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segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Resenha nº 165 - Assassinatos na Rua Morgue e Outras Histórias, de Edgar Allan Poe


ASSASSINATOS NA RUA MORGUE E OUTRAS HISTÓRIAS - 9788579492808 - Livros na  Amazon BrasilTítulo original: Murders In The Rue Morgue And Other Stories
Autor : Edgar Allan Poe
Tradutor : William Lagos
Edição : 1ª
Copyright : 2016
ISBN : 11-978-7949-280-8
Coleção : Coleção Folha Grandes Nomes da Literatura
Origem: Literatura Americana



Impressões ao ler:

Conhecia, de Poe, o impressionante poema O Corvo (há várias versões para o português, mas a minha preferida é a de Machado de Assis), um ou outro conto. Não posso dizer que Edgar Allan Poe seja meu escritor preferido, acho-o mórbido demais em alguns textos e não sou leitor assíduo de romances policiais – gênero literário do qual ele é considerado pai. Assim, compreenderá o leitor a curiosidade sobre minha própria reação ao tomar este apequenado volume para ler. Desfilam aqui O demônio da perversidade, Hop-frog e os oito orangotangos acorrentados, Os fatos que envolveram o caso de Mr. Valdemar, O gato preto, Nunca aposte sua cabeça com o Diabo e Assassinatos na Rua Morgue. Apesar do que tenho em contrário a Poe, achei-o genial; ele sabe criar uma atmosfera instigante como poucos o sabem. O outro gênero que Poe frequenta, as histórias de terror, também não me agrada. Mas, os textos têm seus mistérios e gostei bastante do conto O gato preto e de O demônio da perversidade. Inclusive, este segundo trabalho citado aqui me lembrou, de algum modo, do excelente Crime e Castigo, do escritor russo Dostoiévski (este sim, meu queridinho).

Pequena biografia:

Edgar Allan Poe (nome de batismo, Edgar Poe) nasceu em 19/01/1809 (Boston, Massachusetts) e faleceu em 07/10/1849 (Baltimore, Maryland). Contista, poeta, editor, crítico literário, em geral é considerado o pai do gênero romance policial. É referência, também, para o gênero ficção científica. Suas histórias envolvem o macabro, o mistério e a morte e fizeram a cabeça de muita gente boa pelo mundo afora.

A morte de Poe se deu em condições não muito apuradas: foi encontrado em deliriuns tremens numa rua de Baltimore, vestido com roupas que não eram suas. Ao ser recolhido, morreu quatro dias após. Diagnósticos possíveis: embriaguez, diabetes, sífilis, raiva ou doenças mentais raras.

É reconhecido que Dostoiévski conhecia a obra do americano. Há uma crítica do escritor russo sobre Poe, verdadeira para A narrativa de Arthur Gordon Pym (observa que Edgar põe o herói “na mais extraordinária situação externa ou psicológica” para relatar seu estado de alma com surpreendente precisão).

O trabalho de Poe Influenciou Sir Arthur Conan Doyle (Sherlock Holmes) e, ainda, Jules Verne, que escreveu uma continuação para A narrativa de Arthur Gordon Pym, intitulada A esfinge do gelo.

Este blog não pretende apresentar crítica literária, focando-se nas resenhas dos livros, mas é impossível, sem perda de boas referências, não citar outro trabalho polêmico, mas importante, de Poe. Trata-se de The Philosophy of Composition (A Filosofia da Composição), na qual Edgar descreve, passo a passo, o método de composição para o seu famoso poema The Raven (O Corvo). Foi tremendamente contestado, sob a alegação de que o poema citado é criativo demais para se encaixar num método tão calculado.

O livro:

Assassinatos na Rua Morgue e Outras Histórias é um livro de contos, com seis textos. No primeiro deles, O demônio da perversidade, Poe utiliza, para a introdução do conto, um longo trecho dissertativo sobre a questão da perversidade, definida pelo escritor como:
“No sentido que pretendo, é de fato um móvel sem motivo, um motivo não “motivirt” (não motivado). Através de seus estímulos, agimos sem um objetivo compreensível; ou, se quisermos entendê-lo como uma contradição em termos, podemos modificar a proposição para dizer que, através de seu estímulo, agimos pela razão de que não deveríamos agir.”
Isto torna-se importante para o caso narrado, pois explica por que o protagonista do conto, tendo cometido um assassinato quase perfeito, deixa inconscientemente, pistas que o denunciem, num jogo de gato e rato que lembra muito aquele parecido, perpetrado por Raskolnikóv, de Crime e Castigo, de Dostoiévski.

