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terça-feira, 29 de novembro de 2022

Resenha nº 200 - O Sentido de Um Fim, de Julian Barnes

 


Título original: The Sense of An Ending          

Autor: Julian Barnes

Tradutora: Léa Viveiros de Castro

Editora: Rocco/TAG Livros

Copyright: 2011

ISBN: 978-85-325-3139-1

Origem: literatura inglesa

Gênero: Romance

 

Julian Patrick Barnes nasceu em Leicester, Inglaterra (19/01/1946). O escritor venceu o prêmio Man Booker, pelo seu presente livro, The Sense of An Ending (2011). Outros três livros anteriores foram finalistas deste mesmo prêmio: Flaubert’s Parrot (1984), England, England (1998) e Arthur & George (2005). Barnes publicou, ainda, sob o pseudônimo Dan Kavanagh, ficção criminal; além disso, é autor de ensaios e contos.

A obra considerada sua magnun opera (obra máxima) é O Papagaio de Flaubert. Nele, o médico e viúvo Geoffrey Braithwhite viaja até Rouen, na França. Encontra um papagaio empalhado que teria pertencido ao famoso escritor francês, Gustave Flaubert, daí o título.

Este O Sentido de Um Fim envolve três estudantes: Tony Webster, que é também o narrador; Alex e Colin. A este grupo preexistente na escola, junta-se o novato Adrian Finn. Formam eles um conjunto muito interessante:

“Outro detalhe de que eu me lembro: nós três, como símbolo de nossa união, costumávamos usar nossos relógios com o mostrador na face interna do pulso. Era uma afetação, é claro, mas talvez algo mais. Isso fazia o tempo parecer uma coisa pessoal, até mesmo secreta. Nós esperávamos que Adrian notasse o gesto, e o imitasse, mas ele não o fez.” (página 16)

O narrador Tony Webster nos dá sua impressão sobre o novo amigo:

“Essa era uma das diferenças entre nós três e o nosso novo amigo. Nós éramos essencialmente debochados, exceto quando éramos sérios. Ele era essencialmente sério, exceto quando era debochado. Nós levamos algum tempo para entender isso.” (página 17)

O tempo passa, entretanto, e chega a hora de se despedirem e ingressarem nos cursos superiores de suas escolhas. Como diz Webster, “Adrian, o que não foi surpresa para ninguém, ganhou uma bolsa de estudos para Cambridge”. Mantêm contato através de cartas:

“Os três originais escreviam com menos frequência e menos entusiasmo um para o outro do que para Adrian. Nós queríamos sua atenção, sua aprovação; nós o cortejávamos, e contávamos primeiro a ele nossas melhores histórias; cada um de nós achava que era – e merecia ser – mais próximo dele.” (página 31)

A época dos namoros mais sérios e compromissados chega, e naturalmente, entra mais uma personagem na história:

“Minha namorada se chamava Veronica Mary Elizabeth Ford, informação (refiro-me aos seus nomes do meio) que eu levei dois meses para extrair. Ela estava estudando espanhol gostava de poesia e o pai era funcionário público. Tinha cerca de um metro e cinquenta e cinco, batatas da perna musculosas, cabelos castanhos até os ombros, olhos azuis-acinzentados por trás de óculos de armação azul e um sorriso rápido, mas retraído. Eu a achava bonita. Bem, provavelmente eu teria achado bonita qualquer garota que não me rejeitasse.” (página 32)

Adrian Finn, entretanto, comete suicídio, aos vinte e dois anos. Este não é um spoiler, pois é informação que faz parte do texto da quarta capa do livro. Ele recebe uma pequena herança e os fragmentos de um misterioso diário de Finn. A partir destes fragmentos é que Webster faz suas incursões de memória, fazendo uma espécie de reconstrução do acontecido no passado e qual seria, afinal de contas, seu papel junto ao amigo agora ausente.

Desta confrontação de dados – os de sua própria percepção – e os constantes daquele diário surge uma nova interpretação dos fatos. Adrian Finn sempre fora visto, pelo grupo original, como o mais brilhante dos quatro. Esta obra se configura, portanto, como um livro cujo texto se aproxima muito das narrativas memorialísticas como, por exemplo, Baú de Ossos, do mineiro Pedro Nava.

Conforme se depreende desde o título, em O Sentido de Um Fim a passagem do tempo é importante. O texto tem várias belas reflexões sobre o decorrer dele, o significado das coisas acontecidas:

“Como já mencionei, eu tenho um certo instinto de preservação. Eu consegui tirar Verônica da minha lembrança, da minha história. Então, quando o tempo me jogou depressa demais na meia idade e eu comecei a olhar para trás, vendo como minha vida tinha transcorrido e avaliando os caminhos não percorridos, aquelas suposições tranquilas e debilitantes, eu nunca me vi imaginando – nem mesmo para pior, quanto mais para melhor – como teriam sido as coisas com Verônica.” (página 81)

Ou este outro trecho:

“Na juventude, conseguimos nos lembrar de toda a nossa curta vida. Mais tarde, a memória vira uma coisa feita de retalhos e remendos. É um pouco como a caixa preta que os aviões carregam para registrar o que acontece num desastre. Se nada der errado, a fita se apaga sozinha. Então, se você se arrebenta, o motivo se torna óbvio; se não se arrebenta, então o registro da sua viagem é muito menos claro.” (página 125)

