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sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Resenha nº 198 - Nada para ver aqui, de Kevin Wilson

 

 




Título original: Nothing to see here

Autor: Kevin Wilson

Tradutora: Natália Borges Polesso

Copyright: 2021

Editora: Harper Collins/TAG

ISBN: 978-65-5511-229-0

Origem: Literatura americana

Gênero Literário: Romance

 

Kevin Wilson é um escritor americano, nascido em Sewanee, no estado do Tennesee, em 1978. É professor de literatura na Universidade do Sul e autor dos seguintes livros: Tunneling to the center of the Earth (2009), The Family Fang, Caninos em Família, (2011), Perfect Little World (2017), Baby, You’re gonna be mine (2018), Nothing to see Here, Nada para ver aqui, (2019).

Lillian e Madison Billings são duas amigas que, afastadas uma da outra, se correspondem, como fica evidente já no parágrafo introdutório do livro:

“No final da primavera de 1995, poucas semanas depois que fiz vinte e oito anos, recebi uma carta da minha amiga Madison Roberts. Eu ainda pensava nela como Madison Billings. Ouvia notícias de Madison quatro ou cinco vezes ao ano, atualizações sobre a vida dela que eram tão distantes para mim quanto notícias da Lua, uma existência do tipo que você só vê em revistas. Ela era casada com um homem mais velho, um senador, e tinha um menininho que vestia com roupas náuticas, que parecia um ursinho de pelúcia caro transformado em humano. Eu estava trabalhando como caixa em dois mercados concorrentes e fumando maconha no sótão da casa da minha mãe, porque, assim que eu fiz dezoito anos, ela transformou meu quarto de infância em uma sala de ginástica, uma esteira enorme preenchendo o espaço onde eu tinha crescido infeliz. Eu esporadicamente namorava pessoas que não me mereciam mas pensavam que mereciam. Dá para imaginar com as cartas da Madison eram cem vezes mais interessantes do que as minhas, mas nós mantínhamos contato.” (página 7)

Acontece que Lillian recebe uma carta de Madison lhe propondo emprego. Será algo que, na aparência uma tarefa não tão difícil, terminará por ser uma ocupação impactante. Não tendo nada melhor, ela aceita a oferta da amiga: cuidar de um casal de gêmeos, filhos do marido, num casamento anterior.

Lillian havia sido colega de quarto de Madison na faculdade. Um incidente envolvendo a figura de Madison acontece:

“E então, uma das amigas bonitas de Madison – a menos bonita das seis, se quiser ser cruel – ficou chateada com uma piada que Madison tinha feito, um momento em que a esquisitice dela tinha transbordado para além do confinamento do nosso quarto, e contou aos pais do dormitório que Madison tinha um papelote de cocaína na gaveta da escrivaninha. Um dos pais veio conferir, e lá estava. Iron Mountain era um lugar para pessoas ricas e dependia daquelas pessoas, portanto, Madison esperava, na cama comigo uma noite, enquanto conversávamos sobre o assunto, que a escola pegasse leve com ela. Mas eu não era rica e sabia que, às vezes, um lugar como a Iron Mountain precisava dar o exemplo através de uma pessoa rica para ganhar a confiança de um bando de outras pessoas ricas. Era quase fim do ano, poucas semanas até as provas finais, e Madison seus pais foram chamados, com um convite enviado em papel timbrado oficial, na diretoria da escola, não mais comandada por um cara britânico, mas por uma mulher sulista chamada sra. Lipton, com um corte de cabelo branco e um terninho marrom. A sra. Lipton chamava todo mundo de “filha”, mas nunca se casou.” (página 18)

Resumo da ópera: o pai de Madison paga para que a mãe de Lillian aceite que sua filha assuma a culpa, livrando a reputação da filha rica. Apesar disto, a amizade entre as duas continua, mesmo após Lillian ter sido expulsa da faculdade.

Mas, voltemos ao emprego oferecido a Lillian: cuidar de um casal de gêmeos, Roland e Bessie. Fácil, não? Resposta: não. E por quê? Só uma coisinha, um detalhe de nada: as duas crianças sofrem de autocombustão. Entendeu? Isso mesmo, elas pegam fogo; o incêndio começa de dentro para fora. Entretanto, elas não se queimam. As chamas que as envolvem queimam suas roupas, outras coisas ao redor delas.

