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quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Resenha nº 201 - Do Tempo Em Que Voyeur Precisava de Binóculos, de Luize Valente

 




Título: Do tempo em que voyeur precisava de binóculos

Autora: Luize Valente

Editora: Record

Edição: 1ª

Copyright: 2019

ISBN: 978-85-01-11716-8

Origem: literatura brasileira

Gênero: conto

 

Luize Mendes Pinheiro Valente nasceu no Rio de Janeiro e é de ascendência portuguesa e alemã. Formada em jornalismo e pós-graduada em Literatura pela PUC-RJ, é fascinada por História, notadamente ligada às questões judaicas e os refugiados dos tempos de guerra. Sua bibliografia é composta de três romances: O Segredo do OratórioUma praça em Antuérpia, Sonata em Auschwitz e um livro de contos, Do tempo em que voyeur precisava de binóculos. Seus livros já foram editados fora do Brasil; Uma praça em Antuérpia ganhou edição portuguesa pela editora Saída de Emergência, integrando a coleção "História de Portugal em Romances". O Segredo do Oratório ganhou uma tradução holandesa pela Nieuw Amsterdam.

Em 2017, os direitos cinematográficos de O Segredo do Oratório e de Uma praça em Antuérpia foram adquiridos pelos produtores Breno Silveira (de 2 Filhos de Francisco) e Paula Fiuza (diretora do documentário Sobral).

Do tempo em que voyeur precisava de binóculos contém três contos longos, a saber, De repente o mundo ficou realmente grande, O dia em que Eva acordou e (In)cômodos. O que encaixa estes três trabalhos de Luize sob o longo e descritivo título são duas coisas. Primeiro, serem todas as histórias ambientadas nos anos sessenta. Segundo, todas as tramas têm a ver com os imóveis habitados pelos personagens. O volume possui até um glossário, com palavras que, com bastante certeza, a geração de leitores mais novos não tem a menor ideia do que significam. Ou significaram.

Assim, temos: carrossel de CD, DOS, Filme B, Yuppie, prafrentex, pager ou bipe. Não faltam referências a séries televisivas como Os Jetsons, Os Simpsons (esta, incrivelmente duradoura, passa até hoje) e Os Waltons.

O parágrafo introdutor do primeiro conto parece ter sido planejado como uma introdução para a coletânea inteira:

“Ninguém se torna um voyeur. Já nasce assim. Se você olhar um berçário com bastante atenção, vai perceber que algumas crianças viram o rosto quando encaradas. Foram descobertas. Eu sei do que estou falando. Nasci prematuro e as semanas na incubadora me ajudaram a desenvolver um senso agudo de observação. Meus olhos eram a porção humana de um corpo com pulmões artificiais e uma cabeça inchada de veias sob a pele fina e transparente.” (página 15)

De repente o mundo ficou realmente grande tem uma pegada à Janela Indiscreta, filme de Alfred Hitchcock, estrelado por James Stewart, Grace Kelly e Wendell Corey. Enredo: um fotógrafo quebra a perna e é obrigado a ficar em casa. Não tem nada para fazer, então, bisbilhota a vida dos outros com seus binóculos. De sua janela, ele presencia o que pode ter sido um assassinato.

Aqui neste livro, o voyeur observa, de sua janela, a privacidade alheia com seu binóculo. Observa sua obsessão, Fernanda:

“Tenho uma ambição desmedida, que Fernanda não possui. Quero muito, o poder me agrada. Ela se esconde numa dissertação de mestrado. Muitas vezes, julgo que ela adoraria ter sofrido meu acidente para poder adiar mais um pouco a entrada na vida.

A esta altura, já a acompanho faz uma semana. A primeira impressão insossa é substituída pela sensação de descobrir alguém especial. Não é bela o bastante para o encanto de um primeiro olhar. Também não tem a fibra da profissional atirada que fascina ao mesmo tempo que amedronta. Mas a beleza é um misto de genético e cosmético; e o sucesso, de oportunidade, perseverança e algum talento. Fernanda tem carisma. Isso é herança divina. A gene vê Fernanda no primeiro dia e dá de ombros. No segundo, as lentes a procuram como quem não quer nada. E assim os dias vão passando, e o foco cai nela não se sabe por quê. Não anda pelada, não faz nada de mais. No entanto, os olhos se perdem em observá-la, hora a fio, neste não fazer, por alguma razão que meu eu racional não explica.” (página 27)

O solitário voyeur, ao invadir a vida de outra pessoa, acaba mexendo na sua própria vida. Forçado a uma espécie de autoanálise, a um reexame de sua própria existência:

“Todo ser humano tem um quê de perverso... pelo menos isso me serve como justificativa para elucubrar pensamentos pecaminosos sobre a família. No estado de inércia em que me encontro, faz bem enveredar a mente por caminhos proibidos pela moral cristã. Embora não tenha tido educação religiosa severa – cheguei a fazer primeira comunhão, mas jamais comunguei depois daquele dia –, carrego a culpa católica de maldizer pai e mãe. Mas o homem é racional porque pensa e não pelo que pensa. Hein? Deixo as divagações de lado para voltar ao concreto que define minha paisagem.” (página 41)

E, no fim de tanta observação, de tanto exercício voyeur, na confirmação da teoria que nos diz que aprendemos com os outros, o narrador constata:

“Estou apaixonado pela vida. E é essa sensação que me faz querer mudar tudo. Procurar os caminhos que o destino traçou para mim e não apenas olhá-los como possibilidades do que poderia ter sido.” (página 65)

Em O dia em que Eva acordou, temos uma narradora que acompanha a personagem Eva. Ela compulsa o diário de Eva e revê a vida dela:

“Tudo se passou em menos de uma hora, desde o instante em que Eva abriu os olhos naquela manhã de sábado. Não estamos aqui para julgá-la. Existe certo e errado? Além do mais, já está feito. Quanto a Berto, Homem do Ano, Empresário Modelo e tal, cometeu um erro primário. Falou de noite, quando temos apenas os fantasmas para dividir a angústia, o que deveria ter dito pela manhã... Afinal era sexta-feira. Custava deixar para segunda?” (página 71)

Eva tem de acompanhar o marido Berto. É-lhe imposto mudar de país e de casa e, pouco a pouco, estas movimentações vão mexendo com sua vida. O diário de Eva revela o crescente interesse dela pela cunhada Noelle e suas autodescobertas – tanto quanto ao seu corpo, quanto aos seus sentimentos – se revelam:

“A cabeça de Eva ia sendo ocupada por zeros e mais zeros que engordavam as somas de uma vida inteira. As cifras abririam as portas do mundo para ela e Noelle. A cunhada teria os carros que quisesse, os brilhantes que quisesse, ela fecharia a Chanel se Noelle pedisse. Juntas conquistariam o universo. Ela e Noelle, ela e Noelle, Noelle, Noelle, Noelle. Agora eram as letras daquele nome magnífico que lhe tomavam a mente e lhe enchiam o corpo de prazer.” (página 83)

(In)cômodos fornece dados interpretativos a partir do nome. Não é um trocadilho simplório. Ao fornecer duas leituras superpostas – incômodos dos personagens por algum motivo e “em cômodos” anuncia uma espécie de identificação de problemas em cada aposento – anuncia um tema que caminha para os lados de Viagens ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre.