Trecho selecionado:
“A crise mais importante de nossa vida nos convoca com sons de trombeta para uma ação imediata e enérgica. Nós nos inflamamos e consumimos pela urgência de iniciar a obra cujo resultado glorioso é antecipado e alimenta todas as expectativas de nossa alma. Deve ser iniciada hoje mesmo; e todavia, adiamos para amanhã – e por quê? Não há resposta, exceto que sentimos aquela perversidade, usando a palavra sem compreensão do princípio que está por trás.” (página 8)
O segundo trabalho, Hop-frog ou Os Oito Orangotangos Acorrentados nos expõe uma situação bizarra, para dizer o mínimo. Hop-frog quer dizer rã saltadora. A ambientação é levada para um reinado, onde há um bobo da corte, Hop-frog, caracterizado como um anão e aleijado (bastante politicamente incorreto, não?). Serve de chacota para o rei e seu grupo de sete pessoas, aliás, como qualquer bobo da corte. Há uma amiga de Hop-frog, Tripetta.

No afã de querer brincadeiras novas que o divirtam, o rei e sua corte imediata se lançam, sem o saber, numa vendeta arquitetada pelo bobo e sua amiga: o último gracejo, a piada derradeira. Não termina nada bem para o rei.

Trecho selecionado:
“No que se refere ao refinamento, ou como ele os denominava, os “espíritos” da comédia, o rei não demonstrava grande interesse. Ele tinha admiração especial pela amplitude de uma pilhéria; e muitas vezes era capaz de suportar a extensão de uma história pelo prazer de seu alcance. As sutilezas da ironia logo o cansavam. Teria preferido o Gargantuá de Rabelais ao Zadig de Voltaire e, tudo considerado, as brincadeiras pesadas agradavam mais a seu gosto que os motejos meramente verbais.” (página 14)
Logo após, vêm Os fatos que envolveram o caso de Mr. Valdemar. Primeiramente, o narrador em primeira pessoa se caracteriza como um mesmerista, isto é, um magnetizador/hipnotizador. Aqui há a presença do macabro, levado a termo por uma interferência no processo da morte. É um conto de fundo escatológico, com um final repulsivo.

Trecho selecionado:

“Minha atenção, durante os últimos três anos, foi repetidamente atraída para o assunto do mesmerismo; cerca de nove meses atrás, ocorreu-me, muito subitamente que, na série de experiências realizadas até agora, houve uma omissão realmente notável e inexplicável – nenhuma pessoa tinha ainda sido hipnotizada in articulo mortis (na hora da morte).” (página 28)
A seguir, o meu conto preferido da coletânea: O gato preto. Antes, é preciso dizer que trata-se de uma verdadeira obra-prima deste gênero. Talvez o melhor trabalho de toda esta coletânea. O autor introduz na narrativa um gato preto e lembra que tal animal é referido como representante da bruxaria, do mal. O narrador e a esposa adoram o bichano, mas pouco a pouco, o narrador passa a ter repulsa por ele. E o que modifica seu estado de ânimo em relação ao bichano é o uso excessivo de álcool, causando um estado alterado de consciência.

Caracterizando-se como um narrador não confiável (está sob embriaguez constante), num acesso de fúria arranca o olho do gato, com um canivete. A partir daí, as coisas vão saindo do controle e ele acaba cometendo um assassinato. De novo, um ato não consciente o denuncia aos investigadores do caso.

Trecho selecionado:
“Não espero nem peço que acreditem nesta narrativa ao mesmo tempo estranha e despretensiosa que estou a ponto de escrever. Seria realmente doido se esperasse, neste caso em que até mesmo meus sentidos rejeitaram a própria evidência. Todavia, não sou louco e certamente não sonhei o que vou narrar. Mas amanhã morrerei e quero hoje aliviar minha alma.” (página 39)
Nunca aposte sua cabeça com o Diabo vem logo depois. É o conto de que menos gostei. O narrador constituído por Poe discute, no início, o terem dito sobre ele que nunca escrevera um conto com fundo moral. Então, faz uso de uma citação em latim, defuncti injuria ne afficiantur (não serão feitas injúrias aos mortos). Narra-se um acidente mortal e o desfecho do conto caminha para a morbidez, uma vez mais.

