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domingo, 4 de fevereiro de 2024

Resenha nº 214 - Paixão Simples, de Annie Ernaux

 




Título original: Passion Simple

Autora: Annie Ernaux

Tradutora: Marília Garcia

Editora: Fósforo

Edição: 1ª

Copyright: 1991

ISBN: 978-65-84568-29-7

Gênero literário: romance (autoficção)

Origem: Literatura francesa

 

Annie Ernaux (nome de batismo, Annie Duchesne) nasceu em Lillebonne, em 01/09/1940. Escritora e professora francesa, foi distinguida com o Prêmio Nobel de 2022; aliás, prêmios são o que não faltaram em sua carreira: Prix d'Honneur du roman 1977, Prix Renaudot 1984, Prix Marguerite-Duras 2008, Prix François-Mauriac 2008, Prix de la langue française 2008, Docteur honoris causa de université de Cergy-Pontoise 2014, Prix Strega européen 2016, Prix Marguerite-Yourcenar 2017, Premio Hemingway per la letteratura 2018.

Seus livros vêm sendo publicados no Brasil pela Editora Fósforo: O Lugar, Paixão Simples, A Vergonha, O Acontecimento, Os Anos, O Jovem, A Outra Filha, A Escrita Como Faca e Outros Textos.

Ao invés de começar por O Lugar ou por Os Anos, mais conhecidos, talvez, ou, pelo menos, lançados primeiro aqui no Brasil, iniciei meu contato com a literatura de Ernaux por este Paixão Simples. Não sem motivo: assisti ao filme Pura Paixão, na rede de streaming Netflix – direção, Danielle Arbid; atores, Laetitia Dosch (Hélène) e Sergei Polunin (Alexandr) – e não gostei do filme. Apesar de haver cenas de nus frontais, não entendi o filme como erótico.

Não costumo cotejar filmes derivados de livros com suas origens, neste blog, simplesmente por achar que estas duas linguagens – cinema e literatura – possuem suas especificidades, sendo, a meu ver, bobagem ficar analisando “se o filme é melhor que o livro”, se “o livro resultou melhor que o filme”. Mas, abramos uma exceção: a literatura de Annie Ernaux é mesmo difícil de ser adaptada para cinema, dadas as peculiaridades com que seus livros são construídos.

Livro lido, o filme me pareceu mais chocho ainda. A obra escrita não tem propriamente um enredo; a narração se dá em ritmo de memória e a autora tenta, através do que se convencionou chamar de autoficção, entender o que aconteceu, quais os processos envolvidos numa paixão avassaladora. Seu olhar de autora não se lança tanto sobre o russo Alexandr, pelo qual Hélène se apaixona. O livro discorre sobre a paixão. Tenta nos dar uma ideia do que viveu – e na minha opinião, o consegue.

O filme ficou morno. Sem enredo, se perde como divertimento. Aquela mulher, Hélène, mesmo em cenas de alcova, padece do vazio emocional. Mãe, larga seu filho para viver sua paixão, mas não percebemos qualquer conflito. Não havendo enredo, inexistindo conflitos, inexiste plot twist.

Pura Paixão não se debruça sobre a própria paixão, numa tentativa de tentar entendê-la, como o faz o livro.  Portanto, como análise, se perde o filme, nesta linha de raciocínio. Há, naturalmente, que faça outra leitura do que se vê na tela.

“Neste verão, assisti pela primeira vez a um filme pornográfico no Canal +. Como minha TV não tem antena, as imagens na tela apareciam desfocadas e as palavras eram substituídas por uma sonoplastia estranha, um crepitar, um murmúrio, um tipo de linguagem diferente, doce e ininterrupta. Dava para distinguir o corpo de uma mulher, de espartilho e meia-calça, um homem. O enredo era incompreensível, sendo impossível prever gestos ou ações. O homem se aproximou da mulher. Houve um close no sexo da mulher, bem nítido em meio às cintilações da tela, e em seguida o sexo do homem, com uma ereção, entrou no da mulher.” (página 7)

E, mais adiante, a narradora completa:

“Eu achava que a escrita deveria se aproximar dessa impressão provocada pela cena do ato sexual, desse sentimento de angústia e estupor, da suspensão do julgamento moral.” (página 8)

Anotem, por favor, sentimento de angústia e estupor.