A vida de duas mulheres numa relação homoafetiva não é fácil, como qualquer relação, aliás:

“É fácil ignorar, quem está sendo agredida sou eu.” Ela, muda. “Nunca minha mãe, meu pai, qualquer pessoa da minha família te tratou mal. Sabe por quê? Porque eu me dou ao respeito, eu saí de casa de verdade, eu cortei o cordão. Mas você, você... “Eu o quê?”, corta ríspida, se levantando, não deixando fôlego, “tá aí brigando sozinha. Aliás você é mestre em brigar sozinha”, e sai da sala. E me larga falando, bufando. Que ódio, ódio. Uma frase. Eu só quero ouvir dela uma frasezinha, mas ela não diz, nunca diz. Por que a pessoa que a gente ama nunca fala o que a gente quer, na hora que a gente quer?” (página 92)

É uma relação cheia de não ditos, de termos e incômodos em suspensão. E as coisas tomam proporções enormes exatamente no banheiro em obras. Já foram trocados todos os canos velhos, mas a infiltração continua. Nesse cômodo com vazamento, acontece o vazamento de mágoas e desentendimentos:

“será que você vai finalmente se realizar cuidando de mim doente? Será que a reforma do maldito banheiro vai pro espaço por causa do barulho que vai incomodar o seu amorzinho?”, e esmurra o peito como se fosse um tambor, e bate a cabeça na parede e, e... e aquilo vai subindo, subindo, subindo até que vomito um CHEGA. Vindo do estômago, “CHEGA, eu não quero mais você, sua louca. Saia da minha frente. Eu te adoeço? O que significa isso? Em bom português, eu te adoeço e você me adoece. Não me coloque no meio da tua loucura. CHEGA, abre essa porta que eu quero sair.” (página  107)

Do tempo em que voyeur precisa de binóculos é uma boa coletânea. Luize Valente maneja bem o conto, mas não tenho como comparar gêneros tão diferentes: conto e romance. A ambientação dos anos sessenta nos deixa a sensação... sensação? Não. Deixa-nos a certeza de que, afinal, muito pouca coisa mudou de lá para cá. Os problemas de relacionamento humano continuam os mesmos. Tudo bem, um voyeur hoje não precisa mais de binóculos. Tem tralhas tecnológicas para isto: webcams, Instagram, Facebook, Tik Tok, invasão de smartphones, et cetera.

Pensando bem, talvez nem seja mais necessária a existência de voyeurs: as próprias pessoas se encarregam de expor suas intimidades em qualquer mídia social, para o deleite de olhos ansiosos. Parece, tal exposição confere aos expostos seus habituais quinze minutos de fama, como queria Andy Warhol.

Ah, e estamos em plena era das fake news...

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Resenha nº 200 - O Sentido de Um Fim, de Julian Barnes

 


Título original: The Sense of An Ending          

Autor: Julian Barnes

Tradutora: Léa Viveiros de Castro

Editora: Rocco/TAG Livros

Copyright: 2011

ISBN: 978-85-325-3139-1

Origem: literatura inglesa

Gênero: Romance

 

Julian Patrick Barnes nasceu em Leicester, Inglaterra (19/01/1946). O escritor venceu o prêmio Man Booker, pelo seu presente livro, The Sense of An Ending (2011). Outros três livros anteriores foram finalistas deste mesmo prêmio: Flaubert’s Parrot (1984), England, England (1998) e Arthur & George (2005). Barnes publicou, ainda, sob o pseudônimo Dan Kavanagh, ficção criminal; além disso, é autor de ensaios e contos.

A obra considerada sua magnun opera (obra máxima) é O Papagaio de Flaubert. Nele, o médico e viúvo Geoffrey Braithwhite viaja até Rouen, na França. Encontra um papagaio empalhado que teria pertencido ao famoso escritor francês, Gustave Flaubert, daí o título.

Este O Sentido de Um Fim envolve três estudantes: Tony Webster, que é também o narrador; Alex e Colin. A este grupo preexistente na escola, junta-se o novato Adrian Finn. Formam eles um conjunto muito interessante:

“Outro detalhe de que eu me lembro: nós três, como símbolo de nossa união, costumávamos usar nossos relógios com o mostrador na face interna do pulso. Era uma afetação, é claro, mas talvez algo mais. Isso fazia o tempo parecer uma coisa pessoal, até mesmo secreta. Nós esperávamos que Adrian notasse o gesto, e o imitasse, mas ele não o fez.” (página 16)

O narrador Tony Webster nos dá sua impressão sobre o novo amigo:

“Essa era uma das diferenças entre nós três e o nosso novo amigo. Nós éramos essencialmente debochados, exceto quando éramos sérios. Ele era essencialmente sério, exceto quando era debochado. Nós levamos algum tempo para entender isso.” (página 17)

O tempo passa, entretanto, e chega a hora de se despedirem e ingressarem nos cursos superiores de suas escolhas. Como diz Webster, “Adrian, o que não foi surpresa para ninguém, ganhou uma bolsa de estudos para Cambridge”. Mantêm contato através de cartas:

“Os três originais escreviam com menos frequência e menos entusiasmo um para o outro do que para Adrian. Nós queríamos sua atenção, sua aprovação; nós o cortejávamos, e contávamos primeiro a ele nossas melhores histórias; cada um de nós achava que era – e merecia ser – mais próximo dele.” (página 31)

A época dos namoros mais sérios e compromissados chega, e naturalmente, entra mais uma personagem na história:

“Minha namorada se chamava Veronica Mary Elizabeth Ford, informação (refiro-me aos seus nomes do meio) que eu levei dois meses para extrair. Ela estava estudando espanhol gostava de poesia e o pai era funcionário público. Tinha cerca de um metro e cinquenta e cinco, batatas da perna musculosas, cabelos castanhos até os ombros, olhos azuis-acinzentados por trás de óculos de armação azul e um sorriso rápido, mas retraído. Eu a achava bonita. Bem, provavelmente eu teria achado bonita qualquer garota que não me rejeitasse.” (página 32)

Adrian Finn, entretanto, comete suicídio, aos vinte e dois anos. Este não é um spoiler, pois é informação que faz parte do texto da quarta capa do livro. Ele recebe uma pequena herança e os fragmentos de um misterioso diário de Finn. A partir destes fragmentos é que Webster faz suas incursões de memória, fazendo uma espécie de reconstrução do acontecido no passado e qual seria, afinal de contas, seu papel junto ao amigo agora ausente.

Desta confrontação de dados – os de sua própria percepção – e os constantes daquele diário surge uma nova interpretação dos fatos. Adrian Finn sempre fora visto, pelo grupo original, como o mais brilhante dos quatro. Esta obra se configura, portanto, como um livro cujo texto se aproxima muito das narrativas memorialísticas como, por exemplo, Baú de Ossos, do mineiro Pedro Nava.

Conforme se depreende desde o título, em O Sentido de Um Fim a passagem do tempo é importante. O texto tem várias belas reflexões sobre o decorrer dele, o significado das coisas acontecidas:

“Como já mencionei, eu tenho um certo instinto de preservação. Eu consegui tirar Verônica da minha lembrança, da minha história. Então, quando o tempo me jogou depressa demais na meia idade e eu comecei a olhar para trás, vendo como minha vida tinha transcorrido e avaliando os caminhos não percorridos, aquelas suposições tranquilas e debilitantes, eu nunca me vi imaginando – nem mesmo para pior, quanto mais para melhor – como teriam sido as coisas com Verônica.” (página 81)

Ou este outro trecho:

“Na juventude, conseguimos nos lembrar de toda a nossa curta vida. Mais tarde, a memória vira uma coisa feita de retalhos e remendos. É um pouco como a caixa preta que os aviões carregam para registrar o que acontece num desastre. Se nada der errado, a fita se apaga sozinha. Então, se você se arrebenta, o motivo se torna óbvio; se não se arrebenta, então o registro da sua viagem é muito menos claro.” (página 125)