Trecho selecionado:
“Muitos problemas são assim poupados para os autores em geral. Um novelista, por exemplo, não precisa se preocupar nem um pouco com a moral. Ela já se encontra em seus escritos – quer dizer, deve estar em alguma parte –, assim a moral e os críticos podem tomar conta de si mesmos.” (página 54)
O último conto – Assassinatos na Rua Morgue – nos deixa claro por que Sir Arthur Conan Doyle foi tão elogioso com Poe. O narrador participante da história, em primeira pessoa, nos conta sobre certo francês, chamado Auguste Dupin. Dupin tem uma característica que se tornará famosa depois: é dono de uma perspicácia intrigante. Usa o método indutivo com maestria. Por método indutivo entende-se a pesquisa de fatos interrelacionados para se chegar a uma constatação abrangente. Há um crime aparentemente insolúvel, misterioso mesmo, no qual não se deixa claro o motivo do crime, associam-se condições sobre-humanas e testemunhos confusos, que mais embaralham do que explicam. É neste ambiente que o protagonista, Monsieur Dupin, detetive diletante, empreende sua investigação para deslindar o que a polícia não conseguiu descobrir.

Naturalmente, o enredo é bastante rocambolesco, com uma série de dados bizarros se ajuntando para criar a aparência irresolúvel.  Temos aqui uma semelhança muito grande com Sherlock Holmes e Watson. Não só de estrutura narrativa – Holmes é o protagonista como Dupin e Watson, bem como o narrador inglês de Poe, são encarregados de narrar o que se passa e servir de "escada" para a mente brilhante do protagonista em sua capacidade indutiva. Também, apresenta-se um crime com aspectos tão herméticos, que somente uma “mente equipada com suprema capacidade analítica e associativa” é capaz de desvendar.

Trecho selecionado:
“ — Não podemos julgar os meios – disse Dupin – a partir de um exame tão superficial. A polícia parisiense, que é tão exaltada por sua argúcia, é esperta, mas nada mais que isto. Não existe método em seus procedimentos, além do método sugerido pela inspiração do momento. Desfilam uma série de medidas tomadas a fim de satisfazer ao público; mas não é infrequente que estas sejam tão mal adaptadas ao objetivo proposto, que nos recordam a fase famosa de Monsieur Jourdain, que mandou buscar seu robe-de-chambre pour mieux entendre la musique (mandou buscar o roupão para melhor entender a música)”. (página 86)
As narrativas componentes desta obra são um pouco arrastadas, uma vez que Edgar Allan Poe é muito analítico. Detalhista, mesmo. A interposição de digressões, explicações tornam os trabalhos com apresentação lenta. É preciso, portanto, que o leitor esteja ciente disto para se adaptar, se desejar mesmo usufruir dos contos.

Poe consegue impor aspectos fantasmagóricos, macabros, consegue nos assustar ou causar repúdio sem apelar para fantasmas. Não é curioso, isto? Sua histórias, pelo menos neste pequeno volume, não contam com aparições sobrenaturais; aliás, aqui, o gótico prescinde do sobrenatural.

Embora não seja o gênero de minha predileção, não pretendo ficar somente neste opúsculo. A narrativa de Arthur Gordon Pym, O escaravelho do diabo, A queda da casa de Usher, O barril de Almontillado, O poço e o pêndulo, A máscara da morte escarlate, por exemplo, são contos tão famosos que tenho muita curiosidade em conhecê-los. Agora, que já venci uma primeira experiência com Edgar Allan Poe, o estranhamento e o susto passam ao largo.


segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Resenha nº 164 - Sul da Fronteira, Oeste do Sol, de Huraki Murakami


O inventário de silêncios de “Sul da Fronteira, Oeste do Sol” | by ...Título Original: Kokkyo no Minami, Taiyo no Nishi
Autor: Haruki Murakami
Tradutor: Rita Kohl
Edição: 1ª
Editora: TAG/Alfaguara
Copyright: 1992
ISBN: 978-85-5652-106-4
Gênero Literário: Romance
Origem: literatura japonesa

