Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Resenha Nº 210 - Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnár

 




Título original: A Pál utcai fiúk

Autor: Ferenc Molnár

Tradutor: Edith Elek

Editora: Nova Fronteira

Copyright: 2023

ISBN: 978-6556-40651-0

Gênero literário: romance de formação

Origem: literatura húngara

 

Ferenc Molnár é destes escritores dos quais pouco se sabe aqui no Brasil. Nasceu em Budapeste, capital da Hungria, em 12/01/1878 e faleceu em Nova Iorque, EUA, em 01/04/1952. Imigrou para os Estados Unidos fugindo da perseguição nazista aos judeus do seu país de origem.

Ele nasceu Ferenc Neumann, numa família judia de classe média; teve seu sobrenome traduzido para o idioma magiar (húngaro). Assim, foi rebatizado para Molnár, palavra que, em húngaro, significa “moleiro”. Esta exigência era regra geral na Hungria, pertencente, na época, ao Império Austro-Húngaro: todos os judeus eram obrigados a receberem nomes húngaros.

Entre suas obras – cujas referências são escassas nesta terra brasilis – constam a peça Lilion (1909), O Poste de Vapor, resenhado aqui neste blogue em 2016, sob o número 84, e o seu livro mais famoso, o clássico infanto-juvenil Os Meninos da Rua Paulo (1907).

Falar sobre este Os Meninos da Rua Paulo é voltar à minha formação como leitor. Uma viagem emocional. Lembro-me de ter compulsado um livro de bolso, com capa amarela e título com grandes letras vermelhas, editado pela Edições de Ouro. Os nomes de Boka, Nemescek e Geréb fazem parte da minha memória afetiva, constituindo-se eles poderosas chaves a abrirem referências à literatura húngara.

Pois bem. Desta caprichada edição da Nova Fronteira, que tenho em mãos, seleciono parte do parágrafo:

“Às quinze para uma, naquele exato momento, quando na sala de ciências naturais, sobre a mesa principal, após longas e inconclusivas experiências, finalmente, a muito custo, atingimos algum resultado, depois de uma longa e ansiosa espera, com a explosão de um lindo feixe verde-esmeralda na chama incolor do bico de Bunsen, demonstrando que com aquela mistura, com a qual o professor queria provar que pintaria a chama de verde, e ele de fato pintou a chama de verde, como eu disse: justo às quinze para uma, naquele triunfante momento, no quintal da casa vizinha, soou uma pianola e com isso toda a seriedade simplesmente se rompeu. As janelas estavam escancaradas naquele dia quente de março e, nas asas do ar fresco primaveril, a música voou para dentro da sala de aula. Eram algumas notas alegres de uma canção húngara, que lembravam uma abertura garbosa, ressoando como qualquer coisa vienense, e a classe toda desejou sorrir, aliás, teve quem de fato sorrisse.” (página13)

Interessante notar algumas coisas neste parágrafo introdutório. Primeiro, no tocante ao estilo do autor, a abundância de períodos subordinados, o que exige destreza na organização do que se quer dizer, sob risco de o pensamento se perder entre tantas vírgulas e encadeamentos de ideias. Segundo, a música que voou para dentro da sala de aula, portadora de uma abertura garbosa, com notas alegre de uma canção húngara ressoando como qualquer coisa vienense é uma referência ao Império Austro-Húngaro.

Este Império Austro-Húngaro tinha dois centros, como o nome deixa entrever: na Áustria e na Hungria. Mais especificamente, na Viena imperial e em Budapeste. A abertura garbosa, possivelmente ufanista, dizia respeito à bravura húngara. Mas as notas, soando como qualquer coisa vienense são referências à Viena – à Viena do importantíssimo legado musical das valsas ligeiras de Johann Strauss, por exemplo.

Os personagens desta história vão sendo apresentados, um a um: Geréb, Boka, Csónakos, Csele, Nemecsek e, ainda os adversários, os irmãos Pásztor. Formam dois grupos, portanto: os meninos da rua Paulo, capitaneados por Boka e outro grupo, liderado pelos irmãos Pásztor.

Os da rua Paulo utilizavam o grund – o território deles, localizado numa madeireira, e que deveria ser defendido com unhas e dentes. A outra turma montara sua base no Parque Municipal da cidade. Entretanto, logo o Parque se revela não apropriado para os meninos jogarem bola. Este conflito que se avizinha será o ponto crucial desta história. Uma guerra entre bandos de garotos por um território.

