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terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Resenha nº 213 - Oração Para Desaparecer, de Socorro Acioli

 




Título: Oração Para Desaparecer

Autora: Socorro Acioli

Editora: Cia. das Letras/TAG

Edição: 1ª

Copyright: 2023

ISBN: 978-85-359-3461-8

Gênero literário: Romance

Origem: literatura brasileira

 

Socorro Edite Oliveira Acioli Martins nasceu em Fortaleza, Ceará, em 24/02/1975. Iniciou-se na literatura infantil, escrevendo 16 obras. Como autora de literatura juvenil, foram mais 4 obras. É ganhadora de vários prêmios: Prêmio Jabuti 2013, Melhor Obra Inédita de Literatura Infantil da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará 2005, Selo Altamente Recomendável FNLIJ 2006, 2007 e 2008. Prêmio Ceará de Cinema e Vídeo da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará – Categoria Roteiro.

Dentro da categoria literatura adulta, ela publicou dois romances: A Cabeça de Santo (2014) e este Oração Para Desaparecer (2023).

Este livro tem algumas peculiaridades bastante interessantes. Um dos personagens, Félix Ventura, é “emprestado” do livro O Vendedor de Passados, do escritor angolano José Eduardo Agualusa – livro já resenhado neste blogue em 2015, resenha número 56. Para fazer esta apropriação, Acioli entrou em contato com o angolano, obtendo sua permissão.

A outra intertextualidade é com O Livro dos Itinerários, de José Saramago. A primeira frase deste livro é “Sempre chegamos ao sítio onde nos esperam”. Entretanto, tal livro nunca existiu, apesar de ser citado em A Viagem do Elefante, do mesmo Saramago – cuja epígrafe é a frase do livro fictício.

Os Tremembés são um povo indígena, conhecedor de práticas de caça de animais selvagens. Como está na revista da TAG, para eles “Há também a crença nos encantados e encantes. Para eles, algumas pessoas encantam-se começam a viver numa dimensão encantada, não acessível a outras.”

Estes são alguns dos ingredientes que vão compor este romance.

E acho que há necessidade de outra explicação. O livro vai tratar dos ressurrectos, isto é, pessoas que “ressuscitam” – no caso do livro, desaparecem de um lugar e aparecem em outro. Geralmente, não o fazem conservando a memória de quem foram, recuperando-a depois de certo tempo.

“Acordei com os olhos grudados de lama, o nariz entupido de terra e a boca cheia de areia estralando nos dentes alguém me enterrou. Bichos alisavam minha língua, rastejavam pelos ouvidos e por outros caminhos para dentro das carnes. Debaixo do chão era uma agonia gelada, molhada, fedida. Não sentia braços e pernas no breu daquela cova. Perdi a noção do meu corpo, achei que me transformaria em um bicho morto, me desfazendo até virar pó. Ninguém sabe o que fazer na hora da morte.” (página 13)

Socorro Acioli trafega no que se convencionou chamar de “realismo mágico”. As pessoas não estranham o fato de um corpo vivo brotar do chão. O casal Florice e Fernando, portugueses, estão ali a postos para acabar de extrair a protagonista do solo.

Não há qualquer explicação de como este estranho acontecimento – e estranhamento sempre acompanha o leitor de realismo mágico –, nem porque o casal foi indicado para estar na localidade, com a missão do resgate. Apenas é dito que tal função é frequente na família dos salvadores:

“Não é qualquer morto, são os escolhidos para isso. Quem começa uma vida nova. Meu avô repetia exatamente isso quando tocávamos no assunto o que aconteceu contigo é parte da história da minha família há anos, um absurdo que nunca entendemos, quase um delírio, não contamos para ninguém, sempre foi nosso segredo.” (página 27)

Atônita, a personagem não entende o que lhe aconteceu. Florice, muito solícita, tenta explicar:

“Não perceber o que te aconteceu é devastador, mas outros chegaram quase sempre mudos, soltando grunhidos que ninguém entende, latem, miam, um festival de horrores. As palavras vieram, isso é muito bom, mas tem paciência. É como reconstruir uma cidade depois de um terramoto. Tu te desfizeste, foi uma categoria de morte, mas não daquelas que encerram a via. É uma ressurreição, entendes?” (página 26)

A protagonista, ainda sem ser nomeada, tem confusas recordações sobre o soterramento de uma igrejinha. Florice lhe apresenta um caderno de anotações, chamado de O Livro das Visões e a orientou para que escrevesse suas progressivas recordações:

“Na segunda página comecei:

 Saí de um buraco na terra da Almofala, em Portugal. Estava nua e careca, só usava um colar de búzios. Não sei o meu nome. Fui salva por um casal de idosos. Tenho cortes e marcas de violência no corpo. Sou brasileira. Consigo ver os mortos. Não me lembro de nada. Acredito em Deus.” (página 34)

Aqui, outra informação interessante. Almofala nomeia várias cidades; são seis aldeias em Portugal e uma no Brasil, no distrito de Itarema, Ceará. Há uma igrejinha lá que sofreu o processo de soterramento (1897-1898), conhecido como erosão eólica, ou seja, o vento move as dunas de areia contra um obstáculo. A construção foi posteriormente recuperada.

Como a protagonista não se lembra do seu nome, é batizada de Aparecida por Fernando.

“Aceitei ser Cida, por puro cansaço. Fiz que sim, sorri de leve. Levaria a marca deles dois comigo, já que fizeram meu parto na cova. Não tinha por que recusar o nome novo, não me restava nada além de aceitar que as coisas teriam de seguir de alguma forma. Cida era um nome neutro, pois vinha do modo absurdo como cheguei aqui, no sentido deles, evocava milagre.” (página 40)

Félix Ventura aparece lá pelas páginas do capítulo 9. É contratado para fazer o que faz no livro do Agualusa, O Vendedor de Passados; afinal, ele é o único com esta profissão no mundo: constrói passados coerentes para pessoas que, por algum motivo, desejam viver nova vida. Aparecida é assim, não se lembra do seu próprio passado; então, é preciso criar-lhe um novinho.

Ventura conhece Cida. Para a criação de um passado eficiente, mister é conhecer a pessoa, entrevistá-la. E ele pede à protagonista que o mantenha informado, o que ela fará pelo menos uma vez por ano.

Cida e Jorge formam um casal. É ele quem vai ajudá-la a desvendar sua origem e os acontecimentos que antecederam seu parto na cova da Almofala portuguesa. Ligam-se as duas cidades do mesmo nome.

O parágrafo inicial do livro, transcrito acima, me fez lembrar da famosa epígrafe machadiana “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas”. Cida sente os bichos alisarem sua língua, rastejarem pelos seus ouvidos; isto, além de ela ser não uma defunta autora, mas uma estranha quase-defunta personagem, ressurrecta, tornou-me a associação inevitável. Vale anotar, Oração Para Desaparecer não tem a ironia genial de Machado – e nem é este o propósito.

Caro leitor, se você gosta de Jorge Luís borges, Bioy Casares, Silvina Ocampo, Gabriel Garcia Marques, deve se deleitar com este livro. Quero dizer, se você aprecia o realismo mágico, este livro será um prato feito.

Oração Para Desaparecer é uma das minhas melhores leituras do mês de dezembro do ano passado. Vejo como enorme satisfação mulheres produzindo literatura brasileira de qualidade. Conta o motivo de serem mulheres; mas é fundamental que suas produções sejam boas.

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