Impressões ao ler

A gente não sabe, previamente, se um livro vai nos apaixonar ou não. São muitos os elementos e uma capa bonita, uma edição bem cuidada são apenas dois dos ingredientes para conquistar o público. À medida que lia as primeiras páginas deste Sul da Fronteira, Oeste do Sol, foi ficando claro que estava diante de um texto que, irremissivelmente, não me largaria. A história meio misteriosa de Shimamoto e de Hajime foi decisiva, naturalmente; entretanto, o que conduziu minha leitura foi a abordagem psicológica do protagonista. Num texto que não chega a ser lento, mas que está longe do apressado, Murakami conseguiu o feito de dotá-lo da respiração adequada para o fim proposto: Hajime é o narrador-personagem que, se não se mostra todo, mostra o necessário para entendermos o fundamental de seu funcionamento psíquico. Livro candidato a leituras recorrentes.

Pequena biografia:

Haruki Murakami nasceu em Quioto, em 12/01/1949. Escritor e tradutor japonês, seus livros têm tido imenso sucesso ao redor do mundo – já foi traduzido para mais de cinquenta idiomas. Embora muito apreciado e premiado, Murakami nem sempre recebe elogios dos seus pares. Constantemente, aliás, é criticado pelo establishment literário de seu país, sendo acusado de não japonês, de escritor sem identidade com a cultura japonesa. Um peso-pesado da literatura nipônica, Kenzaburo Oe (autor de Dias Tranquilos, também já traduzido para o português), por exemplo, acusa Haruki de não refletir aspectos da cultura japonesa.

Nosso autor é filho de um sacerdote budista e sua mãe era filha de um comerciante de Osaka. Apesar de nascido em Quioto, viveu boa parte da sua juventude nas cidades de Shukugawa, Ashiya e Kobe. Frequentou a Universidade de Waseda, em Tóquio, onde dedicou-se aos estudos de teatro. Dono de um bar de jazz, o Peter Cat – experiência que repercute em Sul da Fronteira, Oeste do Sol – Murakami parte para a Europa e, posteriormente, para os Estados Unidos, onde decidiu se fixar. Seu primeiro livro foi escrito em 1979, Ouça a canção do vento, mas apenas em 1987 seu nome se tornou um sucesso no Japão, com Norwegian Wood. Aficionado aos esportes e à música, nosso escritor é bastante influenciado pela cultura ocidental. Alguns outros trabalhos de Murakami: Crônica do Pássaro de Corda, 2006; Kafka à beira-mar, 2006; Sputnik, meu amor, 2005.

O livro:

Hajime é o protagonista do livro, acumulando as funções de narrador-personagem ou, se quiserem, narrador participante da história. A voz que narra o texto é em primeira pessoa. Voz adequada para falar de suas características psíquicas, seus dramas, suas limitações e sofrimentos. Eis como tudo se inicia, nesta história:
“Eu nasci no dia 4 de janeiro de 1951. Na primeira semana do primeiro mês do primeiro ano da segunda metade do século XX. Pode-se dizer que é uma data digna de comemoração. Por isso, recebi o nome Hajime, que significa começo. De resto, não há nada notável em relação ao meu nascimento. Meu pai trabalhava em uma grande empresa de corretagem e minha mãe era dona de casa comum. Meu pai foi recrutado para o serviço militar quando estudante e enviado para Singapura, e depois da guerra passou um tempo em um campo de prisioneiros. A casa da minha mãe foi atingida pelas bombas de um B-29 e destruída pelo fogo, em 1945. Ambos pertenciam à geração marcada pela longa guerra.” (página 9)
Temos então, a partir deste introito, Hajime, pelo menos em sua infância, tendo sofrido os ecos daquela guerra mundial, da qual seus pais tiveram experiências e lembranças bem mais impactantes – viveram no cenário do conflito.

