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quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Resenha nº 163 - Ponto Cardeal, de Léonor de Récondo


Que reste t'il de nos amours — Algumas poucas linhas sobre “Ponto ...Título original: Point Cardinal
Autora: Léonor de Récondo
Tradutor: Amilcar Bettega
Editora: TAG/Dublinense
Copyright: 2020
ISBN: 978-85-83138-141-5
Gênero literário: Romance
Origem: França
Outros livros da autora: La Grâce du cyprès blanc, 2010; Rêves oubliés, 2012; Pietra viva, 2013; Amours, 2015.

Primeiras impressões ao ler :

Para onde me conduzirá este livro – indaguei-me, com ele na mão, sentado no sofá da sala da minha casa. A página de abertura do romance não deseja me revelar coisa nenhuma de importante. Apenas uma tal Mathilda, trocando roupa furtivamente dentro do seu carro, parado num estacionamento. O texto é fluido, sem palavras difíceis. Os capítulos, curtinhos. Léonor de Récondo é autora francesa completamente desconhecida para mim. O livro também é curto: 176 páginas. O estilo é inquieto – impressão colhida da pequena dimensão dos capítulos, com poucas cenas dentro de cada um deles. Récondo não enrola muito para dizer o que deseja. Contida. O livro já me pega de cara, acho que vou gostar dele!

Pequena biografia:

Combinadas com o pouco que há sobre a autora, no próprio livro e o pouco que consegui garimpar na Wikepédia, temos o seguinte: Léonor de Récondo nasceu na França em 1976. Começou a tocar violino aos cinco anos de idade. Tornou-se uma violinista barroca e foi laureada com o prêmio van Wassenaer (Noruega), em 2004. Também é escritora, conseguindo o prêmio Grand-Prix RTL-Lire (2015), com Amores. Em 2017, lançou Ponto Cardeal e com ele ganhou o Prix du Roman des Étudiants France Culture-Télérama. Simples assim.

O livro:

O parágrafo de abertura não me adianta muita coisa: detém-se em detalhes de uma mulher que manobra o carro num estacionamento de supermercado.
“Mathilda contorna a rotatória e entra no estacionamento do supermercado. Quase ninguém àquela hora. Escolhe uma vaga longe da entrada, desliga o motor, coloca o CD na fenda do painel. Sob a sombra do enorme letreiro, a música surge, o volume no máximo.
Oh Lord who will comfort me ? » (página 11)

Continua a descrição desta mulher se despindo dentro do carro, trocando a roupa. Por que cargas d’água uma mulher decide trocar de roupa dentro de um carro? Bastante suspeito, não, caro leitor? O mais normal seria que ela fosse se trocar no banheiro feminino. Mas a apresentação do personagem segue:
“É a terceira vez que Melody Gardot começa uma canção. Mathilda faz uma pausa em sua operação e canta com ela, tamborilando no volante. Se tivesse coragem, desceria do carro e dançaria ali mesmo. Abriria bem as portas, ignorando os curiosos, dançaria com movimentos ondulantes e batendo palmas, se deixaria ser vista. Mas ela não ousa.” (página 12)

Sedutora, ousada na intenção, sensual: "agora, ela já tirou toda a roupa; a calcinha e a meia-calça se enrodilham nos tornozelos”. Sem aviso, a escritora muda a cena e ficamos no ar, procurando fios de coerência para ligar o que já sabemos com o que se segue; nossos olhos retornam, na tentativa de recuperar algo que não tenha ficado bem lido, se perdido entre as frases. Mas está ok, é isto mesmo, é um salto – arrume-se como puder. E recomeça:
“Laurent está completamente nu. Ele apanha a mochila no banco de trás e a coloca no do carona, vasculha lá dentro, tira um calção, uma calça de abrigo, uma camiseta e um tênis. Tem pressa. O carro está repleto de peças de roupas, de lencinhos usados. Um caos que reflete a desordem interior. Irritado por ter tirado seus trajes de luz, Laurent volta à sombra, se veste, se crispa, arruma tudo o que tem de ser arrumado dentro da maleta que voltará para o seu refúgio no porta-malas, sob o tapete. Vai lhe restar apenas a mentira.” (página12)

Será possível que é isso mesmo que eu entendi da leitura? – suspeitamos, sem ainda construir uma certeza. Mas o parágrafo seguinte me traz outro elemento em comum. Vejamos:
“Poucos minutos depois ele está pronto. Da desordem já não se vê mais nada. Ao dar partida no carro, ele corta a voz de Melody Gardot. O rádio despeja agora as últimas do noticiário. Ele precisa se concentrar, a casa não fica longe. Tem pouco tempo para se acalmar, para esquecer os momentos de alegria, Cynthia e as amigas do ZanziBar, a música e a seda.” (página 13)

