do grupo de matemática. Ela se casa com Abel, mas como ele gosta mesmo é de Veneza, temos aqui outra bomba-relógio.

Sobre os gêmeos, a narradora – que se revela no final do livro – nos dá as seguintes informações:

“Aqueles anos de escola foram a prova mais cabal de que o belo não é feito só de beleza. Caim e Abel nasceram igualmente comuns, com proporções nada áureas. O nariz agudo, o rosto fino e os olhos simples demais. Eram estranhamente assimétricos. Não havia uma pista imediata que diferenciasse um do outro. Seguiram por muitos anos o regime de semelhança máxima, imposto pela mãe: no corte de cabelo, nas roupas, nos apetrechos. Mas, se eram idênticos por fora, a um milímetro abaixo da pele as diferenças esperneavam. Abel foi sendo Abel, Caim, sendo bonito.” (página 55)

Disse que o estilo de Carla Madeira é uma mistura de poesia e realidade, ou, dizendo melhor, um tratamento poético da realidade, como no trecho que se segue:

“Com os primeiros passos, medo das quinas. Com as brisas, medo da febre. Com o sol, medo da desidratação. Com a comida, medo dos vômitos. Com o amor, medo da perda. Com a liberdade, medo das escolhas. Medo era o que não faltava a Custódia, e ela bem sabia que o pavor repentino é uma promessa de Deus aos desobedientes. Deus mandava, mas ela não perdoava Antunes. Ah, isso ela não podia. Não sabia. Não queria.” (página 34)

Um outro exemplo:

“Mas é bom que se diga que há em nós algo que não aceita se conformar. E esperneia, desobedece, teima. Algo que não decanta nem evapora. Neles, em Caim e Abel, era a ausência de um no outro. O afeto espraiado, gotas borrifadas que parecem se desfazer no ar, mas que nas mais diferentes horas, ao comando sutil de um cheiro, um som, uma memória, dão as caras com intensidade. A saudade orbitava o peito dos dois, triste, no que a tristeza tem de ser escassez e incompletude. Mesmo em meio aos acontecimentos extraordinários, como o cálculo diferencial ou a primeira paixão, mesmo enredados por Imensa [assim apelidaram o professor de física], Parede, Veneza de Jardim, restava falta que um fazia ao outro. A memória de um paraíso que tinham desfrutado juntos. longos meses abraçados no ventre de Custódia, sem lutar como fizeram Esaú e Jacó. Tinham, ao contrário, brincado muito quando meninos, época em que brincar e amar são a mesma coisa. Podiam se distanciar, mas nunca tirar deles o que foram. Não era apenas deles que sentiam saudade, era a saudade que os fazia sentir.” (página 111)

Este Parede, que aparece na citação acima, é Paulo Parede, um amigo de Caim e Abel e entusiasta do Parkour – um esporte que consiste em vencer obstáculos (incluindo subir em lugares tidos como inacessíveis) usando apenas o impulso do corpo.

Véspera: em primeira impressão, gostei mais deste do que de A Natureza da Mordida. Quanto a Tudo é Rio, é um páreo duro. Entretanto, não sinto necessidade de determinar de qual livro de um autor gosto mais. Resta o prazer de um bom livro.


Um comentário:

Alexya Milagre disse...

Hoje acabei de ler Véspera. Que livro! Gostei muito de seu blog, parabéns pelos textos!