Hajime tem uma característica que vai marcá-lo durante toda a sua trajetória: é filho único numa sociedade em que as famílias eram grandes, com muitos filhos. Este sentimento de incompletude, de inadequação só vai encontrar lenitivo no contato com a jovem Shimamoto, durante a escola. Ela também é uma solitária.
“Shimamoto vestia um suéter azul de gola redonda. Ela tinha vários suéteres azuis, acho que devia gostar desta cor. Ou, quem sabe, era porque combinavam com o casaco azul-marinho que ela sempre usava na escola. A gola de sua camisa branca aparecia sob o suéter. Usava também uma saia xadrez e meias de algodão brancas. O suéter justo e o tecido macio me permitia vislumbrar o volume discreto em seu peito. Ela estava sentada no sofá com as duas pernas dobradas sob o corpo. Ouvia a música e tinha um dos cotovelos apoiado sobre o encosto e o olhar de quem contempla uma paisagem distante.
— Ei — disse ela. — você acha que é verdade que os pais que só têm um filho não se dão muito bem?
Pensei um pouco a respeito, mas não entendi muito bem a relação entre as duas coisas.
— Onde você ouviu isso?
— Alguém me falou, já faz tempo. Que quando um casal só tem um filho, é porque eles não se gostam muito. Achei triste...
— Hum...
— Seu pai e sua mãe se dão bem?
Não consegui responder na hora. Nunca tinha pensado no assunto.
— No meu caso, foi porque a saúde da minha mãe não é muito boa – falei. — Não entendo muito bem, mas parece que ter um bebê exige muito do corpo.” (páginas 18/19)
O jovem casal é visto junto por todos os lados. Serem filhos únicos os enlaça e aproxima; não é spoiler adiantar que um sentimento de amor vai se construindo e se revelando entre os dois.

Mas Hajime se muda para outra cidade, acompanhando sua família. Pouco a pouco, sua vida se solidifica com outras referências. Shimamoto e ele não mais se veem. Outra garota importante em sua vida, Izumi, aparece e ambos sentem atração. É, inclusive, com esta garota que acontece a primeira cena erótica de várias integrantes do livro:
“Ela foi à minha casa em domingo. Era começo de novembro, o dia estava muito bonito, mas já um pouco frio. Meus pais tinham saído para um compromisso familiar, acho que era aniversário de morte de alguém da minha família paterna, e na verdade era para eu ter ido também, mas disse que precisava estudar para uma prova e fiquei sozinho em casa. Eles só voltariam tarde da noite. Izumi chegou no começo da tarde. Deitamos na minha cama, ela fechou os olhos e, sem dizer nada, deixou que eu a despisse. Mas eu me atrapalhei todo. Não sou muito jeitoso no geral, e as roupas femininas são um negócio terrivelmente complexo. No meio do caminho Izumi desistiu de esperar, abriu os olhos e tirou, ela mesma, toda a roupa. Usava uma calcinha pequena azul-clara e um sutiã da mesma cor. Devia ter comprado ambos especialmente para esse dia, com o próprio dinheiro. Até então, ela sempre usava lingeries comuns, do tipo que as mães compravam para as filhas estudantes do ensino médio.” (página 37)
Hajime se torna um adulto, novas experiências chegam, ele se casa com Yukiko, tem duas filhas e abre um bar onde serve drinks fantásticos, além de ter jazz band ao vivo. O empreendimento vai tão bem que ele abre uma filial, maior e mais bem montada.

Haruki Murakami costuma se servir de elementos de fantasia para compor suas obras. Não é isso o que acontece aqui, neste Sul da Fronteira, Oeste do Sol. Optando pelo drama psicológico de Hajime, cujo fato de ser filho único é apenas um dos elementos de conflito interno – o protagonista, na verdade, não consegue encontrar seu lugar no mundo; à exceção de com Shimamoto, não consegue entender-se com as mulheres que amou – o autor realiza uma obra com fortes tintas contemporâneas.

Neste mundo líquido, como proposto pelo sociólogo Zygmunt Bauman, sofremos pelas referências semoventes. Explico-me melhor: vivemos numa época em que aquela segurança das coisas imutáveis dos tempos de nossos pais ou avós cai por terra constantemente. Valores que, até ontem nos balizavam, hoje já não nos servem mais; o que era moderno, torna-se ultrapassado. A tecnologia em ebulição cada dia nos joga mais dentro do vórtice que tudo liquidifica e absorve.