O imbricamento entre tempo e memória se torna crítico com a chegada da velhice:

“Quando você começa e esquecer as coisas – não estou falando de Alzheimer, só da consequência previsível do envelhecimento – há maneiras diferentes de reagir. Você pode parar tudo e ficar tentando forçar sua memória a fornecer o nome daquele conhecido, flor, estação de trem, astronauta... Ou você admite o fracasso e toma medidas práticas como consultar uma enciclopédia e a internet. Ou você pode simplesmente deixar para lá – esquecer de lembrar – e então às vezes você percebe que o fato esquecido volta à superfície uma hora ou um dia depois, normalmente durante aquelas longas noites em claro que a idade impõe. Bem, nós todos aprendemos isso, aqueles de nós que esquecem as coisas.” (página 133)

Estruturalmente, o livro é divido em duas partes. Na primeira, seguimos Webster em seus relatos meio aleatórios, pouco profundos. Todo o grupo vive as ansiedades próprias da juventude ainda sem definições. Seus anseios referem-se mais a sexo, tornarem-se adultos. Aqui, se inicia o despontar das primeiras relações amorosas, permeadas de inexperiência e os traumas advindos delas. Na construção do adulto, entretanto, escolhas e estragos vão sendo feitos à medida que o tempo passa.

Já na segunda, o narrador é um homem maduro, divorciado. O diário de Adrian Finn obriga o narrador a rever fatos e seus significados; ele é obrigado a reavaliar seus atos e rever seu passado. Então, os tais relatos aleatórios, abordados com um clima de imparcialidade vão, aos poucos, levando a questionamentos, descobertas.

Este tipo de narrador – dito não confiável – é nosso velho conhecido. Talvez o narrador icônico deste tipo, na literatura brasileira, seja o Bentinho, de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Entretanto, aqui neste O sentido de um fim, tal narrador não confiável tem uma característica diferente: ele se reconhece como tal.

Reflete o narrador Tony Webster sobre si mesmo, tendo como referência o diário de Adrian Finn:

“Então, por exemplo, se Tony...” Estas palavras tinham um sentido local, textual, específico de quarenta anos atrás; e em algum momento eu poderia descobrir que elas continham ou conduziam a uma crítica por parte do meu velho clarividente e autovidente amigo. Mas por ora eu as ouvi como uma referência mais ampla – ao conjunto da minha vida. “Então, por exemplo, se Tony...” E neste registro tivesse enxergado mais claramente, agido com mais decisão, se apegado a valores morais mais verdadeiros, aceitado com menos facilidade uma passividade que ele chamou primeiro de felicidade e depois de contentamento. Se Tony não tivesse sido medroso, não tivesse dependido da aprovação alheia para aprovar a si mesmo... e assim por diante, através de uma sucessão de hipóteses conduzindo a uma hipótese final: então, por exemplo, se Tony não fosse Tony.” (página 107)

Romance típico do tempo em que vivemos, O Sentido de um fim escancara nossa confusão diante do mundo antigo, concreto, em turbulência, cujos valores pretensamente imutáveis colidem a todo momento com o mundo atual e líquido, como queria Zigmunt Bauman, onde tudo muda o tempo todo. Como o narrador de Julian Barnes, somos obrigados a rever valores do passado, adaptá-los, recusá-los. Como este narrador, estamos perdidos; muito do que aprendemos, configura-se hoje como verdadeiras armadilhas:

“Quando eu estava na escola, nos diziam que enquanto estivéssemos de uniforme tínhamos que nos comportar de um modo que refletisse bem a instituição. Então não era permitido comer ou beber na rua; e se alguém fosse apanhado fumando levaria uma surra. E também não era permitido confraternizar com o sexo oposto: a escola das meninas que ficava ao lado e se ligava à nossa deixava as meninas sair quinze minutos antes dos meninos, dando tempo a elas de se afastar bastante de seus pares masculinos, predatórios e fálicos. Eu fiquei ali sentado me lembrando de tudo isso, registrando as diferenças, sem chegar a nenhuma conclusão. Nem aplaudi nem censurei. Fiquei indiferente; eu tinha suspendido o meu direito a ideias e julgamentos.” (página 157)

E, precisamente por me reconhecer como um narrador não cem por cento confiável, que dependo de minhas reavaliações do passado que, sob a ótica de hoje precisam de ressignificação, eu tenho de ler outra vez este livro. E, precisamente por este livro ter me incomodado tanto (é a arte que imita a vida, mesmo?), que retornarei a ele.

“Você se aproxima do final da vida – não, não da vida em si, mas de outra coisa: de qualquer possibilidade de mudança nessa vida. Você tem permissão para desfrutar de uma longa pausa, tempo suficiente para perguntar: o que mais eu fiz de errado? Eu pensei num bando de garotos em Trafalgar Square. Pensei numa jovem dançando pela primeira vez na vida. Pensei no que não podia saber ou compreender agora, em tudo que jamais poderia ser conhecido ou compreendido.” (página 174)

domingo, 6 de novembro de 2022

Resenha nº 199 - A Noite, de Elie Wiesel

 



Título original: La Nuit

Autor: Elie Wiesel

Tradutora: Dorothée de Bruchard

Editora : Sextante

Copyright : 2021

ISBN : 978-65-5564-207-0

Gênero Literário : Biografia

Origem : Romênia

 

Elie Wiesel é autor de mais de quarenta títulos, entre ficção e não ficção. Ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1986, pelo conjunto da obra. Trabalhou como presidente do Conselho Memorial Unido do Holocausto, tendo sido agraciado com diversas honrarias, entre as quais, a Medalha Presidencial de Liberdade dos EUA, título de Cavaleiro da Ordem do Império Britânico e a brasileira Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco.

Wiesel nasceu em 1928, em Sighet, na Transilvânia. Após a segunda Guerra Mundial estudou na Sorbonne, na França. Tornou-se repórter e correspondente. Mudou-se para Nova York em 1955 e se tornou cidadão americano. Faleceu em julho de 2016, aos 87 anos de idade.

A Noite é um livro de 156 páginas. Entretanto, não se deixe enganar o leitor: trata-se de uma leitura densa e marcante. Como já se deduz, Elie conta a experiência de sua estada no campo de concentração Auschwitz-Birkenau. Talvez a característica principal deste livro seja o contraponto entre o estilo do autor e os horrores relatados.

Explico-me melhor. Elie Wiesel, sendo autor de mais de quarenta obras, tem um estilo bastante depurado. Há um cuidado com a escolha das palavras, com a precisão dos termos. Não há palavras demais nem derramado é o relato. Tais constatações conferem à biografia, aqui resenhada, um ar de dignidade, de contida lucidez.

“Chamavam-no Moshe, o Bedel, como se nunca na vida tivesse tido um sobrenome. Era o ‘faz-tudo’ de uma sinagoga chassídica. Os judeus de Sighet – a cidadezinha da Transilvânia onde passei a infância – gostavam dele. Era muito pobre e vivia na miséria. O pessoal da minha cidade, embora ajudasse os pobres, em geral não era de gostar muito deles. Moshe, o Bedel, era uma exceção. Não incomodava ninguém. Sua presença não trazia aborrecimentos. Tornara-se mestre na arte de passar despercebido, de se fazer invisível.” (página 25)

Relata-nos Elie que muito cedo interessou-se pelos estudos da Cabala. Para nós, não judeus, é útil explicar, a Cabala é um método esotérico que abarca um conjunto de ensinamentos relacionados a Deus, o universo, o homem, a criação do mundo, a vida e a morte. Fundamenta-se na revelação de Deus a Adão e a Moisés.

