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quarta-feira, 20 de abril de 2022

Resenha nº 189 - Samarcanda, de Amin Maalouf

 



Título original: Samarcande

Autor: Amin Maalouf

Tradutora: Marília Scalzo

Editora: Tabla/TAG

Copyright: 1988

ISBN: 978-65-86824-22-3

Gênero literário: romance histórico

Origem: Uzbequistão

 

Amin Maalouf é um escritor franco-libanês, nascido em Beirute, em 25/02/1949. Seu pai era um libanês católico da região de Baskinta e sua mãe, Odette Ghossein, era egípcia de nascimento. Católica vinculada à igreja maronita, enviou o filho para estudar num colégio jesuíta.

Desde 1976, Amin reside na França, sendo, inclusive, membro da Academia Francesa de Letras. Maalouf exerceu o cargo de diretor do jornal de Beirute, An-Nahar, até o início da Guerra Civil Libanesa, quando se muda para Paris.

Suas obras compreendem: romances – Leão, O Africano (1986), Samarcanda (1988), Os Jardins de Luz (1991), O Século Primeiro Depois de Beatriz (1992), O Rochedo de Tânios (1993), Escalas do Levante (1996), O Périplo de Baldassare (2000), Origens (2004). Ensaios – As Identidades Assassinas (1998), As Cruzadas Vistas Pelos Árabes (1983), Um Mundo Sem Regras (2009) e o mais recente, já em catálogo no Brasil, O Naufrágio das Civilizações.

A primeira coisa que fica da leitura deste Samarcanda é que é um romance excepcional. Complexo em sua condução, aborda a Era Medieval e a Moderna da Ásia Central – mais explicitamente, a Pérsia, que depois viria a ser o Irã da atualidade. Para que o leitor comece a entender esta complexidade, aquele sempre foi um território sob várias mãos estrangeiras. Prova disto é o trecho que pincei, lá da página 269, iniciando por ele esta resenha de maneira diferente:

“— Quando cheguei a este país, não conseguia compreender como homens adultos e barbados choravam e se afligiam por um assassinato ocorrido há 1200 anos. Agora entendi. Se os persas vivem no passado, é porque o passado é sua pátria, porque o presente é para eles uma terra estrangeira em que nada lhes pertence. Tudo que para nós é símbolo de vida moderna, de expansão libertária do homem, para eles é símbolo de dominação estrangeira: as estradas são a Rússia; o trem, o telégrafo, o banco, a Inglaterra; o correio é a Áustria-Hungria...”

A Pérsia, no meu imaginário, construído em parte na infância, em parte na adolescência, é aquela dos califas misteriosos, dos tapetes voadores, dos gênios da lâmpada. E, em meio a todos estes recortes de lembranças, exalta-se a figura genial de Xerazade, a incrível protagonista de As Mil e Uma Noites.

A Pérsia é muito mais do que isto. Meio misteriosa, sim; mas é preciso, para começo de conversa, entender que império persa não é a mesma coisa que a Pérsia. O império estendeu seus domínios por terras vastas. Tanto que, Samarcanda, que já fora englobada pelo império, se ergue hoje nos domínios do Uzbequistão. Notabilizou-se por ser um centro propagador de conhecimentos científicos, mas ringue de intolerâncias diversas, na época relatada no livro:

“Por vezes, em Samarcanda, ao fim de um dia lento e tristonho, os cidadãos desocupados vêm rondar o beco das duas tavernas, perto do mercado das pimentas, não para beber o vinho almiscarado de Sogdiana, mas para espiar o vaivém ou para brigar com algum bêbado. O homem, então, é arrastado pelo chão, coberto de insultos, condenado a um inferno cujo fogo o lembrará até o fim dos tempos do brilho avermelhado do vinho tentador.” (página 17)

Este homem que “é arrastado pelo chão, coberto de insultos, condenado a um inferno” é um seguidor de Abu Ali Ibn-Sina, o famoso Avicena – nome latinizado de um dos maiores polímatas da humanidade. Polímatas são pessoas que dominam várias áreas do conhecimento humano. Esta figura também vai aparecer em outra obra resenhada neste blogue, O Físico, de Noah Gordon. A maior referência deste tipo, para nós, do ocidente, é Leonardo da Vinci: inventor, célebre pintor da Mona Lisa, anatomista, poeta e músico, matemático e engenheiro. Ufa! Os polímatas são assim, seres de outra galáxia...