O azedume entre as duas “facções” é apontado desde cedo:

“— Ontem fizeram einstand no museu de novo!

— Quem?

— Os Pásztor. Os dois irmãos Pásztor.

Um grande silêncio se sucedeu.

Para isso, é preciso explicar o que é einstand, algo que toda criança de Budapeste do começo do século XX sabia. Quando um dos meninos mais fortes queria brincar com bolas de gude, por exemplo, ou outros jogos que exigiam equipamentos especiais que ele não tinha, mas via nas mãos de garotos mais fracos, decidia tomá-los, então dizia bem alto: einstand. Essa horrível palavra alemã significa que o mais fraco deve ceder o jogo ao mais forte, e quem ousar recusar será dominado pela força. É, portanto, um grito de guerra. Ao mesmo tempo, é o caminho mais curto para o estado de emergência do recurso da força, da lei do mais forte e de atos de pirataria, o próprio motivo da declaração.” (páginas 23/24)

Deste pequeno trecho podemos fazer algumas ilações. O Império Austro-Húngaro já vinha perdendo força, tendo sido o assassinato do imperador Francisco Fernando, na Sérvia, como o motivo da Primeira Guerra Mundial. Os austro-húngaros (ao qual se vincularam os Habsburgos) se esfacela ao fim da Segunda Guerra Mundial.

Por esta digressão, aproximamos Os Meninos da Rua Paulo das tensões presentes no ambiente de pré-primeira guerra – o livro é de 1907 – iniciada em 1914. Sopram ventos do conflito vindouro nas páginas deste excelente livro.

Boka e sua turma representam os pacifistas e os arruaceiros irmãos Pásztor são os mais fortes, os detentores do poder (dado pela força física). Boka e sua turma devem usar a sua imaginação para a defesa do que consideravam seu território:

“No grund, ninguém sabia que esse pedacinho de terra não seria mais deles. Esse pequeno pedaço de chão sem nenhum cultivo, acidentado, em Budapeste, essa várzea espremida entre duas casas que para suas almas de meninos representava o infinito, a liberdade, que, no período da manhã, era as planícies americanas e, de noite, a Transilvânia, quando chovia era o mar e, no inverno, o Polo Norte; era sempre a sua terra amiga, que se transformava no que eles queriam, só para a sua diversão.” (página 102)

Os Meninos da Rua Paulo continua um livro a ser lido. A história pode ser vista como uma singela narrativa sobre os valores da vida, a coragem de todo o grupo ao combater os mais fortes, na defesa de seus ideais; o respeito às regras criadas pelo próprio grupo, também. Sobretudo, a questão da dignidade e da dedicação a uma causa considerada válida, exemplificada pelo lourinho franzino Nemecsek.

“Sim, Boka se sentia agora como um grande comandante antes da batalha final. Pensou no grande Napoleão ... E se perdeu no futuro. Como seria? O que seria? O que resultaria disso tudo? Será que seu futuro seria o exército? De verdade, com uniforme oficial, comandando algum dia, em algum lugar distante, em campo de batalha real – não em um pequeno pedaço de terra, como esse grund, mas, sim, por aquele grande pedaço de terra amada, que chamamos de pátria? Ou seria médico, que esgrima com as doenças todos os dias, batalhas grandes, sérias e corajosas?” (página 133)

Aqui, Boka já não é mais um simples adolescente de quatorze anos. Aqui, ele é capaz de fazer projeções para um futuro – visto, é certo, como nebuloso em suas possibilidades – , sonha, pressente um conflito mais denso, mais real que aquele para o qual se prepara agora, na defesa do grund.  Sente o chamamento para a defesa de algo maior – a própria pátria. Aquela pitada de angústia diante do desafio visto como importante.

E, neste caso, a defesa do grund se transforma num rito de passagem, em que certas provas acontecem para provar o valor ou ascenção de determinado indivíduo a uma nova categoria validada pela sociedade.

E, ao acompanhar estes personagens – notadamente Boka e Nemecsek – na perda da inocência de um mundo infantil, Os Meninos da Rua Paulo se caracteriza no que se convencionou chamar romance de formação, cujo exemplar fundador é Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, do mestre alemão Goethe.