O sentimento que perpassa o livro, mesmo sob a forte camada de fria análise que Annie Ernaux nos proporciona, é o deste sentimento de angústia e estupor:

“O único futuro que me aguardava era o próximo telefonema dele marcando um horário. Eu tentava sair o menos possível, salvo para os compromissos de trabalho – cujos horários ele conhecia – sempre temendo perder uma ligação dele durante minha ausência. Também evitava usar o aspirador ou o secador de cabelo, pois poderiam me impedir de ouvir o toque do telefone. E quando ele tocava, me tomava de assalto uma esperança que, no geral, durava apenas o tempo de pegar lentamente o aparelho e dizer “alô”. Ao descobrir que não era ele, a frustração era tão intensa que na mesma hora eu passava a detestar a pessoa do outro lado da linha.” (página 11)

Para algo tão intenso assim, toda a vida se resume à presença do elemento que desencadeia a paixão; a noção de tempo se perde, se embota:

“Não estou contando a narrativa de um relacionamento, nem uma história (que me escapa pela metade) com uma cronologia precisa – “ele veio no dia 11 de novembro – ou aproximada – “as semanas passaram”. Para mim não havia essa cronologia em nossa relação, eu só conhecia a presença ou a ausência. Estou apenas acumulando as manifestações de uma paixão que oscila o tempo todo entre “sempre” e “um dia”, como se este inventário pudesse me dar acesso à realidade dessa paixão.” (página 23)

E o sentimento de angústia e estupor voltam a ser textualizados:

“O tempo todo eu avaliava quão imprecisas eram nossas conversas, observando a leve diferença entre o francês falado por ele e o uso padrão da língua, ou minhas dúvidas a respeito do sentido atribuído por ele a uma palavra. Eu tivera o privilégio de viver desde o começo, de modo constante e em plena consciência, aquilo que depois sempre acabamos descobrindo, imersos em estupor e angústia: que o homem que amamos é um completo estranho.” (página 27)

Outra característica apontada pela narradora: a perda de qualquer senso crítico do praticante desta paixão. Perdeu-se a noção do tempo, como se disse acima, e perde-se igualmente a noção de dignidade:

“Perguntar se ele mereceu” ou não isso não faz nenhum sentido. E constatar que essa história começa a ser para mim tão estranha quanto se tivesse acontecido na vida de outra mulher não altera em nada o fato de que, graças a ele, eu me aproximei do limite que me separa do outro, a ponto de às vezes imaginar que iria chegar do outro lado.

Passei a medir o tempo de outra forma, com todo o meu corpo.

Descobri do que podemos ser capazes, ou seja, de tudo: desejos sublimes ou mortais, falta de dignidade, crendices e condutas que eu julgava insensatas nos outros uma vez que eu própria não as havia experimentado. Sem saber, ele estreitou minha conexão com o mundo.” (página 60)

E, ao final da leitura desta obra tão curta, a gente se pergunta: como pode este texto ser tão potente? Como pode falar tão de perto à nossa humanidade? Que mistérios – apesar de a psicologia moderna estar tão adiantada –, que mistérios ainda perduram no fundo de nossas almas?

Digno de nota, o livro não caracteriza Alexandr como machista, dominador ou manipulador. Simplesmente, a paixão aconteceu. O próprio Alexandr diz, a certa altura, que dirigia feito um louco só para se encontrar com Hélène.

Paixão Simples é uma das obras impactantes que já li – e não é por abordar o tema da paixão. Afinal, outras obras narraram paixões candentes, amores impossíveis. Ana Kariênina, de Léon Tolstói, inclusive, é citada no texto de Ernaux.

Faz-nos lembrar este livro aquele famoso soneto de Luís Vaz de Camões:

“Sete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela.

Mas não servia ao pai, servia a ela,

Que a ela só por prêmio pretendia.

 

Os dias na esperança de um só dia

Passava, contentando-se com vê-la.

Porém o pai, usando de cautela,

Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

 

Vendo o triste pastor que com enganos

Lhe fora assim negada sua pastora

Como se a não tivera merecida

 

Começa de servir outros sete anos

Dizendo: “Mais servira se não fora

Para tão longo amor tão curta a vida!”

 

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