Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Resenha nº 216 - É A Ales, de Jon Fosse




Título original: Det Er Ales

Autor: Jon Olav Fosse

Tradutor: Guilherme da Silva Braga

Editora: Companhia das Letras

Edição: 1ª – 1ª Reimpressão

Copyright:  2003

ISBN: 978-85-359-3542-4

Origem: Noruega

Gênero: Romance

 

Jon Olav Fosse, mais conhecido por Jon Fosse, nasceu em Haugesund, Noruega, em 29/09/1959. Seus principais trabalhos são na área de dramaturgia, embora ele também se dedique ao romance.

Desde 2011 foi concedida a ele uma “residência honorária”, pertencente ao governo norueguês, por suas contribuições à cultura e artes da Noruega. Jon Fosse foi laureado com o Prêmio Nobel de 2023. A justificativa para o prêmio cita “por suas peças e prosa inovadoras, que dão voz ao indizível”.

Fosse declarou-se ateu quando jovem, mas em 2013 converteu-se ao catolicismo. Durante a juventude, tocou guitarra no grupo Rocking Chair – atividade que ele abandonou, ao converter-se.

É autor de várias obras – principalmente na dramaturgia, como dito acima – no Brasil, temos É A Ales, Brancura, Trilogia, A Casa dos Barcos, Manhã e Noite. Jon Fosse é constantemente comparado ao escritor irlandês Samuel Beckett. Para quem não se recorda, Beckett é o autor da famosa peça Procurando Godot.

Então, li É A Ales. Não posso dizer que o livro tenha me conquistado de primeira. Ao contrário, não foi uma primeira vez fácil. Tive de esquecer-me do conceito de concisão literária. Caracterizado, com frequência, como possuidor de um estilo hipnotizante, isto corre muito pelas constantes repetições de termos, de verbos discendi (disse, falou, observou, etc). além do mais, o estilo de Fosse é bastante experimental; desobedece as normas de pontuação – como Saramago o faz –, abusa dos polissíndetos, que são as repetições de conjunções, normalmente coordenativas.

Entretanto, É A Ales me despertou o interesse – se não o da empatia, pelo menos o racional, de vez que certos recursos encontrados no pequeno livro são intencionais – e me decidi por uma segunda leitura. Nada melhor; mudei minhas impressões sobre a obra.

Escrever um romance de tão poucas páginas (esta edição tem 108) e de tanta complexidade narrativa não é para qualquer autor. O enredo não é complicado, a grandiosidade do livro vai para o que Jon Fosse consegue extrair da trama, do conflito.

Vamos lá, caro leitor.

“Vejo Signe deitada no banco da sala olhando para tudo que é familiar, a velha mesa, a estufa, a caixa de lenha, o velho painel de madeira nas paredes, a grande janela com vista para o fiorde, ela olha para essas coisas sem ver, e tudo está como sempre esteve, nada mudou, mas assim mesmo tudo mudou, ela pensa, porque depois que ele desapareceu e nunca mais voltou nada mais foi o mesmo, ela simplesmente está aqui, porém sem estar aqui, os dias chegam, os dias passam, as noites chegam, as noites passam e ela os acompanha, sempre com movimentos vagarosos, sem permitir que nada deixe grandes marcas ou faça grande diferença...” (página 9)

Pontos para o autor, já no parágrafo de abertura ele nos entrega o conflito: a tal Signe está deitada no banco da sala, e pensa sobre alguém desaparecido. Neste parágrafo inicial, o leitor pode perceber a repetição de termos, de expressões, que vão perpassar o livro todo.

Esta Signe espera o marido, Asle, que, no fim de novembro de 1979, sai de barco por um dos muitos fiordes noruegueses e desaparece. Encontram apenas o barco. Este enredo se aproxima muito da peça de Samuel Beckett, citada acima. Em Esperando Godot, há um grupo de personagens à espera do tal Godot, como nos informa o título. Godot não aparece. A peça se desenrola, a peça termina e nada de Godot. A tempo: Beckett se enquadra no chamado teatro do absurdo.