Nestes muitos anos que separam a minha primeira leitura deste clássico infanto-juvenil e esta, os olhos maduros perceberam muito mais coisas; fizeram muito mais contextualizações. Ser um clássico destinado à leitura de jovens não invalida o reencontro com o livro. Muito pelo contrário, o leitor maduro tem muito mais condições de ver no livro os valores que ele tem e no valor que tem um escritor como Ferenc Molnár.

Os Meninos da Rua Paulo continua um romance a mexer com as minhas emoções de leitor.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Resenha Nº 209 - A Outra Volta do Parafuso, de Henry James




Título original: The Turn Of The Screw

Autor: Henry James

Tradutor: Caetano Galindo

Editora: TAG Experiências Literárias

Copyright: 2023

ISBN: 978-88526-25-5

Gênero Literário: Novela

Origem: Estados Unidos

 

Henry James nasceu em Nova Iorque, EUA, em 15/04/1843 e veio a falecer em Londres, Inglaterra, em 28/02/1916. Escritor americano, cidadão inglês por nacionalização. Trata-se de um dos principais escritores da escola literária do realismo (séc. XIX). Escreveu romances, peças de teatro, contos e críticas literárias das mais conceituadas da literatura em língua inglesa.

O pai de nosso resenhado de hoje – William James – era um homem culto; filósofo, fez absoluta questão de propiciar boa educação ao filho. Viajou pela Europa em 1855 e por três anos andaram pela Inglaterra, Suíça e França. O turismo a estes países incluiu visitas a museus, bibliotecas e teatros.

Henry era apaixonado por literatura francesa, apesar de sua formação ser na área do direito (Harvard). Viveu em Paris por um tempo (ah, Paris, sempre Paris!) e teve contato com o círculo de Flaubert; conheceu Daudet, Maupassant e Zola. Em 1876, definiu-se por fixar residência em Londres – a maior parte de sua obra foi escrita na capital dos ingleses.

Escreveu os seguintes romances: Roderick Hudson (1876); Os Europeus (1878); Washington Square (1880); Retrato de Uma Senhora (1881); Os Bostonianos (1886); Pelos Olhos de Maisie (1897); A Outra Volta do Parafuso (1898); As Asas da Pomba (1902); Os Embaixadores (1903) e A Taça de Ouro (1904).

Seus contos: Uma Tragédia de Enganos (1864), The Story of A Year (1865); A Passionate Pilgrim (1871); Madame de Mauves (1874); Daisy Miller (1878); Os Manuscritos de Jeffrey Asper (1888); The Lesson of The Master (1888); O Desenho no Tapete (1896) e A Fera na Selva (1903).

Meu primeiro contato com o escritor foi por meio da novela A Fera na Selva. Uma excepcional novela, curta no tamanho, mas grande no que se propõe como obra literária. Tanto me foi importante a leitura, ela me ficou na memória após passados tantos anos.

A escrita de Henry James é impressionante. A Outra Volta do Parafuso é uma novela pequena, enxuta, vazada em um texto preciso e sem filigranas – aliás, como convém a um texto vinculado ao realismo. Não acho uma obra fácil de ler, apesar de não contar com palavras difíceis; a dificuldade está no enredo, que progride psicologicamente, tornando a narrativa lenta e cheia de análises.

É uma história de fantasma; entretanto, o autor subverte este subgênero (atenção, a referência a subgênero, aqui, é meramente classificatória – sou daqueles que acreditam que se podem produzir grandes obras em qualquer gênero) e não segue os clichês das histórias fantasmagóricas.

“A história nos mantivera, ao redor da lareira, aflitos o bastante, porém, com exceção do reparo óbvio de que era arrepiante, como um estranho conto em uma casa antiga na véspera de Natal deveria mesmo ser, não me lembro de nenhum comentário ter sido proferido até alguém notar que era o único caso com que havia deparado no qual tal provação recaísse sobre uma criança. O caso, posso mencionar, era o de uma aparição em uma casa tão antiga quanto aquela em que nos encontrávamos reunidos – uma manifestação de um tipo terrível, perante um menininho dormindo no quarto com a mãe, que a despertou, apavorado, não para que ela dissipasse seu medo e o tranquilizasse até que voltasse a dormir, mas para que ela mesma deparasse, antes de conseguir fazê-lo, com a visão que o havia chocado.” (página 17)

O parágrafo de abertura deste A Outra Volta do Parafuso – sem sombra de dúvida, um clássico – tem lugar na Mansão de Bly, em Essex, Inglaterra. É propriedade do Sr. Douglas, viúvo, com um casal de filhos: Miles e Flora. Naquela casa, existe ainda a figura da Sra. Grose, que toma conta das duas crianças. O Sr. Douglas não mora com elas, pois trabalha na cidade.