Um estudo, portanto, complexo demais para ser o objeto de estudo de um jovem. Por isto, o pai de Elie é contrário ao desejo dele. Entretanto, apesar de ter apenas 13 anos de idade, o menino não desiste; esta obsessão o leva a ter Moshe como seu iniciador nos textos da Cabala:

“— Por que você chora quando reza? – ele me perguntou como se fôssemos próximos.

— Não sei – respondi, bastante perturbado.

Essa pergunta nunca tinha me ocorrido. Eu chorava porque... porque alguma coisa em mim sentia necessidade de chorar. Era só o que eu sabia.

— Por que você reza? – perguntou ele, passado um instante. Por que eu rezava? Que pergunta estranha. Por que eu vivia? Por que respirava?

— Não sei – respondi, sem jeito e ainda mais perturbado. – Não sei.” (páginas 21/22)

As estações de rádio estão cheias de notícias sobre o exército alemão que, ainda distante, avança sobre outros países. Na Transilvânia, a preocupação constante está no ar, bem como a indecisão sobre o que fazer. É que não estão claras ainda as intenções de Hitler:

“Então ele iria aniquilar um povo inteiro? Exterminar uma população espalhada por tantos países? Milhões de pessoas! Com que meios? E em pleno século XX!” (página 31)

Os horrores vêm lançando, sorrateiramente, sua sombra sobre a Europa. Ali, em Sighet, onde vivem muitos judeus romenos, a chegada dos alemães, apoiados pelos húngaros, não parece tão drástica assim:

“A vida, pouco a pouco, foi se ajustando. Os arames farpados que nos cercavam qual muralha não nos inspiravam maiores temores. Até nos sentíamos bastante bem: estávamos somente entre nós. Uma pequena república judia... As autoridades instituíram um Conselho Judaico, uma polícia judaica, uma agência de assistência social, um comitê do trabalho, um departamento de higiene – todo um aparato governamental.” (página 35)

O que é bom dura pouco, diz o adágio popular. Logo, a situação em Sighet piora. Os judeus seguem o mesmo destino de outros judeus, em outras partes do continente europeu. Eis a descrição de Elie Wiesel:

“Então puseram-se em marcha, sem olhar sequer para as ruas abandonadas, para as casas vazias e apagadas, para os jardins, para as lápides... Nas costas de todos, uma mochila. Nos olhos de todos, agora, um sofrimento, banhado em lágrimas. Lenta, pesadamente, a procissão avançou para os portões do gueto.” (página 41)

Vão passando filas de judeus, sem saberem qual o seu destino, e Sighet vai ficando vazia. Em breve, também chega a vez de Elie, seu pai, sua mãe e sua irmã. São colocados em vagões de carga, oitenta pessoas por vagão. A fome, o desespero, o medo fazem o seu trabalho:

“Liberados de qualquer censura social, os mais jovens se entregavam livremente aos seus instintos e, amparados pela escuridão da noite, se acariciavam no meio de todos, sem se importar com ninguém, sozinhos no mundo. Os outros fingiam não ver.” (página 49)

A viagem de trem termina:

“Fitávamos as chamas dentro da noite. Um cheiro abominável pairava no ar. Repentinamente, as portas se abriram. Figuras curiosas, todas de casaco listrado e calça preta, pularam para dentro do vagão. Levavam nas mãos uma lanterna e um porrete. Saíram batendo a esmo, antes de bradar:

— Desçam todos! Deixem tudo no vagão! Depressa!

Saltamos. Lancei um último olhar para a Sra. Schächter: seu garotinho segurava sua mão.

À nossa frente, as chamas. No ar, o cheiro de carne queimada. Devia ser meia-noite. Tínhamos chegado. A Birkenau.” (páginas 54/55)

Os judeus são separados em dois grupos. Um, de pessoas saudáveis, destinadas a trabalhar como forçados no campo de concentração. O outro, de crianças, homens e mulheres doentes ou fracos demais, que não serviam para nada e por isso, seriam exterminados.

O que seria melhor? Ser exterminado de uma vez ou desumanizar-se pouco a pouco, sem a garantia de que o sobrevivente não seria o próximo a ir para os fornos crematórios?

Sim, porque quando reduzimos a vida de um ser humano às condições sub-humanas, é o animal que passa a agir, pois animais nós somos. Quer-se viver de qualquer forma, de qualquer jeito:

“E de repente, como que despertando de um sono letárgico, lascou em meu pai uma bofetada tamanha que ele foi ao chão e voltou de quatro para o seu lugar.

Fiquei petrificado. O que tinha acontecido comigo? Acabavam de bater no meu pai na minha rente e eu não tinha sequer pestanejado. Tinha olhado e ficado quieto. Ainda ontem, teria cravado as unhas naquele criminoso. Teria mudado tanto assim? Tão rápido? O remorso começou a me corroer. Pensei apenas uma coisa: “nunca vou perdoá-los por isso”. (página 69)

Perde-se a crença em Deus, nos homens, em tudo:

“Como poderia eu Lhe dizer: “Bendito sejas tu, ó Eterno, Senhor do Universo, que nos elegeu entre os povos para vermos nosso pai, nossa mãe, nossos irmãos terminarem no crematório? Louvado seja o Teu Santo Nome, Tu que nos escolheste para sermos imolados em teu altar?” (página 100)

Elie Wiesel, entretanto, sobreviveu para nos contar sobre o Holocausto. Como tantos outros judeus de várias nações. Quando terminamos de ler este A Noite, ficam-nos intensas reflexões. O que, afinal de contas, teria gerado tamanho ódio aos judeus? O que eles fizeram de tão terrível para merecerem tal perseguição?

Somos seres cheios de ódios duradouros. Basta que alguém pense de maneira diferente de nós, e nos confronte, para todos – sem exceção – termos ganas de enforcá-lo. Ninguém está livre de preconceitos; seres de luz e de sombra, nós seguimos nossas vidas.

É preciso que relatos assim nos façam refletir. E, de preferência, que nos causem fortes incômodos. Não, não desejo ser assim. A força da Arte – em especial a da Literatura – pode nos ajudar: o autor nos ganha por meio da arte de construir histórias, nos faz adotar determinado personagem. Os atos, os pensamentos destes personagens então nos fazem dissipar a camada de verniz tênue e nos expõem nossas misérias, porque as misérias deles são as nossas.

Não posso deixar de mencionar O sentido da vida, de Viktor Frankl, já resenhado neste blogue. Como ele pôde extrair uma terapia da sua vivência terrível nos campos de concentração? Como estes humanos, submetidos às piores experiências não enlouqueceram? De Onde extraíram tanta força? É para tentar entender isto que desejo, ainda, ler a trilogia do escritor italiano, Primo Levi: É isto um homem?, Os afogados e os sobreviventes e Trégua.

A Noite, de Elie Wiesel. A ele voltarei, várias vezes. A outra linha de força do seu relato está na sinceridade com que esta biografia é montada. Sendo contada por ele mesmo, não escondendo seus piores pensamentos e atitudes, nos impacta porque, reconhecemos, qualquer um de nós, submetido a tais ocorrências, agiríamos e pensaríamos como ele.


sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Resenha nº 198 - Nada para ver aqui, de Kevin Wilson

 

 




Título original: Nothing to see here

Autor: Kevin Wilson

Tradutora: Natália Borges Polesso

Copyright: 2021

Editora: Harper Collins/TAG

ISBN: 978-65-5511-229-0

Origem: Literatura americana

Gênero Literário: Romance

 

Kevin Wilson é um escritor americano, nascido em Sewanee, no estado do Tennesee, em 1978. É professor de literatura na Universidade do Sul e autor dos seguintes livros: Tunneling to the center of the Earth (2009), The Family Fang, Caninos em Família, (2011), Perfect Little World (2017), Baby, You’re gonna be mine (2018), Nothing to see Here, Nada para ver aqui, (2019).