A figura central de Samarcanda é, entretanto, outro polímata, conhecido como Omar Khayyam (lê-se Raiám), matemático, astrônomo, poeta – simplesmente, o autor da famosa obra Rubaiyat (o nome se refere a quadras ou quartetos, de que é composta esta coletânea). Embora tenha sido objeto de criação de Khayyam, tais poemas eram comumente desprezados. Omar elevou tal forma poética a categorias mais altas. Omar Khayyam foi importantíssimo para o império persa, pois, na qualidade de sábio, foi conselheiro de autoridades.

Estruturalmente, é o Manuscrito de Samarcanda o fio condutor de toda a história contida neste livro. O Manuscrito é o outro nome pelo qual se conhece o Rubaiyat, escrito pelo polímata, em parte, naquela cidade.

No entrecruzamento de várias facções religiosas e ideológicas, talvez seja de proveito para o leitor entender algumas. Carmatas são uma categoria que teve como objetivo construir uma sociedade baseada na razão e na igualdade. Imamianos (os que predicam a fé) são mais tradicionais. O termo remete aos imãs – pessoas encarregadas de dirigir, orientar a oração coletiva em uma mesquita e comunidade muçulmana. Rumes é um vocábulo originado de “Roma”. Após a tomada de Constantinopla (mais tarde, rebatizada Instambul), o termo foi adotado por turcos e árabes para designar os gregos do Império Bizantino (Constantinopla foi considerada a Roma do Oriente).

Neste caldo de cultura já por demais complicado, ainda mais as coisas ficaram difíceis. Os mongóis, por exemplo, dominaram a Pérsia sob o comando do Nasr Khan. Khan é um título honorífico entre os mongóis. Dois Khans famosos foram Kublai e Gêngis. Com toda a sua sabedoria, Omar Khayyam se move pisando em ovos. Ele não é uma unanimidade, detestado por facções resistentes ao ocidente e a seus valores – incluindo a filosofia.

Para se ter uma ideia, Omar não tem uma visão propriamente muçulmana de mundo; ele admite a ideia de um Deus único, mas acredita também que a natureza, separada e autônoma em relação à divindade central, condiciona muitas coisas.

Nem só de história, de invasões e domínios, batalhas sangrentas vive o enredo de Samarcanda:

“Só Khayyam não riu. De olhos fixos em Djahane, procurava o sentimento que experimenta em relação a ela; sua poesia digna, sua postura tão corajosa, no entanto ali está ela, entupida de metal amarelado, entregue a essa humilhante recompensa. Antes de abaixar o véu, levantou-o um pouco mais, revelando um olhar que Omar recebe, aspira, gostaria de reter. Um instante imperceptível para a multidão, uma eternidade para o amante. O tempo tem duas faces, diz Khayyam para si mesmo, duas dimensões, o comprimento segue o ritmo do Sol; a largura, o das paixões.” (página 44)

O Khan, quando aprecia uma declamação poética, recompensa o autor ou autora enchendo-lhe a boca com moedas de ouro, tantas quantas possa abocanhar. Djahane – personagem criada por Amin Maalouf – se tornará o amor da vida de Omar. Entretanto, não será uma relação fácil ou tranquila.

O livro tem 4 divisões: Livro Um, “Poetas e amantes”; Livro Dois, “O Paraíso dos Assassinos”; Livro Três, “O fim do milênio” e, por último, Livro Quatro, “Um poeta no mar”. Em termos de enredo, entretanto, o livro pode ser compreendido entre uma parte no passado histórico da Pérsia, com seus califas, imãs e uma diversidade imensa de ideologias e a Pérsia mais perto dos nossos dias, que faz um esforço enorme para se modernizar.

No passado, hordas de invasores mongóis, seljúcidas (turcos) e, nos dias mais atuais, palco de conflitos como a Guerra do Golfo Pérsico, já sob a influência dos Ayatolás e rebatizado para Irã. O termo deriva do persa Aryānā, cujo significado é “terra dos arianos”.