É a Sra. Grose que, até certo ponto, vai deixar a narradora em primeira pessoa, não nomeada, a par de fatos do passado. Digo até certo ponto porque Henry James capricha na ausência de informações que levem o leitor a transitar com segurança interpretativa e tirar conclusões indubitáveis sobre os fantasmas que habitam esta história.

As primeiras impressões da governanta começaram da entrevista de emprego, sobre o Sr. Douglas, seu patrão em potencial:

“Quando ela se apresentou para consideração em uma casa na Harley Street, que lhe pareceu enorme e imponente, tal pessoa, seu patrão em potencial, se revelou um cavalheiro, um homem solteiro no auge da vida, uma figura como nunca havia parecido fora de um sonho ou de um antigo romance a uma jovem alvoroçada e ansiosa, recém-saída de um presbitério em Hampshire. É fácil imaginar o tipo, que, por sorte, nunca míngua. Ele era bonito, ousado e agradável, espontâneo, alegre e gentil.” (página 22)

Henry James utiliza a técnica de liberar informações sobre esta governanta – que a esta altura da resenha já desconfiamos ser a figura central, a protagonista deste livro – aos poucos. É sempre ela que nos atualiza observações; é sempre ela que nos conta como se sente; é ela quem nos fala de suas impressões, como no trecho abaixo:

“Conforme me lembro, tal figura produziu em mim, na clareza do crepúsculo, dois suspiros de emoção distintos, nitidamente o choque de minha primeira e de minha segunda surpresa. A segunda foi a percepção violenta do erro que havia cometido: o homem que me olhava em meus olhos não era quem eu supusera a princípio. Veio-me então uma visão desnorteante da qual, tantos anos depois, não posso esperar fazer uma descrição vívida. Um desconhecido em um lugar solitário é algo que se permite que cause medo a uma jovem criada no âmbito privado; e a figura que me encarava era – como alguns segundos mais me asseguraram – tão pouco alguém que eu conhecia quanto a imagem que eu tinha na cabeça.” (página 40)

E, para lhes dar mais subsídios para a construção da imagem da governanta, mais uma pequena passagem:

“A fascinação dos meus pequenos pupilos era uma alegria constante, que me levava a refletir sobre a futilidade de meus medos originais e a aversão que eu entretivera em relação a um trabalho próximo da literatura burocrática. Não haveria nada de burocrático, aparentemente, e não seria uma labuta; como não poderia ser agradável um trabalho o que se apresentava como beleza diária? (página 44)

Há elementos góticos – ambientes pouco iluminados por uma lareira, sensações de que alguém observa a protagonista através de vidraças, estantes cobertas com livros antigos, coisas entrevistas numa paisagem cheia de neblina. Mas nunca será algo que resvale para o mórbido, como nos contos do americano Edgar Allan Poe. Aliás, a certa altura, o texto de James faz referência a uma outra obra, da escritora Ann Radcliff, Os Mistérios de Udolfo; este é um livro de literatura gótica inglesa, apontado, inclusive, como forte influência para Jane Austen escrever o seu A Abadia de Northanger.

Veja, você que me lê: temos uma narradora em primeira pessoa, protagonista da história; temos uma mansão em que vivem a Sra. Grose, a governanta, as duas crianças muito imaginativas, como se verá; temos um passado obscuro, envolvendo o valete Quint e a governanta Jessel, dois empregados já falecidos. A narradora substitui exatamente a Srta. Jessel.

Pelos trechos selecionados para esta resenha, podemos notar o caráter reflexivo, mas dado a expansões de sensações e sentimentos da mulher que nos conta a história. Reserve estes elementos. Já, já, voltaremos a eles.

Numa passagem crucial para a tentativa de entender este A Outra Volta do Parafuso, do capítulo XI, selecionamos outra passagem, bastante significativa. É o momento em que a governanta olha pela janela, à noite, e vê um vulto lá fora, no gramado. Este vulto não olha diretamente para ela; mira algo mais acima, mas lhe causa forte impressão. Ao fixar melhor, vê tratar-se de ninguém menos que o “pobre Miles”. Segue-se um estranho diálogo, pois ela o questiona por ter se exposto ao frio a à escuridão da noite:

“— Deve me dizer agora, assim como toda a verdade: para que saiu? O que estava fazendo lá fora?

