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segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Resenha nº 165 - Assassinatos na Rua Morgue e Outras Histórias, de Edgar Allan Poe


ASSASSINATOS NA RUA MORGUE E OUTRAS HISTÓRIAS - 9788579492808 - Livros na  Amazon BrasilTítulo original: Murders In The Rue Morgue And Other Stories
Autor : Edgar Allan Poe
Tradutor : William Lagos
Edição : 1ª
Copyright : 2016
ISBN : 11-978-7949-280-8
Coleção : Coleção Folha Grandes Nomes da Literatura
Origem: Literatura Americana



Impressões ao ler:

Conhecia, de Poe, o impressionante poema O Corvo (há várias versões para o português, mas a minha preferida é a de Machado de Assis), um ou outro conto. Não posso dizer que Edgar Allan Poe seja meu escritor preferido, acho-o mórbido demais em alguns textos e não sou leitor assíduo de romances policiais – gênero literário do qual ele é considerado pai. Assim, compreenderá o leitor a curiosidade sobre minha própria reação ao tomar este apequenado volume para ler. Desfilam aqui O demônio da perversidade, Hop-frog e os oito orangotangos acorrentados, Os fatos que envolveram o caso de Mr. Valdemar, O gato preto, Nunca aposte sua cabeça com o Diabo e Assassinatos na Rua Morgue. Apesar do que tenho em contrário a Poe, achei-o genial; ele sabe criar uma atmosfera instigante como poucos o sabem. O outro gênero que Poe frequenta, as histórias de terror, também não me agrada. Mas, os textos têm seus mistérios e gostei bastante do conto O gato preto e de O demônio da perversidade. Inclusive, este segundo trabalho citado aqui me lembrou, de algum modo, do excelente Crime e Castigo, do escritor russo Dostoiévski (este sim, meu queridinho).

Pequena biografia:

Edgar Allan Poe (nome de batismo, Edgar Poe) nasceu em 19/01/1809 (Boston, Massachusetts) e faleceu em 07/10/1849 (Baltimore, Maryland). Contista, poeta, editor, crítico literário, em geral é considerado o pai do gênero romance policial. É referência, também, para o gênero ficção científica. Suas histórias envolvem o macabro, o mistério e a morte e fizeram a cabeça de muita gente boa pelo mundo afora.

A morte de Poe se deu em condições não muito apuradas: foi encontrado em deliriuns tremens numa rua de Baltimore, vestido com roupas que não eram suas. Ao ser recolhido, morreu quatro dias após. Diagnósticos possíveis: embriaguez, diabetes, sífilis, raiva ou doenças mentais raras.

É reconhecido que Dostoiévski conhecia a obra do americano. Há uma crítica do escritor russo sobre Poe, verdadeira para A narrativa de Arthur Gordon Pym (observa que Edgar põe o herói “na mais extraordinária situação externa ou psicológica” para relatar seu estado de alma com surpreendente precisão).

O trabalho de Poe Influenciou Sir Arthur Conan Doyle (Sherlock Holmes) e, ainda, Jules Verne, que escreveu uma continuação para A narrativa de Arthur Gordon Pym, intitulada A esfinge do gelo.

Este blog não pretende apresentar crítica literária, focando-se nas resenhas dos livros, mas é impossível, sem perda de boas referências, não citar outro trabalho polêmico, mas importante, de Poe. Trata-se de The Philosophy of Composition (A Filosofia da Composição), na qual Edgar descreve, passo a passo, o método de composição para o seu famoso poema The Raven (O Corvo). Foi tremendamente contestado, sob a alegação de que o poema citado é criativo demais para se encaixar num método tão calculado.

O livro:

Assassinatos na Rua Morgue e Outras Histórias é um livro de contos, com seis textos. No primeiro deles, O demônio da perversidade, Poe utiliza, para a introdução do conto, um longo trecho dissertativo sobre a questão da perversidade, definida pelo escritor como:
“No sentido que pretendo, é de fato um móvel sem motivo, um motivo não “motivirt” (não motivado). Através de seus estímulos, agimos sem um objetivo compreensível; ou, se quisermos entendê-lo como uma contradição em termos, podemos modificar a proposição para dizer que, através de seu estímulo, agimos pela razão de que não deveríamos agir.”
Isto torna-se importante para o caso narrado, pois explica por que o protagonista do conto, tendo cometido um assassinato quase perfeito, deixa inconscientemente, pistas que o denunciem, num jogo de gato e rato que lembra muito aquele parecido, perpetrado por Raskolnikóv, de Crime e Castigo, de Dostoiévski.