Lillian e Madison Billings são duas amigas que, afastadas uma da outra, se correspondem, como fica evidente já no parágrafo introdutório do livro:

“No final da primavera de 1995, poucas semanas depois que fiz vinte e oito anos, recebi uma carta da minha amiga Madison Roberts. Eu ainda pensava nela como Madison Billings. Ouvia notícias de Madison quatro ou cinco vezes ao ano, atualizações sobre a vida dela que eram tão distantes para mim quanto notícias da Lua, uma existência do tipo que você só vê em revistas. Ela era casada com um homem mais velho, um senador, e tinha um menininho que vestia com roupas náuticas, que parecia um ursinho de pelúcia caro transformado em humano. Eu estava trabalhando como caixa em dois mercados concorrentes e fumando maconha no sótão da casa da minha mãe, porque, assim que eu fiz dezoito anos, ela transformou meu quarto de infância em uma sala de ginástica, uma esteira enorme preenchendo o espaço onde eu tinha crescido infeliz. Eu esporadicamente namorava pessoas que não me mereciam mas pensavam que mereciam. Dá para imaginar com as cartas da Madison eram cem vezes mais interessantes do que as minhas, mas nós mantínhamos contato.” (página 7)

Acontece que Lillian recebe uma carta de Madison lhe propondo emprego. Será algo que, na aparência uma tarefa não tão difícil, terminará por ser uma ocupação impactante. Não tendo nada melhor, ela aceita a oferta da amiga: cuidar de um casal de gêmeos, filhos do marido, num casamento anterior.

Lillian havia sido colega de quarto de Madison na faculdade. Um incidente envolvendo a figura de Madison acontece:

“E então, uma das amigas bonitas de Madison – a menos bonita das seis, se quiser ser cruel – ficou chateada com uma piada que Madison tinha feito, um momento em que a esquisitice dela tinha transbordado para além do confinamento do nosso quarto, e contou aos pais do dormitório que Madison tinha um papelote de cocaína na gaveta da escrivaninha. Um dos pais veio conferir, e lá estava. Iron Mountain era um lugar para pessoas ricas e dependia daquelas pessoas, portanto, Madison esperava, na cama comigo uma noite, enquanto conversávamos sobre o assunto, que a escola pegasse leve com ela. Mas eu não era rica e sabia que, às vezes, um lugar como a Iron Mountain precisava dar o exemplo através de uma pessoa rica para ganhar a confiança de um bando de outras pessoas ricas. Era quase fim do ano, poucas semanas até as provas finais, e Madison seus pais foram chamados, com um convite enviado em papel timbrado oficial, na diretoria da escola, não mais comandada por um cara britânico, mas por uma mulher sulista chamada sra. Lipton, com um corte de cabelo branco e um terninho marrom. A sra. Lipton chamava todo mundo de “filha”, mas nunca se casou.” (página 18)

Resumo da ópera: o pai de Madison paga para que a mãe de Lillian aceite que sua filha assuma a culpa, livrando a reputação da filha rica. Apesar disto, a amizade entre as duas continua, mesmo após Lillian ter sido expulsa da faculdade.

Mas, voltemos ao emprego oferecido a Lillian: cuidar de um casal de gêmeos, Roland e Bessie. Fácil, não? Resposta: não. E por quê? Só uma coisinha, um detalhe de nada: as duas crianças sofrem de autocombustão. Entendeu? Isso mesmo, elas pegam fogo; o incêndio começa de dentro para fora. Entretanto, elas não se queimam. As chamas que as envolvem queimam suas roupas, outras coisas ao redor delas.

Para algo tão estranho, não podia deixar de pesquisar para saber mais. Achei referências ao estranho assunto pela internet a fora. Transcrevo, a título de informação, um trecho de uma matéria postada na revista de divulgação científica, Galileu:

"O primeiro registro de um caso do tipo foi feito em 1641 pelo médico dinamarquês Thomas Bartholin. Na compilação de episódios médicos não convencionais Historiarum Anatomicarum Rariorum, Thomas escreve sobre um cavaleiro italiano chamado Polonus Vorstius que em 1470 estava tomando vinho quando começou a vomitar labaredas até ter seu corpo totalmente consumido pelo fogo.

“Totalmente” não é a palavra certa, na realidade. Apesar de cercada de mistérios, a combustão espontânea em humanos costuma seguir um padrão: enquanto o tronco e a cabeça ficam completamente desfigurados pelo fogo, os pés e as mãos em geral permanecem intactos. Essa peculiaridade pode ser uma pista importante para descobrir o que causa o fenômeno.” (revista Galileu, “A Ciência tenta explicar o bizarro fenômeno da combustão humana, de João Mello Bourroul, de 06/10/2015, atualizada em 07/11/2015)

A diferença, como vimos no livro, é que os gêmeos não têm o corpo queimado, quando entram em combustão. De início, a autocombustão é instável; as crianças, filhas do senador Jasper, se incendeiam por qualquer motivo.

Lillian, aos poucos, vai conseguindo a confiança dos dois. E descobre que se conseguir acalmá-los, eles não pegam fogo. Para executar seu trabalho de babá, ela vai viver com seus protegidos na edícula no mesmo terreno que a mansão onde vivem Madison, Jasper e o pequeno Timothy – filho do atual casamento do senador.

O livro é narrado em primeira pessoa, por Lillian. Um trecho bastante elucidativo para a linha interpretativa que passaremos a desenvolver aqui, vai transcrito abaixo, a respeito da narradora:

“Eu morava com a minha mãe e com um rodízio do elenco de seus namorados, meu pai ou estava morto, ou simplesmente tinha vazado. Minha mãe falava dele muito vagamente, não havia sequer uma foto. Parecia que talvez algum deus grego tivesse assumido a forma de um garanhão e a emprenhado, antes de retornar à sua casa no topo do Monte Olimpo. Era mais provável que fosse só um pervertido das casas chiques que a minha mãe limpava.” (página 10)

Mais à frente, a narradora torna a referir-se a si própria, fazendo um paralelo com aquelas estranhas crianças:

“Nós éramos um mundo à parte, mesmo que eu soubesse que era temporário. Em algum momento, teríamos que um jeito, achar uma forma de integrar as crianças ao mundo real. Imaginei um dia em que eles estariam sentados a uma grande mesa de jantar na mansão, comendo ovos beneditinos ou a porra que fosse, enquanto o pai lia o jornal e dizia a eles o resultado do jogo dos Braves no dia anterior.” (página 109)

Lillian, Roland e Bessie pertenciam, portanto, ao mesmo mundo “irreal”, deslocado. O trio era de seres enjeitados. É interessante anotar que fogo, frequentemente, é visto como elemento depurador. Apesar de pegarem fogo, no entanto, as crianças não queimam a si próprias. É um suplício na mesma linha simbólica daquele prometeu acorrentado que tem seu fígado devorado por uma águia durante o dia e, à noite, tem o órgão recomposto.

Nada para ver aqui é uma obra que flerta com o realismo mágico – movimento literário muito presente na literatura latino-americana (Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márques, é bem um exemplo). Algo de aspecto surreal, mas contado sem estranheza dentro da história, como se fosse fenômeno natural.

Outro aspecto que podemos extrair dos dois trechos citados acima (páginas 10 e 109) é como a negligência, a ausência ou rigidez dos pais pode afetar o desenvolvimento afetivo dos filhos. Tanto Jasper quanto Madison fazem questão de não ter contato com as crianças-problema. Igualmente, a ausência do pai de Lillian e a negligência da mãe dela fazem com que ela também se torne uma adulta deficiente em questões afetivas. Por isso, talvez, se deem tão bem.