O narrador de Fosse observa Signe, nos revela o que ela pensa e sente. Informa-nos que ela se desloca de si própria, como se parte de sua consciência ficasse no corpo e parte se projetasse à sua frente. Signe se observa:

“...ela está em pé defronte a janela, e se vê deitada no banco, e ela parece estar muito velha, muito cansada, e os cabelos dela estão bastante grisalhos, mas ainda compridos, e imagine estar em pé defronte a janela olhando para fora e depois olhar para o banco e se ver deitada velha e grisalha, ela pensa enquanto olha para estufa e lá, lá na cadeira ao lado da estufa ela se vê sentada, mais essa!...” (página 33)

O Fiorde (recorrendo à Wikipedia, Fiorde é uma grande invasão de mar entre montanhas rochosas, originada por erosão) é uma presença em todo o texto do livro. É um acidente geográfico que une o passado ao presente.

E logo ficamos sabendo, houve outro acidente ali, naquele Fiorde. Aos sete anos, um menino morreu afogado ali. O nome do menino: Asle.

“O Asle morreu, diz Kristoffer

ele completou sete anos e morreu, ele diz

não, ele está vivo, diz Brita

você não vê, ele morreu, diz Kristoffer

e Brita fica lá com Asle nos braços e os braços de Asle estão aberto e vazios...” (página 81)

O nome Asle, então, designa dois seres: aquele menino morto aos sete anos por afogamento, e o marido de Signe, desaparecido no Fiorde. E há também a velha Ales, que observa consternada a cena:

“E então a velha Ales endireita o corpo, no patamar de pedra onde está, e lentamente se vira e entra na Antiga Casa. Na casa dela, a Velha Ales está entrando na casa dela, ela pensa. E no pátio em frente à antiga Casa onde mora Brita segura Asle nos braços. E então Kristoffer se aproxima de Brita e pega Asle nos braços.”  (página 86)

O tempo se embolou na cabeça de Signe. Os dois fatos – a morte do pequeno e o desparecimento do marido, ambos de certa forma ligados pelas semelhanças dos nomes – perdem a separação nítida de passado e presente. E Ales, a Velha Ales e Signe têm coisas em comum: ambas perderam entes queridos. Com a diferença: para a Velha Ales, a constatação da morte encerrou o caso, pôs um limite, ainda que doloroso.

Para Signe, diante do desaparecimento, o caso não teve e não tem um fim – um corpo sobre o qual chorar –, mas que também estabelece um limite. E ela vegeta, a certa altura do texto torna-se gritante o seu estado depressivo:

“... e ela não pode simplesmente ficar deitada lá, ela pensa, porque ela precisa se levantar, se pôr de pé, ela precisa fazer alguma coisa, não pode ficar simplesmente deitada no banco, ela pensa, e então se vê parada no cômodo olhando em frente para o nada e então se vê ir até a porta que dá para o corredor e se vê pôr a mão na maçaneta e se vê lá com a mão na maçaneta e pensa, enquanto segura a maçaneta, por que ele não vem?, e sempre aquilo, esperar, esperar...” (página 70)

É A Ales é um romance que, ao ler, não há necessidade de nos preocuparmos com spoilers. Não é o que acontece, o que importa; é como os personagens lidam com seus sofrimentos, com seus fantasmas do passado. A força da natureza, representada aqui pelos Fiordes traiçoeiros, se impõe. Os acontecimentos tiram a vida de pessoas queridas, leva-as para longe, deixando no lugar apenas dor, saudade, depressão.

Gostei da releitura do livro, mas não sei se o recomendo, caro leitor. É poeticamente amargo, Fosse parece querer assinalar – pelo menos neste texto – o absurdo de viver neste mundo. E este é outro quesito que o aproxima de Samuel Beckett e do absurdo de Esperando Godot. 

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Resenha nº 215 - As Maravilhas, de Elena Medel



Título original: Las Maravillas

Autora: Elena Medel

Tradutora: Rubia Goldoni

Editora: Todavia/TAG Livros

Copyright: 2020

ISBN: 978-65-5692-335-2

Gênero literário: Romance

Origem: Literatura espanhola

 

Elena Medel é escritora espanhola, nascida na cidade de Córdoba, em 29/04/1985. Estudou Filologia Hispânica na Universidade que leva o nome da cidade. Dirige a revista de poesia La Bella Varsovia. Tem trabalhos de poesia, conto, romance e ensaio publicados.

Com obras traduzidas para vários idiomas, é uma escritora em ascenção, tendo recebido o prêmio Fundación Princesa de Girona (2016). Seu único romance, por enquanto, é este As Maravilhas, publicado no Brasil pela editora Todavia e, neste caso, com edição exclusiva pela TAG – Experiências Literárias.