Para algo tão estranho, não podia deixar de pesquisar para saber mais. Achei referências ao estranho assunto pela internet a fora. Transcrevo, a título de informação, um trecho de uma matéria postada na revista de divulgação científica, Galileu:

"O primeiro registro de um caso do tipo foi feito em 1641 pelo médico dinamarquês Thomas Bartholin. Na compilação de episódios médicos não convencionais Historiarum Anatomicarum Rariorum, Thomas escreve sobre um cavaleiro italiano chamado Polonus Vorstius que em 1470 estava tomando vinho quando começou a vomitar labaredas até ter seu corpo totalmente consumido pelo fogo.

“Totalmente” não é a palavra certa, na realidade. Apesar de cercada de mistérios, a combustão espontânea em humanos costuma seguir um padrão: enquanto o tronco e a cabeça ficam completamente desfigurados pelo fogo, os pés e as mãos em geral permanecem intactos. Essa peculiaridade pode ser uma pista importante para descobrir o que causa o fenômeno.” (revista Galileu, “A Ciência tenta explicar o bizarro fenômeno da combustão humana, de João Mello Bourroul, de 06/10/2015, atualizada em 07/11/2015)

A diferença, como vimos no livro, é que os gêmeos não têm o corpo queimado, quando entram em combustão. De início, a autocombustão é instável; as crianças, filhas do senador Jasper, se incendeiam por qualquer motivo.

Lillian, aos poucos, vai conseguindo a confiança dos dois. E descobre que se conseguir acalmá-los, eles não pegam fogo. Para executar seu trabalho de babá, ela vai viver com seus protegidos na edícula no mesmo terreno que a mansão onde vivem Madison, Jasper e o pequeno Timothy – filho do atual casamento do senador.

O livro é narrado em primeira pessoa, por Lillian. Um trecho bastante elucidativo para a linha interpretativa que passaremos a desenvolver aqui, vai transcrito abaixo, a respeito da narradora:

“Eu morava com a minha mãe e com um rodízio do elenco de seus namorados, meu pai ou estava morto, ou simplesmente tinha vazado. Minha mãe falava dele muito vagamente, não havia sequer uma foto. Parecia que talvez algum deus grego tivesse assumido a forma de um garanhão e a emprenhado, antes de retornar à sua casa no topo do Monte Olimpo. Era mais provável que fosse só um pervertido das casas chiques que a minha mãe limpava.” (página 10)

Mais à frente, a narradora torna a referir-se a si própria, fazendo um paralelo com aquelas estranhas crianças:

“Nós éramos um mundo à parte, mesmo que eu soubesse que era temporário. Em algum momento, teríamos que um jeito, achar uma forma de integrar as crianças ao mundo real. Imaginei um dia em que eles estariam sentados a uma grande mesa de jantar na mansão, comendo ovos beneditinos ou a porra que fosse, enquanto o pai lia o jornal e dizia a eles o resultado do jogo dos Braves no dia anterior.” (página 109)

Lillian, Roland e Bessie pertenciam, portanto, ao mesmo mundo “irreal”, deslocado. O trio era de seres enjeitados. É interessante anotar que fogo, frequentemente, é visto como elemento depurador. Apesar de pegarem fogo, no entanto, as crianças não queimam a si próprias. É um suplício na mesma linha simbólica daquele prometeu acorrentado que tem seu fígado devorado por uma águia durante o dia e, à noite, tem o órgão recomposto.

Nada para ver aqui é uma obra que flerta com o realismo mágico – movimento literário muito presente na literatura latino-americana (Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márques, é bem um exemplo). Algo de aspecto surreal, mas contado sem estranheza dentro da história, como se fosse fenômeno natural.

Outro aspecto que podemos extrair dos dois trechos citados acima (páginas 10 e 109) é como a negligência, a ausência ou rigidez dos pais pode afetar o desenvolvimento afetivo dos filhos. Tanto Jasper quanto Madison fazem questão de não ter contato com as crianças-problema. Igualmente, a ausência do pai de Lillian e a negligência da mãe dela fazem com que ela também se torne uma adulta deficiente em questões afetivas. Por isso, talvez, se deem tão bem.

Nada para ver aqui é um livro que agradou a muitos leitores, embora tenhamos ficado com a impressão de que desagradou ainda mais a uma turma maior. Estou entre estes últimos. Tive imensas dificuldades em prosseguir a leitura até o fim. Não gostei de como a narrativa foi conduzida, para mim ficou faltando examinar as questões postas na elaboração da obra com mais profundidade. A meu ver, Nada para ver aqui, ao se desenvolver muito perto de um realismo fantástico, perdeu muito de sua força.

Não se realiza bem como um autêntico exemplo do realismo mágico, pois a questão da combustão humana, apesar de rara, é documentada. Talvez o problema tenha sido fazermos uma pesquisa anterior, o que destruiu a “mágica” da combustão.

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