Nada para ver aqui é um livro que agradou a muitos leitores, embora tenhamos ficado com a impressão de que desagradou ainda mais a uma turma maior. Estou entre estes últimos. Tive imensas dificuldades em prosseguir a leitura até o fim. Não gostei de como a narrativa foi conduzida, para mim ficou faltando examinar as questões postas na elaboração da obra com mais profundidade. A meu ver, Nada para ver aqui, ao se desenvolver muito perto de um realismo fantástico, perdeu muito de sua força.

Não se realiza bem como um autêntico exemplo do realismo mágico, pois a questão da combustão humana, apesar de rara, é documentada. Talvez o problema tenha sido fazermos uma pesquisa anterior, o que destruiu a “mágica” da combustão.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Resenha nº 197 - K. - Relato de Uma Busca, de B. Kucinski



 




Título: K.

Autor: B. Kucinski

Editora: Companhia das Letras/TAG

Edição: 4ª

Copyright: 2011

ISBN: 978-65-5921-218-7

Gênero literário: romance

Origem: Literatura brasileira

 

Bernardo Kucinski é cientista político, jornalista e escritor, nascido em São Paulo (1937). Tem formação, ainda, em Física, pela universidade em que leciona. É também professor da Universidade de São Paulo, atuando na cátedra Jornalismo Internacional. É filho de imigrantes poloneses, refugiados no Brasil.

Apenas ficando no campo da ficção, Bernardo publicou K – Relato de Uma Busca (2011), Você Vai Voltar Para Mim (2014), Alice Não Mais Que De Repente (2014), Pretérito Imperfeito (2017), este objeto da resenha nº 147 deste blog – , A Nova Ordem (2019), Júlia: Nos Campos Consagrados do Senhor (2020). O volume de contos Você Vai Voltar Para Mim integra o mais recente volume, A Cicatriz E Outras Histórias – uma coletânea dos contos de Kucinski, publicados em jornais.

Bernardo é ganhador de prêmios. Prêmio Jabuti, de 1997; finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e do Portugal Telecom, de 2012. Em 2018, obteve o Prêmio Vladmir Herzog de jornalismo.

Parte da família de Kucinski que ficou na Europa foi morta pelos horrores do Holocausto, na Segunda Guerra Mundial. Entretanto, o longo braço da tragédia veio alcançá-lo aqui mesmo, no Brasil.

Sua irmã, Ana Rosa Kucinski, professora de Química da USP e seu cunhado desapareceram em abril de 1974, durante a ditadura militar que assolou o Brasil. E é exatamente o desaparecimento da irmã que servirá de matéria narrativa deste romance incômodo que é K.

Bernardo Kucinski é considerado um dos mestres da chamada autoficção e da literatura brasileira contemporânea. Este termo, autoficção, merece algumas considerações, uma vez que vem sendo usado indistintamente, por estar na moda. Sinto-me na obrigação de explicar este rótulo, apesar de não ser objetivo deste blogue entrar em considerações teóricas.

Por autoficção entende-se obra de ficção que se vale dos dados da vida real do autor. Mais que isso, à voz do narrador funde-se a voz do autor. Os fatos, as emoções evidentemente, são aqueles do próprio escritor. Ele fará a seleção dos fatos, de acordo com o andamento pretendido para o romance.

Pode-se confundir autoficção com autobiografia. Entretanto, a autobiografia se pretende fiel à sequência dos fatos reais, quer-se documental, normalmente é escrita com a intenção de informar, de perpetuar a memória de determinada personalidade.

Já a autoficção destina-se a ser lida como um romance, como uma obra literária, na qual o autor exerce suas possibilidades estéticas; a estrutura aqui utilizada é a do romance, com seus conflitos, clímax e desenlaces. Um romance, portanto, não é simplesmente uma sequência de fatos, mas de fatos que servem à confecção de uma narrativa. A seleção deles só se faz por serem significativas para o andamento da estrutura da história.

Temos, então, Bernardo Kucinski como um autor de autoficção. Em K – Relato de Uma Busca há um narrador que se “cola” ao próprio autor. O personagem principal é um pai que busca, incessantemente, por sua filha desaparecida durante a ditadura militar. Envida todos os esforços para ter o direito de encontrar a filha ou, em último caso, poder reconhecer o cadáver dela.

“A tragédia já avançava inexorável quando, naquela manhã de domingo, K. sentiu pela primeira vez a angústia que logo o tomaria por completo. Há dez dias a filha não telefona. Depois, ele culparia a ausência dos ritos de família, ainda mais necessários em tempos difíceis, o telefonar uma vez por dia, o almoço aos domingos. A filha não afinava com sua segunda mulher.

E como não perceber o tumulto dos novos tempos, ele, escolado em política? Quem sabe teria sido diferente se, em vez dos amigos escritores do iídiche, essa língua morta que só poucos velhos ainda falam, prestasse mais atenção ao que acontecia no país naquele momento? Quem sabe? Que importa o iídiche? Nada. Uma língua-cadáver, isso sim, que eles pranteavam nessas reuniões semanais, em vez de cuidar dos vivos.” (páginas 19/20)

Um pai que busca o paradeiro da filha, mas um pai fortemente questionado pelo seu descuido com a família, pois dedicava sua atenção ao culto “do iídiche, essa língua morta que só poucos velhos ainda falam”.

Só agora ele se dá conta de algo muito grave estar acontecendo à filha:

“K rememorou cenas recentes, o nervosismo da filha, suas evasivas, isso de chegar correndo e sair correndo, do endereço só em último caso e com a recomendação de não passá-lo a ninguém.

Atarantado, deu-se conta da enormidade do autoengano em que vivera, ludibriado pela própria filha, talvez metida em aventuras perigosíssimas sem ele desconfiar, distraído que fora pela devoção ao iídiche, pelo encanto fácil das sessões literárias.” (página 23)

 O romance se inicia por uma situação, no mínimo, estapafúrdia:

“De tempos em tempos, o correio entrega no meu antigo endereço uma carta de banco a ela destinada; sempre a oferta sedutora de um produto ou serviço financeiro. A mais recente apresentava um novo cartão de crédito, válido em todos os continentes, ideal para reservar hotéis e passagens aéreas; tudo o que ela hoje mereceria, se sua vida não tivesse sido interrompida. Basta assinar e devolver no envelope já selado, dizia essa última carta.” (página 15)

Estapafúrdia, mas comum. Fico pensando como tal situação se repete, por este mundo afora, no qual um sistema imbecil e insensível dispara mensagens de felicitações de aniversário, desejo de feliz natal a pessoas que já morreram.

Em sua busca incessante, K. descobre que a filha era casada. A descoberta o impacta mais ainda, pois

“A filha confiara na outra família, não nele. Para a outra família o casamento não fora secreto, apenas discreto. Havia nisso um significado maior, terá ela sinalizado uma troca de famílias? Esse pensamento o machucava. Teria sido uma resposta ao seu segundo casamento com aquela alemã que a filha detestava? Ou à sua devoção tão intensa à língua iídiche? Uma língua que nem ela nem os irmãos sabiam falar, aliás, por culpa dele, que não se preocupou em os ensinar.” (página 51)

Tentativas aqui, tentativas ali e K. não sabe mais sobre sua filha do que incialmente sabia. Aciona amigos que, por sua vez, acionam outros contatos a fim de conseguir elucidar o que acontecera à filha. Comparece à igreja católica do bairro onde mora, na qual o sacerdote rebelde tenta minorar o sofrimento de várias famílias. Ele usa seus conhecimentos para obter informações sobre os desparecidos, mas muito pouco obtém de palpável. A máquina montada para fazer desaparecer, calar vozes dissidentes é muito bem azeitada.

