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domingo, 6 de novembro de 2022

Resenha nº 199 - A Noite, de Elie Wiesel

 



Título original: La Nuit

Autor: Elie Wiesel

Tradutora: Dorothée de Bruchard

Editora : Sextante

Copyright : 2021

ISBN : 978-65-5564-207-0

Gênero Literário : Biografia

Origem : Romênia

 

Elie Wiesel é autor de mais de quarenta títulos, entre ficção e não ficção. Ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1986, pelo conjunto da obra. Trabalhou como presidente do Conselho Memorial Unido do Holocausto, tendo sido agraciado com diversas honrarias, entre as quais, a Medalha Presidencial de Liberdade dos EUA, título de Cavaleiro da Ordem do Império Britânico e a brasileira Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco.

Wiesel nasceu em 1928, em Sighet, na Transilvânia. Após a segunda Guerra Mundial estudou na Sorbonne, na França. Tornou-se repórter e correspondente. Mudou-se para Nova York em 1955 e se tornou cidadão americano. Faleceu em julho de 2016, aos 87 anos de idade.

A Noite é um livro de 156 páginas. Entretanto, não se deixe enganar o leitor: trata-se de uma leitura densa e marcante. Como já se deduz, Elie conta a experiência de sua estada no campo de concentração Auschwitz-Birkenau. Talvez a característica principal deste livro seja o contraponto entre o estilo do autor e os horrores relatados.

Explico-me melhor. Elie Wiesel, sendo autor de mais de quarenta obras, tem um estilo bastante depurado. Há um cuidado com a escolha das palavras, com a precisão dos termos. Não há palavras demais nem derramado é o relato. Tais constatações conferem à biografia, aqui resenhada, um ar de dignidade, de contida lucidez.

“Chamavam-no Moshe, o Bedel, como se nunca na vida tivesse tido um sobrenome. Era o ‘faz-tudo’ de uma sinagoga chassídica. Os judeus de Sighet – a cidadezinha da Transilvânia onde passei a infância – gostavam dele. Era muito pobre e vivia na miséria. O pessoal da minha cidade, embora ajudasse os pobres, em geral não era de gostar muito deles. Moshe, o Bedel, era uma exceção. Não incomodava ninguém. Sua presença não trazia aborrecimentos. Tornara-se mestre na arte de passar despercebido, de se fazer invisível.” (página 25)

Relata-nos Elie que muito cedo interessou-se pelos estudos da Cabala. Para nós, não judeus, é útil explicar, a Cabala é um método esotérico que abarca um conjunto de ensinamentos relacionados a Deus, o universo, o homem, a criação do mundo, a vida e a morte. Fundamenta-se na revelação de Deus a Adão e a Moisés.

Um estudo, portanto, complexo demais para ser o objeto de estudo de um jovem. Por isto, o pai de Elie é contrário ao desejo dele. Entretanto, apesar de ter apenas 13 anos de idade, o menino não desiste; esta obsessão o leva a ter Moshe como seu iniciador nos textos da Cabala:

“— Por que você chora quando reza? – ele me perguntou como se fôssemos próximos.

— Não sei – respondi, bastante perturbado.

Essa pergunta nunca tinha me ocorrido. Eu chorava porque... porque alguma coisa em mim sentia necessidade de chorar. Era só o que eu sabia.

— Por que você reza? – perguntou ele, passado um instante. Por que eu rezava? Que pergunta estranha. Por que eu vivia? Por que respirava?

— Não sei – respondi, sem jeito e ainda mais perturbado. – Não sei.” (páginas 21/22)

As estações de rádio estão cheias de notícias sobre o exército alemão que, ainda distante, avança sobre outros países. Na Transilvânia, a preocupação constante está no ar, bem como a indecisão sobre o que fazer. É que não estão claras ainda as intenções de Hitler:

“Então ele iria aniquilar um povo inteiro? Exterminar uma população espalhada por tantos países? Milhões de pessoas! Com que meios? E em pleno século XX!” (página 31)

Os horrores vêm lançando, sorrateiramente, sua sombra sobre a Europa. Ali, em Sighet, onde vivem muitos judeus romenos, a chegada dos alemães, apoiados pelos húngaros, não parece tão drástica assim:

“A vida, pouco a pouco, foi se ajustando. Os arames farpados que nos cercavam qual muralha não nos inspiravam maiores temores. Até nos sentíamos bastante bem: estávamos somente entre nós. Uma pequena república judia... As autoridades instituíram um Conselho Judaico, uma polícia judaica, uma agência de assistência social, um comitê do trabalho, um departamento de higiene – todo um aparato governamental.” (página 35)

O que é bom dura pouco, diz o adágio popular. Logo, a situação em Sighet piora. Os judeus seguem o mesmo destino de outros judeus, em outras partes do continente europeu. Eis a descrição de Elie Wiesel:

