|
Título original: Det Er Ales Autor: Jon Olav Fosse Tradutor: Guilherme da Silva Braga Editora: Companhia das Letras Edição: 1ª – 1ª Reimpressão Copyright: 2003 ISBN: 978-85-359-3542-4 Origem: Noruega Gênero: Romance |
Jon Olav Fosse, mais conhecido por Jon
Fosse, nasceu em Haugesund, Noruega, em 29/09/1959. Seus principais trabalhos
são na área de dramaturgia, embora ele também se dedique ao romance.
Desde 2011 foi
concedida a ele uma “residência honorária”, pertencente ao governo norueguês,
por suas contribuições à cultura e artes da Noruega. Jon Fosse foi laureado com
o Prêmio Nobel de 2023. A justificativa para o prêmio cita “por suas peças e
prosa inovadoras, que dão voz ao indizível”.
Fosse declarou-se
ateu quando jovem, mas em 2013 converteu-se ao catolicismo. Durante a juventude,
tocou guitarra no grupo Rocking Chair – atividade que ele abandonou, ao
converter-se.
É autor de várias
obras – principalmente na dramaturgia, como dito acima – no Brasil, temos É
A Ales, Brancura, Trilogia, A Casa dos Barcos, Manhã e
Noite. Jon Fosse é constantemente comparado ao escritor irlandês Samuel
Beckett. Para quem não se recorda, Beckett é o autor da famosa peça Procurando
Godot.
Então, li É A
Ales. Não posso dizer que o livro tenha me conquistado de primeira. Ao contrário,
não foi uma primeira vez fácil. Tive de esquecer-me do conceito de concisão
literária. Caracterizado, com frequência, como possuidor de um estilo hipnotizante,
isto corre muito pelas constantes repetições de termos, de verbos discendi
(disse, falou, observou, etc). além do mais, o estilo de Fosse é bastante
experimental; desobedece as normas de pontuação – como Saramago o faz –, abusa dos
polissíndetos, que são as repetições de conjunções, normalmente coordenativas.
Entretanto, É
A Ales me despertou o interesse – se não o da empatia, pelo menos o
racional, de vez que certos recursos encontrados no pequeno livro são
intencionais – e me decidi por uma segunda leitura. Nada melhor; mudei minhas
impressões sobre a obra.
Escrever um
romance de tão poucas páginas (esta edição tem 108) e de tanta complexidade
narrativa não é para qualquer autor. O enredo não é complicado, a grandiosidade
do livro vai para o que Jon Fosse consegue extrair da trama, do conflito.
Vamos lá, caro
leitor.
“Vejo Signe deitada no banco da sala olhando para tudo que é familiar, a velha mesa, a estufa, a caixa de lenha, o velho painel de madeira nas paredes, a grande janela com vista para o fiorde, ela olha para essas coisas sem ver, e tudo está como sempre esteve, nada mudou, mas assim mesmo tudo mudou, ela pensa, porque depois que ele desapareceu e nunca mais voltou nada mais foi o mesmo, ela simplesmente está aqui, porém sem estar aqui, os dias chegam, os dias passam, as noites chegam, as noites passam e ela os acompanha, sempre com movimentos vagarosos, sem permitir que nada deixe grandes marcas ou faça grande diferença...” (página 9)
Pontos para o
autor, já no parágrafo de abertura ele nos entrega o conflito: a tal Signe está
deitada no banco da sala, e pensa sobre alguém desaparecido. Neste parágrafo
inicial, o leitor pode perceber a repetição de termos, de expressões, que vão
perpassar o livro todo.
Esta Signe espera
o marido, Asle, que, no fim de novembro de 1979, sai de barco por um dos muitos
fiordes noruegueses e desaparece. Encontram apenas o barco. Este enredo se aproxima
muito da peça de Samuel Beckett, citada acima. Em Esperando Godot,
há um grupo de personagens à espera do tal Godot, como nos informa o título. Godot
não aparece. A peça se desenrola, a peça termina e nada de Godot. A tempo:
Beckett se enquadra no chamado teatro do absurdo.