Em K – Relato de Uma Busca não há risco de spoilers. A ausência, a inevitabilidade de se encontrar sequer os corpos daqueles sequestrados pelo regime, entre eles, o da irmã do narrador, é anunciado desde o começo.

Nas leituras de apoio que acompanham o livro é dito que

“De tudo, a única coisa que ele deixa transparecer é a referência a Kafka, padroeiro e assombração de quase todo escritor judeu. A primeira referência está clara no nome de seu personagem e no eco entre a trama de K. e a de O Processo. Em ambas, protagonista navega por uma burocracia torturante na tentativa de esclarecer um processo judiciário opaco” (página 9 da revista da TAG, Isadora Sinay)

Concordo. Natural que seja assim. Há uma relação biunívoca entre o nonsense kafkiano e o nonsense vivido pelos judeus no Holocausto. E o nonsense vivido pela família Kucinski aqui, no Brasil.

Não há cadáver, não há o fechamento natural de uma morte; um desparecimento é como uma suspensão, mas, como em música, uma suspensão cria uma tensão no ouvinte, a expectativa de outra nota que virá. No caso do desaparecimento, a nota restauradora não vem.

Ao leitor desconhecedor dos desdobramentos do Holocausto, talvez estranhe muito tamanha dedicação de K. ao culto do iídiche. Ainda utilizando os esclarecimentos de Isadora Sinay, à página 10 da revista de apoio da TAG:

“De tudo que se perdeu no Holocausto, nada é mais representativo do que o iídiche, a língua que desapareceu com os judeus da Europa. De língua materna de milhões de pessoas, o iídiche é hoje uma língua de avós, de palavras pronunciadas com carinho ou uma maldade íntima. Uma língua que, em seu desaparecimento, foi deixando sem lar aqueles como K., exilados de uma Europa impossível e que havia encontrado na literatura da língua uma extensão da comunidade judaica que tinham sido forçados a abandonar.”

Ou seja, mata-se uma língua materna, mata-se uma cultura, neste esforço de apagamento de seres.

Do ponto de vista estrutural, o romance K., de B. Kucinski pode ser enquadrado como um romance fix up. Este termo inglês, significando “gambiarra”, “arranjo”, “conserto”, caracteriza aqueles romances que são compostos por contos cujos personagens recorrentes, ou às vezes, a ambientação em comum formam um contínuo. Um bom exemplo disto é Eu, Robô, de Isaac Asimov. O termo é mais comumente aplicado aos livros de ficção científica, mas não creio exceder-me nesta qualificação. O livro se compõe de contos, como o atesta o próprio autor, ao comentar como elaborou a obra. Um tênue fio conduz o enredo até o fim, o do pai procurando a filha.

Este é um livro que mexe com minhas memórias e, portanto, me afeta emocionalmente. Eu era estudante universitário na parte final da ditadura militar. Embora não tenha sido afetado diretamente pelas ações dela, tive colegas que simplesmente desaparecerem, como Ana Rosa Kucinski. E corria, entre nós, os alunos, avisos para tomarmos cuidado com fulano, gente tão fina, pois eram dedos-duros da famigerada ditadura.

E, por isso, me irrito quando se esforçam para me convencer de que não houve ditadura, alegando “você não foi molestado”. Por este nefando raciocínio, o que não acontece a mim, não me importa. Poderia aliviar, “mas esta é outra história”. Não, não é verdade: é a mesma história.

K – Relato de Uma Busca: um livraço, uma transfiguração da dor em literatura. A generosidade de uma vivência individual em partilha. Obrigado, Bernardo Kucinski.


terça-feira, 6 de setembro de 2022

Resenha nº 196 - Sula, de Toni Morrison

 

 


Título original: Sula

Autora: Toni Morrison

Tradutor: Bárbara Landsberg

Editora: Companhia das Letras/TAG

Edição: 1ª

Copyright: 1973; 2004

ISBN: 978-85-359-3428-1

Origem: literatura americana

Gênero literário: romance

 

 

Chloe Ardelia Wofford, ou, como é mais conhecida, Toni Morrison, veio ao mundo na cidade de Lorain (Ohio), em 18/02/1931, e faleceu em Nova York, em 05/08/2019. Escritora, editora e professora universitária, estreou na literatura com O Olho Mais Azul (1970) – resenha de número 149, neste blogue.

Mas a obra desta escritora que chamou atenção sobre ela foi Song Of Solomon (1977). Sula, aqui resenhada, é seu segundo livro, publicado em 1974. Autora também de uma trilogia, na qual continua o relato das experiências vivenciais de mulheres afro-americanas. É composta por Amada (1987), Jazz (1992) e Paraíso (1997).

Nossa escritora vem de uma família profundamente afetada pela Grande Depressão, termo pelo qual ficou conhecido o Crash da Bolsa de Nova York, em 1929, com graves repercussões pelo mundo.

Toni era uma leitora ávida; alguns de seus autores prediletos eram Jane Austen e o russo Liev Tólstoi. Sua dissertação de mestrado, pela universidade de Cornell, foi sobre o suicídio nas obras de William Faulkner e Virginia Woolf.

Por Amada Toni Morrison levou o prestigiado prêmio Pulitzer. Este livro foi considerado pelo jornal The New York Times a melhor obra americana em 25 anos. A escritora, obteve, entretanto, o maior reconhecimento em 1993, com o Nobel de Literatura. A primeira escritora negra a ganhar tal distinção.

Ainda, uma saborosa curiosidade: de acordo com uma entrevista para o famoso jornal The Guardian, Morrison nos relata a origem do seu “apelido literário”. É que, segundo ela, em 1912, converteu-se ao catolicismo, tendo recebido o nome de batismo de Anthony, de onde veio Toni. O sobrenome Morrison lhe veio do casamento com o arquiteto jamaicano Harold Morrison, também professor.

Apesar de, em seus romances, abordar sempre mulheres negras, fortes e determinadas em suas batalhas de empoderamento, a autora não se considera uma feminista. Ela afirmou, certa feita, “Não concordo com o patriarcado, e não acho que ele deve ser substituído pelo matriarcado. É uma questão de acesso igualitário, de abrir portas para todos os tipos de coisas”.

Neste livro Toni Morrison nos conta a história de Nel Wright e Sula Peace, uma amizade que atravessa o tempo, desde quando eram crianças e moravam numa cidade pequena, localizada em Ohio. O nome era Medallion; mais precisamente, as duas residiam na parte mais pobre de Medallion, conhecida por Fundão:

“Uma piada. Uma piada de crioulo. Foi assim que começou. Não a cidade, é claro, mas aquela parte da cidade em que os negros moravam, a parte que chamavam de Fundão apesar de ficar no alto das colinas. Só uma piada de crioulo. Do tipo que os brancos contam quando o engenho é encerrado e estão buscando um pouco de consolo em algum lugar. Do tipo que as próprias pessoas de cor contam quando a chuva não vem, ou vem por semanas a fio, e estão buscando um pouco de consolo em algum lugar.” (páginas 26/27)

A vida da comunidade negra não era fácil. A pobreza, o preconceito dos brancos, a falta de oportunidades para ascenção social eram terríveis. Com alta frequência, o que restava às mulheres negras era a prostituição, como meio de sobrevivência. Um dos prostíbulos famosos era o Sundown House, onde nascera Helene Wright, mãe de Nel:

“De modo geral, sua vida era satisfatória, adorava sua casa e gostava de manipular a filha e o marido. Às vezes suspirava logo antes de adormecer, pensando que de fato tinha ido para bem longe de Sundown House.” (página 40)

Enquanto Nel era mais comportada, mais sonhadora, Sula era mais atrevida e “bagunceira”. Entretanto, as duas se combinavam, e Nel sentia verdadeiro fascínio por sua amiga, apesar de não poder ser do mesmo jeito:

“Mas isso foi antes de conhecer Sula, a menina que via fazia cinco anos na Garfield Primary, mas com quem nunca tinha brincado, nunca tinha conhecido, pois sua mãe dizia que a mãe de Sula era retinta. A viagem, talvez, ou seu recém-descoberto senso de individualidade lhe deu forças para cultivar uma amiga apesar da mãe.” (página 50)

Portanto, o racismo era algo endêmico naquela sociedade do Fundão. Não só brancos discriminavam negros, os negros discriminavam os brancos, mas os próprios negros discriminavam os “retintos” – de pele mais negra do que o “normal”.