Sul da Fronteira, Oeste do Sol não propõe uma solução, nem seria esperável que o fizesse. Hajime, Shimamoto, Izumi, Yukiko são personagens à busca de sua própria identidade, e talvez, a própria sociedade japonesa que perde rapidamente suas referências do passado e de sua cultura mais tradicionais (isto é muito mais evidente numa megalópole como Tóquio) não ajuda a melhorar os conflitos internos de seus habitantes.

Os protagonistas de Murakami – está dito na revista da TAG que acompanha esta bela edição – são, normalmente, homens maduros na casa dos trinta e poucos anos, tendo que lidar com seus fantasmas. Fazem parte do cardápio relações amorosas tumultuadas.

Duas imagens atravessam a narrativa, constituindo-se em duas referências literárias: uma é o deserto: “cada um vive do seu jeito, morre do seu jeito. Mas isso não importa muito. No fim, sobra apenas o deserto. A única coisa viva de verdade é o deserto”. É curiosa esta associação, pois deserto é tradicionalmente concebido como um lugar cuja vida não vinga. Torna-se, nas mãos de Murakami, e de modo amargo, “a única coisa viva de verdade”.

A segunda, é a água. Mas o significado que se pode atribuir não será somente o de representar a vida. Como vem sempre associado ao feminino, e em contraste claro com a imagem  do deserto (sem água), pode ser lido como “proporcionadora de vida”. Num belo trecho, Murakami escreve: “eu a olhei nos olhos. eram como a água de uma nascente silenciosa, à sombra de uma rocha, fora do alcance do vento. Tudo estático, sem nenhum movimento. Tive a impressão de que, se ficasse olhando, conseguiria ver os reflexos na superfície da água”.

Sul da Fronteira, Oeste do Sol, afinal, deve seu título a uma música de Nat King Cole, que Hajime e Shimamoto escutam com frequência (South of the Border, West of the Sun). A oeste do sol está a Sibéria, território permanentemente frio, em cujo inverno árido e rigoroso obriga as pessoas a viverem em isolamento dentro de suas casas.

A letra da música diz, em sua primeira estrofe, “South of the Border – down Mexico way/That’s were I fell in love, where the stars above – come out to play/And now as I wander – my thoughts ever stray” (Sul da fronteira – no caminho do México/Foi aí que eu me apaixonei, onde as estrelas acima – saíram para brincar/E agora, enquanto vagueio – meus pensamentos sempre se perdem).

De novo, a associação de uma vida sem significado, gerando seres perdidos por um lado e, por outro, o amor que seria o antídoto para a solidão. Não obstante, na minha leitura deste livro de Murakami, nem o amor consegue realizar a união dos seres.

Outro ponto a depender de interpretação envolve a personagem Shimamoto. Para alguns leitores, ela seria uma idealização de Hajime, não teria, portanto, existência dentro da história. Rita Kohl, a tradutora da obra e autora de um excelente posfácio que acompanha o livro, entende ser possível tal caminho interpretativo, mas não concorda com ele. Eu, também não. Há muitas pistas, muitas passagens deixadas pelo autor que me permitem construir um raciocínio interpretativo segundo o qual Shimamoto seja personagem “real”, assim como Hajime, Izumi ou os demais seres. Infelizmente, não posso defender minha interpretação com excertos do livro, porque aí eu encheria esta resenha de spoilers.

Esta é a primeira obra de ficção de Haruki Murakami que leio. Por todas as informações obtidas sobre o autor, seus livros, seus personagens, suas preferências temáticas, ambientação, posso dizer-me interessado em ler outros livros dele.

Disse acima ter sido esta a primeira obra de ficção de Murakami que leio. Isto porque, em 2017, no mês de maio, li o livro Romancista como vocação, uma não ficção exatamente de Haruki Murakami e o postei neste blogue.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Resenha nº 163 - Ponto Cardeal, de Léonor de Récondo


Que reste t'il de nos amours — Algumas poucas linhas sobre “Ponto ...Título original: Point Cardinal
Autora: Léonor de Récondo
Tradutor: Amilcar Bettega
Editora: TAG/Dublinense
Copyright: 2020
ISBN: 978-85-83138-141-5
Gênero literário: Romance
Origem: França
Outros livros da autora: La Grâce du cyprès blanc, 2010; Rêves oubliés, 2012; Pietra viva, 2013; Amours, 2015.