Duas mulheres fazem parte da história contada por Medel: María e Alícia. Outra mulher – Carmen – da qual pouco se fala, é filha de María e mãe de Alícia. María veio viver em Madri, pois precisava de um emprego e, por isso, abandona a casa dos pais, deixando para trás, também, sua filha Carmen:

“O bebê cheira a cigarro. A primeira coisa que chama a atenção de María quando pega Carmen no colo é seu cheiro, tão diferente do de outros bebês. A filha da vizinha dos seus tios às vezes cheira a cebola, por mais que a mãe passe colônia nela para disfarçar; já o menino da casa – da casa em que ela trabalha, corrige-se María; não de sua casa, que não existe –, porque não conhecia nada parecido, mas agora o reconhece nas lojas, nos cafés. A filha da vizinha brinca com as anelas à tarde, e o menino vive entre o berço e o moisés na sala; Carmen também percorre a casa a seu modo, entre o quarto e o colo da avó, sentada à mesa grande. María percebe que talvez o cheiro de cigarro tenha a ver com sua família. Sua mãe fuma na cozinha, seu pai fuma o tempo todo, e ela suspeita que seu irmão Chico começou a fumar no quarto, pensando que ali ninguém o descobriria. Carmen cheira a cigarro; talvez María pense que a filha tenha o cheiro da casa de dois quartos, ou talvez pense apenas em como é estranho estar dormindo ali, com ela.” (página 19)

Deste parágrafo selecionado podemos retirar algumas informações sobre María. Ela é pobre, precisa trabalhar na casa dos outros, não tem uma casa sua. Possui um irmão, Chico além da mencionada filha, Carmen. Este fato acontece no ano de 1960.

O livro se inicia com o arco narrativo focado em Alícia:

“Com uma única nota no bolso, Alicia observa a praça quase deserta, os poucos carros e os poucos pedestres. Mais alguns minutos, e o dia vai clarear. Quando pode escolher, Alicia sempre prefere trabalhar de tarde: não precisa acordar cedo, pode passar a tarde na loja e voltar direto para casa. Nando reclama nessas semanas, na verdade, em quase todas; ela se desculpa dizendo que foi uma colega que pediu: tem dois filhos pequenos e para ela o turno da manhã é melhor. Assim fica livre nas primeiras horas do dia e evita as tardes no bar com os amigos dele – que também são os dela, por força da rotina – as tapas baratas, os bebês entre guardanapos sujos. Alicia achava que a maternidade alheia acabaria com esse hábito, mas as mães se ausentam do bar até as crianças pegarem no sono, às vezes volta se têm certeza de que dormem profundamente, e Nando se aborrece se ela tenta pular o ritual.” (páginas 9/10)  

A narrativa coloca em cena uma Alicia que precisa contar os centavos; ela tem de fazer uma retirada num dos caixas eletrônicos da estação Atocha. É uma trajetória financeira descendente, pois esta mesma Alicia, quando ainda em idade escolar, é descrita da seguinte maneira:

“No caso de Alicia, ainda não tinham conseguido montar nenhuma história. Tudo nela as desnorteava; escrevia sem erros de ortografia; sabia de cor datas e nomes de personagens históricas, não bocejava na aula. Não entenderam como podia ter repetido de ano, mas o que mais as desnorteava era o que s passava fora de sua cabeça: quer usasse um par de tênis diferente a cada dia da semana, quer fizesse questão de exibir a marca do seu jeans.” (página 38)

As maravilhas, aludidas pelo título do romance, fazem referência às coisas maravilhosas observadas pelas colegas Celia e Inma, quando vão à casa de Alicia, fazer um trabalho escolar. Claramente, a anfitriã tem uma condição de vida muito melhor do que as convidadas.

O que teria acontecido, tanto no caso de Maria – avó de Alícia – como no da própria Alícia, empobrecida, depois?

O pano de fundo é a situação sociopolítica da Espanha. Como veremos, este país é sacudido por periódicos conflitos, quer no âmbito político – no embate entre esquerda e direita por permanência no poder –, quer por problemas sociais.

Há uma guerra civil, compreendida entre 1936 e 1939. A Espanha era então uma república parlamentarista, com a maioria dos parlamentares escolhidos de esquerda, com um primeiro-ministro socialista.  Acontece um golpe de estado, liderado pelo general Franco. Os golpistas tomam o poder em 1939, iniciando a ditadura franquista.