Trecho selecionado:
“A crise mais importante de nossa vida nos convoca com sons de trombeta para uma ação imediata e enérgica. Nós nos inflamamos e consumimos pela urgência de iniciar a obra cujo resultado glorioso é antecipado e alimenta todas as expectativas de nossa alma. Deve ser iniciada hoje mesmo; e todavia, adiamos para amanhã – e por quê? Não há resposta, exceto que sentimos aquela perversidade, usando a palavra sem compreensão do princípio que está por trás.” (página 8)
O segundo trabalho, Hop-frog ou Os Oito Orangotangos Acorrentados nos expõe uma situação bizarra, para dizer o mínimo. Hop-frog quer dizer rã saltadora. A ambientação é levada para um reinado, onde há um bobo da corte, Hop-frog, caracterizado como um anão e aleijado (bastante politicamente incorreto, não?). Serve de chacota para o rei e seu grupo de sete pessoas, aliás, como qualquer bobo da corte. Há uma amiga de Hop-frog, Tripetta.

No afã de querer brincadeiras novas que o divirtam, o rei e sua corte imediata se lançam, sem o saber, numa vendeta arquitetada pelo bobo e sua amiga: o último gracejo, a piada derradeira. Não termina nada bem para o rei.

Trecho selecionado:
“No que se refere ao refinamento, ou como ele os denominava, os “espíritos” da comédia, o rei não demonstrava grande interesse. Ele tinha admiração especial pela amplitude de uma pilhéria; e muitas vezes era capaz de suportar a extensão de uma história pelo prazer de seu alcance. As sutilezas da ironia logo o cansavam. Teria preferido o Gargantuá de Rabelais ao Zadig de Voltaire e, tudo considerado, as brincadeiras pesadas agradavam mais a seu gosto que os motejos meramente verbais.” (página 14)
Logo após, vêm Os fatos que envolveram o caso de Mr. Valdemar. Primeiramente, o narrador em primeira pessoa se caracteriza como um mesmerista, isto é, um magnetizador/hipnotizador. Aqui há a presença do macabro, levado a termo por uma interferência no processo da morte. É um conto de fundo escatológico, com um final repulsivo.

Trecho selecionado:

“Minha atenção, durante os últimos três anos, foi repetidamente atraída para o assunto do mesmerismo; cerca de nove meses atrás, ocorreu-me, muito subitamente que, na série de experiências realizadas até agora, houve uma omissão realmente notável e inexplicável – nenhuma pessoa tinha ainda sido hipnotizada in articulo mortis (na hora da morte).” (página 28)
A seguir, o meu conto preferido da coletânea: O gato preto. Antes, é preciso dizer que trata-se de uma verdadeira obra-prima deste gênero. Talvez o melhor trabalho de toda esta coletânea. O autor introduz na narrativa um gato preto e lembra que tal animal é referido como representante da bruxaria, do mal. O narrador e a esposa adoram o bichano, mas pouco a pouco, o narrador passa a ter repulsa por ele. E o que modifica seu estado de ânimo em relação ao bichano é o uso excessivo de álcool, causando um estado alterado de consciência.

Caracterizando-se como um narrador não confiável (está sob embriaguez constante), num acesso de fúria arranca o olho do gato, com um canivete. A partir daí, as coisas vão saindo do controle e ele acaba cometendo um assassinato. De novo, um ato não consciente o denuncia aos investigadores do caso.