Primeiras impressões ao ler :

Para onde me conduzirá este livro – indaguei-me, com ele na mão, sentado no sofá da sala da minha casa. A página de abertura do romance não deseja me revelar coisa nenhuma de importante. Apenas uma tal Mathilda, trocando roupa furtivamente dentro do seu carro, parado num estacionamento. O texto é fluido, sem palavras difíceis. Os capítulos, curtinhos. Léonor de Récondo é autora francesa completamente desconhecida para mim. O livro também é curto: 176 páginas. O estilo é inquieto – impressão colhida da pequena dimensão dos capítulos, com poucas cenas dentro de cada um deles. Récondo não enrola muito para dizer o que deseja. Contida. O livro já me pega de cara, acho que vou gostar dele!

Pequena biografia:

Combinadas com o pouco que há sobre a autora, no próprio livro e o pouco que consegui garimpar na Wikepédia, temos o seguinte: Léonor de Récondo nasceu na França em 1976. Começou a tocar violino aos cinco anos de idade. Tornou-se uma violinista barroca e foi laureada com o prêmio van Wassenaer (Noruega), em 2004. Também é escritora, conseguindo o prêmio Grand-Prix RTL-Lire (2015), com Amores. Em 2017, lançou Ponto Cardeal e com ele ganhou o Prix du Roman des Étudiants France Culture-Télérama. Simples assim.

O livro:

O parágrafo de abertura não me adianta muita coisa: detém-se em detalhes de uma mulher que manobra o carro num estacionamento de supermercado.
“Mathilda contorna a rotatória e entra no estacionamento do supermercado. Quase ninguém àquela hora. Escolhe uma vaga longe da entrada, desliga o motor, coloca o CD na fenda do painel. Sob a sombra do enorme letreiro, a música surge, o volume no máximo.
Oh Lord who will comfort me ? » (página 11)

Continua a descrição desta mulher se despindo dentro do carro, trocando a roupa. Por que cargas d’água uma mulher decide trocar de roupa dentro de um carro? Bastante suspeito, não, caro leitor? O mais normal seria que ela fosse se trocar no banheiro feminino. Mas a apresentação do personagem segue:
“É a terceira vez que Melody Gardot começa uma canção. Mathilda faz uma pausa em sua operação e canta com ela, tamborilando no volante. Se tivesse coragem, desceria do carro e dançaria ali mesmo. Abriria bem as portas, ignorando os curiosos, dançaria com movimentos ondulantes e batendo palmas, se deixaria ser vista. Mas ela não ousa.” (página 12)

Sedutora, ousada na intenção, sensual: "agora, ela já tirou toda a roupa; a calcinha e a meia-calça se enrodilham nos tornozelos”. Sem aviso, a escritora muda a cena e ficamos no ar, procurando fios de coerência para ligar o que já sabemos com o que se segue; nossos olhos retornam, na tentativa de recuperar algo que não tenha ficado bem lido, se perdido entre as frases. Mas está ok, é isto mesmo, é um salto – arrume-se como puder. E recomeça:
“Laurent está completamente nu. Ele apanha a mochila no banco de trás e a coloca no do carona, vasculha lá dentro, tira um calção, uma calça de abrigo, uma camiseta e um tênis. Tem pressa. O carro está repleto de peças de roupas, de lencinhos usados. Um caos que reflete a desordem interior. Irritado por ter tirado seus trajes de luz, Laurent volta à sombra, se veste, se crispa, arruma tudo o que tem de ser arrumado dentro da maleta que voltará para o seu refúgio no porta-malas, sob o tapete. Vai lhe restar apenas a mentira.” (página12)

Será possível que é isso mesmo que eu entendi da leitura? – suspeitamos, sem ainda construir uma certeza. Mas o parágrafo seguinte me traz outro elemento em comum. Vejamos:
“Poucos minutos depois ele está pronto. Da desordem já não se vê mais nada. Ao dar partida no carro, ele corta a voz de Melody Gardot. O rádio despeja agora as últimas do noticiário. Ele precisa se concentrar, a casa não fica longe. Tem pouco tempo para se acalmar, para esquecer os momentos de alegria, Cynthia e as amigas do ZanziBar, a música e a seda.” (página 13)

Pronto. Agora não há mais dúvida: Mathilda e Laurent são a mesma pessoa. O traço em comum que une as duas cenas, estabelecendo-lhes a coerência é a música de Melody Gardot. Até aqui, vinha a hipótese, a suspeita; agora, não mais. A certeza. E mais, como mulher, ela abandona suas roupas, seus trajes de luz. Se eram trajes de luz, por oposição, os trajes de homem não o são, o que é confirmado pela expressão Laurent volta à sombra. Então, Laurent-Mathilda só se sente iluminado quando se veste de mulher.