Ainda posso ver seu sorriso maravilhoso, o branco de seus belos olhos, a revelação de seus dentes claros, brilhando para mim no crepúsculo.

— Se eu contar o motivo, você entenderá?

Isso fez meu coração saltar da boca. Ele pretendia me contar o motivo? Nenhum som saiu de meus lábios para o incentivar, e percebi que respondia apenas assentindo repetidamente, ainda que de maneira vaga. Ele foi a personificação da gentileza, e enquanto eu balançava a cabeça me pareceu mais do que nunca um pequeno príncipe de conto de fadas. Foi sua animação, de fato, que me ofereceu uma trégua. Seria mesmo bom se ele realmente me contasse?

— Bem – ele disse afinal –, exatamente para que isso acontecesse.

— Isso o quê?

— Para que pensasse em mim, para variar, como malvado!” (página 88)

Um pouco de contextualização sempre é bem-vinda, notadamente se o livro lido por nós possui referências de épocas já recuadas, como é o caso. A Outra Volta do Parafuso foi escrito sob a cultura da chamada Era Vitoriana inglesa. Costuma-se pensar nela como uma sociedade altamente repressora, cheia de regras do que seriam os bons costumes e isto é verdade. Mas, também é verdade, nesta época surgem valores como o naturalista Charles Darwin, autor da teoria da evolução das espécies; surge o gigante Sigmund Freud, pai da psicanálise.

É certo que Henry James tomou conhecimento das teorias freudianas. Suas histórias, de cunho marcadamente psicológico lhe custaram, inclusive, a crítica de seus personagens serem excessivamente mentais, não têm vida fora deste campo mental. Aqui vai outra informação: o irmão de Henry, William James, é um dos criadores da moderna psicologia e pensador influente.

Meu caro leitor, havia pedido a você para guardar algumas informações sobre a narradora e lhe prometi retornar a elas. Pois bem, vamos lá.

Ao criar uma narradora assim, afetada diretamente pelos fatos que narra, e sendo ela a única voz narrativa a nos chegar, temos a subjetividade da narração. Como é uma narradora reflexiva, mas muito impressionada (sensações, sentimentos), temos aí uma depoente não confiável. E o romance ainda faz mais: descobrimos que as crianças maravilhosas não são tão maravilhosas assim, Miles é capaz de montar uma armadilha para convencer a governanta de que ele é, para variar, um malvado!

Não há saída para a interpretação desta obra literalmente fantástica: ou o leitor pertence ao time dos “metafísicos” e crê que os fantasmas vistos pela protagonista são realmente fantasmas, ou o leitor se enquadra no time dos “psicólogos” e parte da ideia de os fantasmas não passarem de alucinações da governanta.

Se você, com seus botões, está aproximando, até certo ponto, Henry James de Machado de Assis, está certo. A Outra Volta do Parafuso e Dom Casmurro têm narradores não confiáveis, dando seus depoimentos. Por isso, tanta tinta se gastou na defesa de uma e de outra tese: os fantasmas são reais? Os fantasmas são alucinações? Afinal, Bentinho foi traído por Capitu? Ou ela é inocente, tudo não passando das projeções de um homem inseguro de si próprio?

Um outro ponto – este para o time dos “psicólogos”, se os fantasmas são alucinações da protagonista, de que natureza seriam tais mentalizações?

Uma corrente muito forte elabora a tese de serem tais alucinações de fundo sexual. Para isto, servem-se de Freud e das questões da libido – sobretudo da incompreendida libido feminina, dentro de uma sociedade vitoriana que negava a realização sexual às mulheres. O encantamento da narradora com o pequeno Miles, no trecho exposto acima, transcrito da página 88, é bastante sugestivo, não?

Creio ser uma bobagem o esforço de esclarecer estes dilemas, tendo em vista que tais autores geniais planejaram as obras assim, as narrativas desejam ficar no limbo, na fugacidade, propõem a dúvida.

Resta finalizar. As histórias de fantasmas de Henry James são deste jeito, “tortas quanto ao gênero”. As criações deste autor não são macabras; talvez a gente possa dizer que assustam os outros personagens mais pela sua inconsistência não humana... mas aí, possivelmente, quem está tendo alucinações é o autor desta resenha.