O imbricamento entre tempo e memória se torna crítico com a chegada da velhice:

“Quando você começa e esquecer as coisas – não estou falando de Alzheimer, só da consequência previsível do envelhecimento – há maneiras diferentes de reagir. Você pode parar tudo e ficar tentando forçar sua memória a fornecer o nome daquele conhecido, flor, estação de trem, astronauta... Ou você admite o fracasso e toma medidas práticas como consultar uma enciclopédia e a internet. Ou você pode simplesmente deixar para lá – esquecer de lembrar – e então às vezes você percebe que o fato esquecido volta à superfície uma hora ou um dia depois, normalmente durante aquelas longas noites em claro que a idade impõe. Bem, nós todos aprendemos isso, aqueles de nós que esquecem as coisas.” (página 133)

Estruturalmente, o livro é divido em duas partes. Na primeira, seguimos Webster em seus relatos meio aleatórios, pouco profundos. Todo o grupo vive as ansiedades próprias da juventude ainda sem definições. Seus anseios referem-se mais a sexo, tornarem-se adultos. Aqui, se inicia o despontar das primeiras relações amorosas, permeadas de inexperiência e os traumas advindos delas. Na construção do adulto, entretanto, escolhas e estragos vão sendo feitos à medida que o tempo passa.

Já na segunda, o narrador é um homem maduro, divorciado. O diário de Adrian Finn obriga o narrador a rever fatos e seus significados; ele é obrigado a reavaliar seus atos e rever seu passado. Então, os tais relatos aleatórios, abordados com um clima de imparcialidade vão, aos poucos, levando a questionamentos, descobertas.

Este tipo de narrador – dito não confiável – é nosso velho conhecido. Talvez o narrador icônico deste tipo, na literatura brasileira, seja o Bentinho, de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Entretanto, aqui neste O sentido de um fim, tal narrador não confiável tem uma característica diferente: ele se reconhece como tal.

Reflete o narrador Tony Webster sobre si mesmo, tendo como referência o diário de Adrian Finn:

“Então, por exemplo, se Tony...” Estas palavras tinham um sentido local, textual, específico de quarenta anos atrás; e em algum momento eu poderia descobrir que elas continham ou conduziam a uma crítica por parte do meu velho clarividente e autovidente amigo. Mas por ora eu as ouvi como uma referência mais ampla – ao conjunto da minha vida. “Então, por exemplo, se Tony...” E neste registro tivesse enxergado mais claramente, agido com mais decisão, se apegado a valores morais mais verdadeiros, aceitado com menos facilidade uma passividade que ele chamou primeiro de felicidade e depois de contentamento. Se Tony não tivesse sido medroso, não tivesse dependido da aprovação alheia para aprovar a si mesmo... e assim por diante, através de uma sucessão de hipóteses conduzindo a uma hipótese final: então, por exemplo, se Tony não fosse Tony.” (página 107)

Romance típico do tempo em que vivemos, O Sentido de um fim escancara nossa confusão diante do mundo antigo, concreto, em turbulência, cujos valores pretensamente imutáveis colidem a todo momento com o mundo atual e líquido, como queria Zigmunt Bauman, onde tudo muda o tempo todo. Como o narrador de Julian Barnes, somos obrigados a rever valores do passado, adaptá-los, recusá-los. Como este narrador, estamos perdidos; muito do que aprendemos, configura-se hoje como verdadeiras armadilhas:

“Quando eu estava na escola, nos diziam que enquanto estivéssemos de uniforme tínhamos que nos comportar de um modo que refletisse bem a instituição. Então não era permitido comer ou beber na rua; e se alguém fosse apanhado fumando levaria uma surra. E também não era permitido confraternizar com o sexo oposto: a escola das meninas que ficava ao lado e se ligava à nossa deixava as meninas sair quinze minutos antes dos meninos, dando tempo a elas de se afastar bastante de seus pares masculinos, predatórios e fálicos. Eu fiquei ali sentado me lembrando de tudo isso, registrando as diferenças, sem chegar a nenhuma conclusão. Nem aplaudi nem censurei. Fiquei indiferente; eu tinha suspendido o meu direito a ideias e julgamentos.” (página 157)

E, precisamente por me reconhecer como um narrador não cem por cento confiável, que dependo de minhas reavaliações do passado que, sob a ótica de hoje precisam de ressignificação, eu tenho de ler outra vez este livro. E, precisamente por este livro ter me incomodado tanto (é a arte que imita a vida, mesmo?), que retornarei a ele.

“Você se aproxima do final da vida – não, não da vida em si, mas de outra coisa: de qualquer possibilidade de mudança nessa vida. Você tem permissão para desfrutar de uma longa pausa, tempo suficiente para perguntar: o que mais eu fiz de errado? Eu pensei num bando de garotos em Trafalgar Square. Pensei numa jovem dançando pela primeira vez na vida. Pensei no que não podia saber ou compreender agora, em tudo que jamais poderia ser conhecido ou compreendido.” (página 174)

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