Onde a luta feroz pela sobrevivência é a regra social, pouco espaço existe para delicadezas e famílias felizes. As descobertas, neste meio, não se fazem por deduções filosóficas ou aplicações religiosas, apenas pelas cruas experiências da vida, como no trecho a seguir:

“Já que ambas tinham descoberto anos antes que não eram nem brancas nem do sexo masculino, e que toda liberdade e triunfo lhes eram proibidos, elas passaram a criar outra coisa para ser. O encontro foi auspicioso, pois possibilitou que uma visasse a outra para seguir crescendo. Filhas de mães distantes e pais incompreensíveis (o de Sula, porque estava morto; o de Nel porque não estava).” (página 72)

No capítulo inicial da parte dois deste livro há uma cena muito interessante. Ela acontece com a chegada de Sula a Medallion, após algum tempo fora:

“Acompanhada de uma praga de tordos, Sula voltou a Medallion. Os passarinhos trêmulos com peito de inhame estavam por todos os lados, estimulando as crianças pequenininhas a deixar de lado a acolhida habitual e partir para o apedrejamento cruel. Ninguém sabia por que ou de onde vinham. O que sabiam era que não se ia a lugar nenhum sem pisar na bosta perolada deles, e era difícil pendurar roupas, arrancar ervas daninhas ou simplesmente ficar sentado no alpendre havendo tordos voando e morrendo ao redor.” (página 109)

Esta descrição me fez lembrar do filme Birds (Pássaros), de Alfred Hitchcock. Num completo nonsense, numa cidadezinha da Inglaterra, pássaros, de repente, começam a se juntar. Não há explicações. Hitchcock eleva o suspense; de um minuto para o outro, os animais se tornam camicases, se atirando sobre as pessoas e prédios.

Aqui, é um pouco diferente. Os tordos são pássaros europeus, originalmente tendo o campo como habitat. Com a destruição do seu domínio, aprenderam a viver em parques e jardins. Pois os tordos antecipam a chegada de Sula, como aves de mau agouro, aparecendo aos montes, morrendo pelas mãos das crianças pequenininhas.

O mal seria, então, algo imanente ao ser humano? Sula é uma representante do mal?

Sula se transforma numa mulher adulta que se recusa a ser domada. E, como o freio mais ostensivo sobre as mulheres se dá exatamente no sexo – aos homens, tudo é permitido, às mulheres, nada – é também (ou principalmente) nesta área que Sula afronta a todos:

“Era uma pária, então, e sabia disso. Sabia que a desprezavam e acreditava que eles enquadravam o ódio como asco pelo jeito fácil com que se deitava com os homens. O que era verdade. Ela ia para a cama com homens na maior frequência possível. Era o único lugar onde achava o que procurava: sofrimento e capacidade de sentir profunda tristeza. Nem sempre teve consciência de que era a tristeza o que almejava. Fazer amor lhe parecia, a princípio, a criação de um tipo especial de alegria. Julgava gostar da fuliginosidade do sexo e de sua comédia; ria bastante durante os começos ruidosos e rejeitava os amantes que consideravam sexo saudável ou lindo. A estética sexual a entediava.” (página 140/141)  

Parece-me, entretanto, que esta liberdade a que se atirava Sula era enganosa. Muitas vezes nós, seres humanos, sociais, nos sentimos sufocados pelas forças de contenção, de normatização advindas da sociedade. E, muitas vezes, nos lançamos a confrontá-las, a transgredi-las como ato externo, sem analisarmos se tais confrontos realmente constroem algo em nossa alma.

Tal se dá com a personagem Sula, pois

“Quando o parceiro se desprendia, ela erguia os olhos com espanto, tentando lembrar do nome dele; e ele olhava para ela de cima, sorrindo com a compreensão terna do estado de gratidão lacrimosa ao qual acreditava tê-la levado. Esperava com impaciência que ele virasse as costas e se acomodasse em uma espuma molhada de satisfação e leve asco, deixando-a na privacidade pós-coito em que ela se encontrava, se acolhia e se juntava a si em uma harmonia inigualável.” (página 142)

Amor ou posse? Fragmentar-se, dar-se como forma de reunir os próprios fragmentos e, na ilusão da doação, a posse? A Literatura é absolutamente admirável porque nos leva a mundos interpretativos equidistantes e possíveis. Já se disse, Toni Morrison vai, muitas vezes, por construções complexas e psicanalíticas de enredo e personagens. Tanto Sula quanto Nel poderiam estar num divã freudiano.

As duas haviam contratado um silêncio sobre um fato terrível acontecido no passado. A morte, a destruição, o desaparecimento, a mudança são algumas das angústias deste romance excelente:

“A Sula estava enganada. O inferno não é as coisas durarem para sempre. O inferno é a mudança. Não só os homens iam embora e filhos cresciam e morriam, mas nem a tristeza era duradoura. Um dia não teria nem isso. Esse mesmo sofrimento que a fazia se contorcer era uma curva no chão e a esfolava passaria. Perderia também isso.” (página 127)

Não sei dizer se isto é consciente em Toni Morrison, mas sua expressão artística filia-se àquela teoria de que a Literatura deve nos incomodar, tirar nosso chão, sacudir-nos, para melhor nos analisarmos.

Termino de ler Sula com inquietação. Não porque seja daqueles leitores que, à vista do pessimismo de um autor, o repudiam. Aprecio alguns autores que são bastante pessimistas; a outros, ditos otimistas, também aprecio. Sula não é uma leitura simples e não se pode ficar na superfície deste texto, sob pena de se perder o essencial.

Que tal deixar Toni Morrison finalizar esta resenha, com um dos trechos mais impactantes, dramático-filosófico, de que mais gostei? O narrador vê aqueles personagens do Fundão da seguinte maneira:

“Não acreditavam que a morte fosse acidental – a vida podia até ser, mas a morte era proposital. Não acreditavam que a natureza pudesse ser torta – apenas inconveniente. Pragas e secas eram tão “naturais” quanto a primavera. Se o leite podia coalhar, Deus sabia que tordos podiam cair. O sentido do mal era sobreviver a ele e decidiram (sem nunca saber que agiam deliberadamente) sobreviver a inundações, aos brancos, à tuberculose, à fome, à ignorância. Conheciam bem a raiva, mas não o desespero, e não apedrejavam pecadores pela mesma razão que não cometiam suicídio – estava aquém deles.” (página 110)

Sula, de Toni Morrison. Não, redefino o que afirmei. Não é apenas um excelente romance. É um romance soberbo. Provavelmente, não para todos os leitores. Eu assumo, tenho de relê-lo, várias vezes.