Trecho selecionado:
“Não espero nem peço que acreditem nesta narrativa ao mesmo tempo estranha e despretensiosa que estou a ponto de escrever. Seria realmente doido se esperasse, neste caso em que até mesmo meus sentidos rejeitaram a própria evidência. Todavia, não sou louco e certamente não sonhei o que vou narrar. Mas amanhã morrerei e quero hoje aliviar minha alma.” (página 39)
Nunca aposte sua cabeça com o Diabo vem logo depois. É o conto de que menos gostei. O narrador constituído por Poe discute, no início, o terem dito sobre ele que nunca escrevera um conto com fundo moral. Então, faz uso de uma citação em latim, defuncti injuria ne afficiantur (não serão feitas injúrias aos mortos). Narra-se um acidente mortal e o desfecho do conto caminha para a morbidez, uma vez mais.

Trecho selecionado:
“Muitos problemas são assim poupados para os autores em geral. Um novelista, por exemplo, não precisa se preocupar nem um pouco com a moral. Ela já se encontra em seus escritos – quer dizer, deve estar em alguma parte –, assim a moral e os críticos podem tomar conta de si mesmos.” (página 54)
O último conto – Assassinatos na Rua Morgue – nos deixa claro por que Sir Arthur Conan Doyle foi tão elogioso com Poe. O narrador participante da história, em primeira pessoa, nos conta sobre certo francês, chamado Auguste Dupin. Dupin tem uma característica que se tornará famosa depois: é dono de uma perspicácia intrigante. Usa o método indutivo com maestria. Por método indutivo entende-se a pesquisa de fatos interrelacionados para se chegar a uma constatação abrangente. Há um crime aparentemente insolúvel, misterioso mesmo, no qual não se deixa claro o motivo do crime, associam-se condições sobre-humanas e testemunhos confusos, que mais embaralham do que explicam. É neste ambiente que o protagonista, Monsieur Dupin, detetive diletante, empreende sua investigação para deslindar o que a polícia não conseguiu descobrir.

Naturalmente, o enredo é bastante rocambolesco, com uma série de dados bizarros se ajuntando para criar a aparência irresolúvel.  Temos aqui uma semelhança muito grande com Sherlock Holmes e Watson. Não só de estrutura narrativa – Holmes é o protagonista como Dupin e Watson, bem como o narrador inglês de Poe, são encarregados de narrar o que se passa e servir de "escada" para a mente brilhante do protagonista em sua capacidade indutiva. Também, apresenta-se um crime com aspectos tão herméticos, que somente uma “mente equipada com suprema capacidade analítica e associativa” é capaz de desvendar.

Trecho selecionado:
“ — Não podemos julgar os meios – disse Dupin – a partir de um exame tão superficial. A polícia parisiense, que é tão exaltada por sua argúcia, é esperta, mas nada mais que isto. Não existe método em seus procedimentos, além do método sugerido pela inspiração do momento. Desfilam uma série de medidas tomadas a fim de satisfazer ao público; mas não é infrequente que estas sejam tão mal adaptadas ao objetivo proposto, que nos recordam a fase famosa de Monsieur Jourdain, que mandou buscar seu robe-de-chambre pour mieux entendre la musique (mandou buscar o roupão para melhor entender a música)”. (página 86)
As narrativas componentes desta obra são um pouco arrastadas, uma vez que Edgar Allan Poe é muito analítico. Detalhista, mesmo. A interposição de digressões, explicações tornam os trabalhos com apresentação lenta. É preciso, portanto, que o leitor esteja ciente disto para se adaptar, se desejar mesmo usufruir dos contos.

Poe consegue impor aspectos fantasmagóricos, macabros, consegue nos assustar ou causar repúdio sem apelar para fantasmas. Não é curioso, isto? Sua histórias, pelo menos neste pequeno volume, não contam com aparições sobrenaturais; aliás, aqui, o gótico prescinde do sobrenatural.

Embora não seja o gênero de minha predileção, não pretendo ficar somente neste opúsculo. A narrativa de Arthur Gordon Pym, O escaravelho do diabo, A queda da casa de Usher, O barril de Almontillado, O poço e o pêndulo, A máscara da morte escarlate, por exemplo, são contos tão famosos que tenho muita curiosidade em conhecê-los. Agora, que já venci uma primeira experiência com Edgar Allan Poe, o estranhamento e o susto passam ao largo.


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