Exercendo um fascismo de direita, sob o regime de Franco a Espanha tem de conviver com um cardápio de arbitrariedades, terror violento. Os opositores do ditador são executados. Para vencer a guerra civil, Franco tem de contar com a ajuda – que mais tarde será temerária – de Hitler e de Mussolini. Portanto, quando explode a Segunda Guerra Mundial, Franco compromete seu apoio aos fascistas.

Ao terminar o conflito mundial, em plena época da chamada guerra fria, a Espanha está diante de um complexo cenário no mundo: o antigo inimigo, os Estados Unidos, tornam-se, agora, aliados do país ibérico. A Espanha era fascista sob o jugo de Franco, mas era também anticomunista. Os EUA desenvolviam alianças que evitassem o perigo comunista na Europa. A ditadura franquista só termina com a morte do seu líder, em 1975.

Na revista que acompanha a edição da TAG, em um texto informativo assinado por Paula Sperb, há um esclarecimento:

“Em As Maravilhas, aparecem as históricas eleições gerais de 1982, que consagram o socialista Felipe González, do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol), como presidente. Maria participa de uma celebração com seus companheiros do grupo de bairro. Nos anos 1990, no entanto, o país voltou a ser governado por partidos de direita.”

A Espanha mergulha numa crise econômica, que vem de 1990 e dura até os dias atuais. No romance, a perda de emprego, o empobrecimento das classes sociais é o pano de fundo da narrativa, o motivo pelo qual Alicia, que inicialmente é de uma classe mais abastada, termina na estação Atocha de maneira precária.

“Alicia custa a atravessar as catracas: não é que os trens para o centro passem cheios, mas é tanta gente descendo na estação Atocha Renfe que ela custa a alcançar o vagão. Amaldiçoa a colega que lhe pediu para cobrir seu horário por um tempo – primeiro por uma hora, depois duas ou três –, porque a amiga que olhava seus filhos não tinha aparecido e obrigou Alicia a sair do trabalho mais tarde que o normal. Ela sabia da manifestação, tinha visto de manhã as mulheres na Cuesta de Moyano, mas não imaginava que tivesse algo a ver com ela: só quer voltar logo para casa, comprar alguma coisa no mercado para jantar, e que ninguém a incomode.” (página 181)

Esta movimentação, que apanha Alicia em meio ao seu dia de trabalho, é a Greve das Mulheres, em 2018. Deixemos Paula Sperb, no mesmo artigo contextualizador da Revista da TAG, nos explicar:

“No romance, o Dia Internacional da Mulher marca um dos momentos mais importantes da trama. As manifestações de mulheres ocorreram em escala global naquele ano. Na Espanha, porém, elas reivindicaram também respostas aos problemas econômicos. “No contexto espanhol, a data adquire um caráter singular porque é convocada uma greve geral de trabalhadores e essa greve é convocada pelas mulheres. Promover a greve naquele momento tinha dois sentidos: o primeiro é o de afirmação de gênero e luta por igualdade: o segundo, o de combate à precarização do trabalho, que afeta todos, mas especialmente as mulheres”, explica Fraga.”

Em As Maravilhas, Alicia não é uma alienada; igualmente, María não era uma alienada. Ambas, em momentos diferentes da história contada, não participam diretamente dos movimentos os quais lhes são contemporâneos e do interesse delas. É que estão ocupadas, dirigem toda a sua força em sobreviver. Lutam a cada dia pelo prato de comida e por isso, não podem participar de greves, por mais importante sejam elas.

Se forem mandadas embora por ausência ao trabalho, será muito pior para elas. Têm dependentes, têm filhos a quem alimentar. Esta é a dura realidade de que se esquecem os militantes de diversas greves – mesmo as mais justas – há pessoas a quem falta tudo, até o sustento para se ter a possibilidade de lutar por aquilo em que se acredita.

As Maravilhas é o tipo de leitura que necessita fortemente de contextualização, para que possa ser entendido em profundidade. O pano de fundo da história recente da Espanha não pode ser descartado. Ajunte-se a isto a questão do direito feminino de escolha: cuidar ou não cuidar dos outros; porque, via de regra, esta é uma “função social” imposta às mulheres. Faz parte da cultura de “toda mulher nascer para ser mãe”.

Frequentemente, penso eu, desconsidera-se a individualidade, em favor de uma construção histórica. Existem mulheres que não têm a menor inclinação para a maternidade, como existem homens que não têm a menor inclinação para a paternidade. E as construções históricas, não esqueçamos, são feitas pelos dominantes. E quem são os dominantes, nesta questão? Os homens.