Outra figura importante – são muitos os personagens para um espaço tão pequeno, destinado a uma resenha – é Hussan Sabbah – personagem em contato com Omar Khayyam em outra cidade importante, Isfahan, uma espécie de fanático com aspirações terroristas. Ele tenta convencer os poderosos contra a ocidentalização da Pérsia; não obtendo resultados desejados, toma para si uma fortaleza nas montanhas, de nome Alamut, cria um seita de camicases assassinos e distribui o terror ao redor de si.

Sim, se você gosta de jogos digitais, é fã de Assassin’s Creed, vai reconhecer as referências. Estes camicases matadores são a Ordem dos Assassinos. Aliás, o termo inglês “creed” quer dizer crença, em português.

A história de Samarcanda contém fugas espetaculares, traições e manobras políticas. Existe uma tentativa de “por ordem na casa”, através de um americano atuante na área das finanças. A Pérsia e depois, o Irã, não se acerta neste quesito, sendo constantemente explorado em sua fragilidade por outras nações. Mas, por não compreender o modo de ser persa/iraniano, a tentativa fracassa.

Uma das coisas de que mais gostei neste excelente romance é a preservação que Amin Maalouf faz do costume oriental de elaborar parábolas e fábulas para explicar muitas ideias. Transcrevo uma delas, que dão encantamento ao romance:

“É o herói semilendário de todas as anedotas e de todas as parábolas da Pérsia, da Transoxiana e da Ásia Menor. Chirine contou:

— Dizem que um rei meio louco condenou Nasruddin à morte por ter roubado um asno. No momento em que o conduziam ao suplício, Nasruddin gritou: “Esse animal é, na verdade, meu irmão, um mágico deu-lhe essa aparência, mas se for confiado a mim por um ano farei com que reaprenda a falar como você e eu”. Intrigado, o monarca mandou que o acusado repetisse sua promessa e depois decretou: “Muito bem! Mas se em um ano, dia após dia, o asno não falar, você será executado”. Quando saiu, Nasruddin foi interpelado por sua mulher: “Como pôde prometer tal coisa? Você sabe muito bem que esse asno não vai falar”. Nasruddin respondeu: “Claro que eu sei, mas daqui a um ano o rei pode morrer, o asno pode morrer ou eu posso morrer”.” (página 339)

Neste trecho, impossível eu não fazer esta ligação, a princesa Chirine – amante do narrador desta obra – assume a função parecida com a de Xerazade, das Mil e Uma Noites: não só a de tecelã de parábolas, mas repositório de cultura.

Ao ler as páginas de Samarcanda, contendo tantas invasões, espoliações de países modernos como a Rússia, interferências americanas no Irã, podemos começar a entender por quê, afinal, aquela parte do mundo foi e é um barril de pólvora. E, um elemento perigoso a mais, há petróleo no local. Há também ódio demais ao ocidente, construído parte no passado de instabilidade social, parte no presente, com as ingerências políticas das nações modernas.

Amin Maalouf é conhecido por construir pontes entre o oriente e o ocidente. Em depoimento à revista que sempre acompanha as edições da TAG Livros, ele nos diz:

“Vivemos tempos muito estranhos. Por um lado, um avanço científico e tecnológico sem precedentes, que considero um privilégio. Não estou inclinado a dizer que “as coisas era melhores nos velhos tempos”. No entanto, esse progresso não foi acompanhado por progresso semelhante nas mentalidades. Na medida em que nos tornamos incapazes de administrar com serenidade as relações entre nações e entre comunidades, incapazes de lidar adequadamente com os efeitos secundários de nosso progresso tecnológico, incapazes de ter um senso de prioridade que pudesse ao menos assegurar a sobrevivência do ser humano. Precisamos construir um futuro diferente daquele que está à nossa frente.”

A última parte do livro traz as ações para um passado recente, mais precisamente, o ano de 1912. A bordo do famoso Titanic, o navio mais seguro e luxuoso de sua época, vão a princesa Chirine e o narrador. Uma viagem merecida, após tantas peripécias. Com eles, seguro no cofre da embarcação, segue o Manuscrito de Samarcanda, com os quartetos antigos e preciosos, de Omar Khayyam. Tudo está perfeito.

Mas, dizem, a mulher é portadora de um sexto-sentido agudíssimo. Mais, não conto.

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