Pronto. Agora não há mais dúvida: Mathilda e Laurent são a mesma pessoa. O traço em comum que une as duas cenas, estabelecendo-lhes a coerência é a música de Melody Gardot. Até aqui, vinha a hipótese, a suspeita; agora, não mais. A certeza. E mais, como mulher, ela abandona suas roupas, seus trajes de luz. Se eram trajes de luz, por oposição, os trajes de homem não o são, o que é confirmado pela expressão Laurent volta à sombra. Então, Laurent-Mathilda só se sente iluminado quando se veste de mulher.

Laurent é casado com Simone, é uma relação duradoura, feliz. Tem um casal de filhos, Claire e Thomas. Mantém uma vida dupla, sempre tomando cuidado para não deixar transparecer sua identidade feminina. No trabalho, é a mesma coisa. Laurent é um profissional competente, faz falta na empresa em que trabalha.
Na vida mais reservada do casal, entretanto, alguns indícios de Mathilda aparecem em Laurent:
“Quando Solange o vira sair do banheiro com as pernas raspadas, olhara para ele meio espantada. Ele tinha dado a desculpa do vento, que oferecia mais resistência com os pelos – sim, mesmo dentro da academia, ele acrescentara, e, sabe, também o suor escorre mais facilmente. Todos os ciclistas fazem isso. Ela zombara discretamente do seu argumento, mas ele não dera atenção.” (página 16)

A única pessoa com quem Laurent pode dizer do seu conflito, da sua busca de identidade de gênero é Cynthia:
“Cynthia, conheço teus diferentes olhares, os que me afagam, que me adivinham, os que às vezes me julgam, os olhares abatidos por me ver tão covarde. Quanto tempo é preciso para a gente ser a gente mesmo? E eu gostaria de perguntar isso a todos os que não precisam trocar de sexo. Quantos anos, décadas, para estar em conformidade? Conformidade de corpo, conformidade de sonhos, conformidade de pensamentos, com aquilo que somos profundamente, esta matéria bruta da qual sobram uns poucos restos antes que ela seja forjada, alisada, remendada pela sociedade, pelos outros e seus olhares, nossas ilusões e nossas feridas.” (página 75)

E a bomba se anuncia, num pacato jantar em família:
“Mas Laurent atalha:
— Não, não vamos mudar de assunto. Falemos, a gente tem que falar! Não é você a primeira a dizer que é preciso verbalizar? Pois bem, já é hora...
O pânico desfigura o rosto de Solange. Laurent limpa a garganta.
— Meus filhos, eu sou uma mulher.” (página 79)

A partir daqui, caro leitor, nada mais devo acrescentar do enredo. Spoilers não são bem vindos, embora pessoalmente, não me importe com eles. Saber como tudo termina, o que vai acontecer, não me tira o prazer de ler ou de ver um filme. Tanto assim, que releio muito, revejo filmes. Mas há os que não gostem.

Uma das consequências que o contato com intensa e variada leitura pode nos trazer é a empatia. Não sei bem por que mistério, exercemos nossa capacidade de compaixão mais facilmente com personagens de uma boa história. Artimanhas do autor, que deseja mesma ganhar nossa simpatia para aquele ser que ele cria, ou, talvez, ao investirmos nossos sentimentos em seres feitos de discurso, os transformamos em substitutos de seres humanos – muito mais complexos de se lidar e com maior potencial de nos decepcionar.

Mas, eu já estava pensando cá com meus botões, quando viria parar nas minhas mãos outra história na mesma linha daquela A Garota Dinamarquesa, de que tanto gostei...

Creio que não é uma questão de nos identificarmos com um homem que não consiga conviver com seu feminino. Até nas plantas, entre os animais, há discrepância entre  gênero e sexo. Penso que, ganharemos maior profundidade se vislumbrarmos, numa história como esta, a luta de uma pessoa (homem ou mulher) para assumir a totalidade de sua expressão como ser e ter a chance de ser feliz.

Uma psique masculina funciona bem num corpo masculino; uma psique feminina encontra sua forma de expressão num corpo feminino. E, por feminino ou masculino, aqui, não me restrinjo meramente ao conceito de genitália – esta polaridade vai muito além do físico.

Um livro muito interessante de se ler. Ponto Cardeal foi uma grata surpresa e, provavelmente, em algum lugar do futuro já está reservado um espaço para releitura dele.

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