Se você, meu caro leitor, gosta de romances com forte contextualização política e histórica, leia este livro. Elena Medel pode ser uma romancista iniciante, mas este seu As Maravilhas é uma grata constatação. 

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Resenha nº 214 - Paixão Simples, de Annie Ernaux

 




Título original: Passion Simple

Autora: Annie Ernaux

Tradutora: Marília Garcia

Editora: Fósforo

Edição: 1ª

Copyright: 1991

ISBN: 978-65-84568-29-7

Gênero literário: romance (autoficção)

Origem: Literatura francesa

 

Annie Ernaux (nome de batismo, Annie Duchesne) nasceu em Lillebonne, em 01/09/1940. Escritora e professora francesa, foi distinguida com o Prêmio Nobel de 2022; aliás, prêmios são o que não faltaram em sua carreira: Prix d'Honneur du roman 1977, Prix Renaudot 1984, Prix Marguerite-Duras 2008, Prix François-Mauriac 2008, Prix de la langue française 2008, Docteur honoris causa de université de Cergy-Pontoise 2014, Prix Strega européen 2016, Prix Marguerite-Yourcenar 2017, Premio Hemingway per la letteratura 2018.

Seus livros vêm sendo publicados no Brasil pela Editora Fósforo: O Lugar, Paixão Simples, A Vergonha, O Acontecimento, Os Anos, O Jovem, A Outra Filha, A Escrita Como Faca e Outros Textos.

Ao invés de começar por O Lugar ou por Os Anos, mais conhecidos, talvez, ou, pelo menos, lançados primeiro aqui no Brasil, iniciei meu contato com a literatura de Ernaux por este Paixão Simples. Não sem motivo: assisti ao filme Pura Paixão, na rede de streaming Netflix – direção, Danielle Arbid; atores, Laetitia Dosch (Hélène) e Sergei Polunin (Alexandr) – e não gostei do filme. Apesar de haver cenas de nus frontais, não entendi o filme como erótico.

Não costumo cotejar filmes derivados de livros com suas origens, neste blog, simplesmente por achar que estas duas linguagens – cinema e literatura – possuem suas especificidades, sendo, a meu ver, bobagem ficar analisando “se o filme é melhor que o livro”, se “o livro resultou melhor que o filme”. Mas, abramos uma exceção: a literatura de Annie Ernaux é mesmo difícil de ser adaptada para cinema, dadas as peculiaridades com que seus livros são construídos.

Livro lido, o filme me pareceu mais chocho ainda. A obra escrita não tem propriamente um enredo; a narração se dá em ritmo de memória e a autora tenta, através do que se convencionou chamar de autoficção, entender o que aconteceu, quais os processos envolvidos numa paixão avassaladora. Seu olhar de autora não se lança tanto sobre o russo Alexandr, pelo qual Hélène se apaixona. O livro discorre sobre a paixão. Tenta nos dar uma ideia do que viveu – e na minha opinião, o consegue.

O filme ficou morno. Sem enredo, se perde como divertimento. Aquela mulher, Hélène, mesmo em cenas de alcova, padece do vazio emocional. Mãe, larga seu filho para viver sua paixão, mas não percebemos qualquer conflito. Não havendo enredo, inexistindo conflitos, inexiste plot twist.

Pura Paixão não se debruça sobre a própria paixão, numa tentativa de tentar entendê-la, como o faz o livro.  Portanto, como análise, se perde o filme, nesta linha de raciocínio. Há, naturalmente, que faça outra leitura do que se vê na tela.

“Neste verão, assisti pela primeira vez a um filme pornográfico no Canal +. Como minha TV não tem antena, as imagens na tela apareciam desfocadas e as palavras eram substituídas por uma sonoplastia estranha, um crepitar, um murmúrio, um tipo de linguagem diferente, doce e ininterrupta. Dava para distinguir o corpo de uma mulher, de espartilho e meia-calça, um homem. O enredo era incompreensível, sendo impossível prever gestos ou ações. O homem se aproximou da mulher. Houve um close no sexo da mulher, bem nítido em meio às cintilações da tela, e em seguida o sexo do homem, com uma ereção, entrou no da mulher.” (página 7)

E, mais adiante, a narradora completa:

“Eu achava que a escrita deveria se aproximar dessa impressão provocada pela cena do ato sexual, desse sentimento de angústia e estupor, da suspensão do julgamento moral.” (página 8)

Anotem, por favor, sentimento de angústia e estupor.