“Então puseram-se em marcha, sem olhar sequer para as ruas abandonadas, para as casas vazias e apagadas, para os jardins, para as lápides... Nas costas de todos, uma mochila. Nos olhos de todos, agora, um sofrimento, banhado em lágrimas. Lenta, pesadamente, a procissão avançou para os portões do gueto.” (página 41)

Vão passando filas de judeus, sem saberem qual o seu destino, e Sighet vai ficando vazia. Em breve, também chega a vez de Elie, seu pai, sua mãe e sua irmã. São colocados em vagões de carga, oitenta pessoas por vagão. A fome, o desespero, o medo fazem o seu trabalho:

“Liberados de qualquer censura social, os mais jovens se entregavam livremente aos seus instintos e, amparados pela escuridão da noite, se acariciavam no meio de todos, sem se importar com ninguém, sozinhos no mundo. Os outros fingiam não ver.” (página 49)

A viagem de trem termina:

“Fitávamos as chamas dentro da noite. Um cheiro abominável pairava no ar. Repentinamente, as portas se abriram. Figuras curiosas, todas de casaco listrado e calça preta, pularam para dentro do vagão. Levavam nas mãos uma lanterna e um porrete. Saíram batendo a esmo, antes de bradar:

— Desçam todos! Deixem tudo no vagão! Depressa!

Saltamos. Lancei um último olhar para a Sra. Schächter: seu garotinho segurava sua mão.

À nossa frente, as chamas. No ar, o cheiro de carne queimada. Devia ser meia-noite. Tínhamos chegado. A Birkenau.” (páginas 54/55)

Os judeus são separados em dois grupos. Um, de pessoas saudáveis, destinadas a trabalhar como forçados no campo de concentração. O outro, de crianças, homens e mulheres doentes ou fracos demais, que não serviam para nada e por isso, seriam exterminados.

O que seria melhor? Ser exterminado de uma vez ou desumanizar-se pouco a pouco, sem a garantia de que o sobrevivente não seria o próximo a ir para os fornos crematórios?

Sim, porque quando reduzimos a vida de um ser humano às condições sub-humanas, é o animal que passa a agir, pois animais nós somos. Quer-se viver de qualquer forma, de qualquer jeito:

“E de repente, como que despertando de um sono letárgico, lascou em meu pai uma bofetada tamanha que ele foi ao chão e voltou de quatro para o seu lugar.

Fiquei petrificado. O que tinha acontecido comigo? Acabavam de bater no meu pai na minha rente e eu não tinha sequer pestanejado. Tinha olhado e ficado quieto. Ainda ontem, teria cravado as unhas naquele criminoso. Teria mudado tanto assim? Tão rápido? O remorso começou a me corroer. Pensei apenas uma coisa: “nunca vou perdoá-los por isso”. (página 69)

Perde-se a crença em Deus, nos homens, em tudo:

“Como poderia eu Lhe dizer: “Bendito sejas tu, ó Eterno, Senhor do Universo, que nos elegeu entre os povos para vermos nosso pai, nossa mãe, nossos irmãos terminarem no crematório? Louvado seja o Teu Santo Nome, Tu que nos escolheste para sermos imolados em teu altar?” (página 100)

Elie Wiesel, entretanto, sobreviveu para nos contar sobre o Holocausto. Como tantos outros judeus de várias nações. Quando terminamos de ler este A Noite, ficam-nos intensas reflexões. O que, afinal de contas, teria gerado tamanho ódio aos judeus? O que eles fizeram de tão terrível para merecerem tal perseguição?

Somos seres cheios de ódios duradouros. Basta que alguém pense de maneira diferente de nós, e nos confronte, para todos – sem exceção – termos ganas de enforcá-lo. Ninguém está livre de preconceitos; seres de luz e de sombra, nós seguimos nossas vidas.

É preciso que relatos assim nos façam refletir. E, de preferência, que nos causem fortes incômodos. Não, não desejo ser assim. A força da Arte – em especial a da Literatura – pode nos ajudar: o autor nos ganha por meio da arte de construir histórias, nos faz adotar determinado personagem. Os atos, os pensamentos destes personagens então nos fazem dissipar a camada de verniz tênue e nos expõem nossas misérias, porque as misérias deles são as nossas.

Não posso deixar de mencionar O sentido da vida, de Viktor Frankl, já resenhado neste blogue. Como ele pôde extrair uma terapia da sua vivência terrível nos campos de concentração? Como estes humanos, submetidos às piores experiências não enlouqueceram? De Onde extraíram tanta força? É para tentar entender isto que desejo, ainda, ler a trilogia do escritor italiano, Primo Levi: É isto um homem?, Os afogados e os sobreviventes e Trégua.

A Noite, de Elie Wiesel. A ele voltarei, várias vezes. A outra linha de força do seu relato está na sinceridade com que esta biografia é montada. Sendo contada por ele mesmo, não escondendo seus piores pensamentos e atitudes, nos impacta porque, reconhecemos, qualquer um de nós, submetido a tais ocorrências, agiríamos e pensaríamos como ele.


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