O narrador de
Fosse observa Signe, nos revela o que ela pensa e sente. Informa-nos que ela se
desloca de si própria, como se parte de sua consciência ficasse no corpo e
parte se projetasse à sua frente. Signe se observa:
“...ela está em pé defronte a janela, e se vê deitada no banco, e ela parece estar muito velha, muito cansada, e os cabelos dela estão bastante grisalhos, mas ainda compridos, e imagine estar em pé defronte a janela olhando para fora e depois olhar para o banco e se ver deitada velha e grisalha, ela pensa enquanto olha para estufa e lá, lá na cadeira ao lado da estufa ela se vê sentada, mais essa!...” (página 33)
O Fiorde
(recorrendo à Wikipedia, Fiorde é uma grande invasão de mar entre montanhas
rochosas, originada por erosão) é uma presença em todo o texto do livro. É um
acidente geográfico que une o passado ao presente.
E logo ficamos
sabendo, houve outro acidente ali, naquele Fiorde. Aos sete anos, um menino
morreu afogado ali. O nome do menino: Asle.
“O Asle morreu, diz Kristoffer
ele completou sete anos e morreu, ele diz
não, ele está vivo, diz Brita
você não vê, ele morreu, diz Kristoffer
e Brita fica lá com Asle nos braços e os braços de Asle estão aberto e vazios...” (página 81)
O nome Asle,
então, designa dois seres: aquele menino morto aos sete anos por afogamento, e
o marido de Signe, desaparecido no Fiorde. E há também a velha Ales, que
observa consternada a cena:
“E então a velha Ales endireita o corpo, no patamar de pedra onde está, e lentamente se vira e entra na Antiga Casa. Na casa dela, a Velha Ales está entrando na casa dela, ela pensa. E no pátio em frente à antiga Casa onde mora Brita segura Asle nos braços. E então Kristoffer se aproxima de Brita e pega Asle nos braços.” (página 86)
O tempo se
embolou na cabeça de Signe. Os dois fatos – a morte do pequeno e o
desparecimento do marido, ambos de certa forma ligados pelas semelhanças dos
nomes – perdem a separação nítida de passado e presente. E Ales, a Velha Ales e
Signe têm coisas em comum: ambas perderam entes queridos. Com a diferença: para
a Velha Ales, a constatação da morte encerrou o caso, pôs um limite, ainda que
doloroso.
Para Signe,
diante do desaparecimento, o caso não teve e não tem um fim – um corpo sobre o
qual chorar –, mas que também estabelece um limite. E ela vegeta, a certa
altura do texto torna-se gritante o seu estado depressivo:
“... e ela não pode simplesmente ficar deitada lá, ela pensa, porque ela precisa se levantar, se pôr de pé, ela precisa fazer alguma coisa, não pode ficar simplesmente deitada no banco, ela pensa, e então se vê parada no cômodo olhando em frente para o nada e então se vê ir até a porta que dá para o corredor e se vê pôr a mão na maçaneta e se vê lá com a mão na maçaneta e pensa, enquanto segura a maçaneta, por que ele não vem?, e sempre aquilo, esperar, esperar...” (página 70)
É A Ales é
um romance que, ao ler, não há necessidade de nos preocuparmos com spoilers.
Não é o que acontece, o que importa; é como os personagens lidam com seus
sofrimentos, com seus fantasmas do passado. A força da natureza, representada
aqui pelos Fiordes traiçoeiros, se impõe. Os acontecimentos tiram a vida de
pessoas queridas, leva-as para longe, deixando no lugar apenas dor, saudade,
depressão.
Gostei da releitura do livro, mas não sei se o recomendo, caro leitor. É poeticamente amargo, Fosse parece querer assinalar – pelo menos neste texto – o absurdo de viver neste mundo. E este é outro quesito que o aproxima de Samuel Beckett e do absurdo de Esperando Godot.