O sentimento que perpassa o livro, mesmo sob a forte camada de fria análise que Annie Ernaux nos proporciona, é o deste sentimento de angústia e estupor:

“O único futuro que me aguardava era o próximo telefonema dele marcando um horário. Eu tentava sair o menos possível, salvo para os compromissos de trabalho – cujos horários ele conhecia – sempre temendo perder uma ligação dele durante minha ausência. Também evitava usar o aspirador ou o secador de cabelo, pois poderiam me impedir de ouvir o toque do telefone. E quando ele tocava, me tomava de assalto uma esperança que, no geral, durava apenas o tempo de pegar lentamente o aparelho e dizer “alô”. Ao descobrir que não era ele, a frustração era tão intensa que na mesma hora eu passava a detestar a pessoa do outro lado da linha.” (página 11)

Para algo tão intenso assim, toda a vida se resume à presença do elemento que desencadeia a paixão; a noção de tempo se perde, se embota:

“Não estou contando a narrativa de um relacionamento, nem uma história (que me escapa pela metade) com uma cronologia precisa – “ele veio no dia 11 de novembro – ou aproximada – “as semanas passaram”. Para mim não havia essa cronologia em nossa relação, eu só conhecia a presença ou a ausência. Estou apenas acumulando as manifestações de uma paixão que oscila o tempo todo entre “sempre” e “um dia”, como se este inventário pudesse me dar acesso à realidade dessa paixão.” (página 23)

E o sentimento de angústia e estupor voltam a ser textualizados:

“O tempo todo eu avaliava quão imprecisas eram nossas conversas, observando a leve diferença entre o francês falado por ele e o uso padrão da língua, ou minhas dúvidas a respeito do sentido atribuído por ele a uma palavra. Eu tivera o privilégio de viver desde o começo, de modo constante e em plena consciência, aquilo que depois sempre acabamos descobrindo, imersos em estupor e angústia: que o homem que amamos é um completo estranho.” (página 27)

Outra característica apontada pela narradora: a perda de qualquer senso crítico do praticante desta paixão. Perdeu-se a noção do tempo, como se disse acima, e perde-se igualmente a noção de dignidade:

“Perguntar se ele mereceu” ou não isso não faz nenhum sentido. E constatar que essa história começa a ser para mim tão estranha quanto se tivesse acontecido na vida de outra mulher não altera em nada o fato de que, graças a ele, eu me aproximei do limite que me separa do outro, a ponto de às vezes imaginar que iria chegar do outro lado.

Passei a medir o tempo de outra forma, com todo o meu corpo.

Descobri do que podemos ser capazes, ou seja, de tudo: desejos sublimes ou mortais, falta de dignidade, crendices e condutas que eu julgava insensatas nos outros uma vez que eu própria não as havia experimentado. Sem saber, ele estreitou minha conexão com o mundo.” (página 60)

E, ao final da leitura desta obra tão curta, a gente se pergunta: como pode este texto ser tão potente? Como pode falar tão de perto à nossa humanidade? Que mistérios – apesar de a psicologia moderna estar tão adiantada –, que mistérios ainda perduram no fundo de nossas almas?

Digno de nota, o livro não caracteriza Alexandr como machista, dominador ou manipulador. Simplesmente, a paixão aconteceu. O próprio Alexandr diz, a certa altura, que dirigia feito um louco só para se encontrar com Hélène.

Paixão Simples é uma das obras impactantes que já li – e não é por abordar o tema da paixão. Afinal, outras obras narraram paixões candentes, amores impossíveis. Ana Kariênina, de Léon Tolstói, inclusive, é citada no texto de Ernaux.

Faz-nos lembrar este livro aquele famoso soneto de Luís Vaz de Camões:

“Sete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela.

Mas não servia ao pai, servia a ela,

Que a ela só por prêmio pretendia.

 

Os dias na esperança de um só dia

Passava, contentando-se com vê-la.

Porém o pai, usando de cautela,

Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

 

Vendo o triste pastor que com enganos

Lhe fora assim negada sua pastora

Como se a não tivera merecida

 

Começa de servir outros sete anos

Dizendo: “Mais servira se não fora

Para tão longo amor tão curta a vida!”