Laurent é casado com Simone, é uma relação duradoura, feliz. Tem um casal de filhos, Claire e Thomas. Mantém uma vida dupla, sempre tomando cuidado para não deixar transparecer sua identidade feminina. No trabalho, é a mesma coisa. Laurent é um profissional competente, faz falta na empresa em que trabalha.
Na vida mais reservada do casal, entretanto, alguns indícios de Mathilda aparecem em Laurent:
“Quando Solange o vira sair do banheiro com as pernas raspadas, olhara para ele meio espantada. Ele tinha dado a desculpa do vento, que oferecia mais resistência com os pelos – sim, mesmo dentro da academia, ele acrescentara, e, sabe, também o suor escorre mais facilmente. Todos os ciclistas fazem isso. Ela zombara discretamente do seu argumento, mas ele não dera atenção.” (página 16)

A única pessoa com quem Laurent pode dizer do seu conflito, da sua busca de identidade de gênero é Cynthia:
“Cynthia, conheço teus diferentes olhares, os que me afagam, que me adivinham, os que às vezes me julgam, os olhares abatidos por me ver tão covarde. Quanto tempo é preciso para a gente ser a gente mesmo? E eu gostaria de perguntar isso a todos os que não precisam trocar de sexo. Quantos anos, décadas, para estar em conformidade? Conformidade de corpo, conformidade de sonhos, conformidade de pensamentos, com aquilo que somos profundamente, esta matéria bruta da qual sobram uns poucos restos antes que ela seja forjada, alisada, remendada pela sociedade, pelos outros e seus olhares, nossas ilusões e nossas feridas.” (página 75)

E a bomba se anuncia, num pacato jantar em família:
“Mas Laurent atalha:
— Não, não vamos mudar de assunto. Falemos, a gente tem que falar! Não é você a primeira a dizer que é preciso verbalizar? Pois bem, já é hora...
O pânico desfigura o rosto de Solange. Laurent limpa a garganta.
— Meus filhos, eu sou uma mulher.” (página 79)

A partir daqui, caro leitor, nada mais devo acrescentar do enredo. Spoilers não são bem vindos, embora pessoalmente, não me importe com eles. Saber como tudo termina, o que vai acontecer, não me tira o prazer de ler ou de ver um filme. Tanto assim, que releio muito, revejo filmes. Mas há os que não gostem.

Uma das consequências que o contato com intensa e variada leitura pode nos trazer é a empatia. Não sei bem por que mistério, exercemos nossa capacidade de compaixão mais facilmente com personagens de uma boa história. Artimanhas do autor, que deseja mesma ganhar nossa simpatia para aquele ser que ele cria, ou, talvez, ao investirmos nossos sentimentos em seres feitos de discurso, os transformamos em substitutos de seres humanos – muito mais complexos de se lidar e com maior potencial de nos decepcionar.

Mas, eu já estava pensando cá com meus botões, quando viria parar nas minhas mãos outra história na mesma linha daquela A Garota Dinamarquesa, de que tanto gostei...

Creio que não é uma questão de nos identificarmos com um homem que não consiga conviver com seu feminino. Até nas plantas, entre os animais, há discrepância entre  gênero e sexo. Penso que, ganharemos maior profundidade se vislumbrarmos, numa história como esta, a luta de uma pessoa (homem ou mulher) para assumir a totalidade de sua expressão como ser e ter a chance de ser feliz.

Uma psique masculina funciona bem num corpo masculino; uma psique feminina encontra sua forma de expressão num corpo feminino. E, por feminino ou masculino, aqui, não me restrinjo meramente ao conceito de genitália – esta polaridade vai muito além do físico.

Um livro muito interessante de se ler. Ponto Cardeal foi uma grata surpresa e, provavelmente, em algum lugar do futuro já está reservado um espaço para releitura dele.