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quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Resenha nº 197 - K. - Relato de Uma Busca, de B. Kucinski



 




Título: K.

Autor: B. Kucinski

Editora: Companhia das Letras/TAG

Edição: 4ª

Copyright: 2011

ISBN: 978-65-5921-218-7

Gênero literário: romance

Origem: Literatura brasileira

 

Bernardo Kucinski é cientista político, jornalista e escritor, nascido em São Paulo (1937). Tem formação, ainda, em Física, pela universidade em que leciona. É também professor da Universidade de São Paulo, atuando na cátedra Jornalismo Internacional. É filho de imigrantes poloneses, refugiados no Brasil.

Apenas ficando no campo da ficção, Bernardo publicou K – Relato de Uma Busca (2011), Você Vai Voltar Para Mim (2014), Alice Não Mais Que De Repente (2014), Pretérito Imperfeito (2017), este objeto da resenha nº 147 deste blog – , A Nova Ordem (2019), Júlia: Nos Campos Consagrados do Senhor (2020). O volume de contos Você Vai Voltar Para Mim integra o mais recente volume, A Cicatriz E Outras Histórias – uma coletânea dos contos de Kucinski, publicados em jornais.

Bernardo é ganhador de prêmios. Prêmio Jabuti, de 1997; finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e do Portugal Telecom, de 2012. Em 2018, obteve o Prêmio Vladmir Herzog de jornalismo.

Parte da família de Kucinski que ficou na Europa foi morta pelos horrores do Holocausto, na Segunda Guerra Mundial. Entretanto, o longo braço da tragédia veio alcançá-lo aqui mesmo, no Brasil.

Sua irmã, Ana Rosa Kucinski, professora de Química da USP e seu cunhado desapareceram em abril de 1974, durante a ditadura militar que assolou o Brasil. E é exatamente o desaparecimento da irmã que servirá de matéria narrativa deste romance incômodo que é K.

Bernardo Kucinski é considerado um dos mestres da chamada autoficção e da literatura brasileira contemporânea. Este termo, autoficção, merece algumas considerações, uma vez que vem sendo usado indistintamente, por estar na moda. Sinto-me na obrigação de explicar este rótulo, apesar de não ser objetivo deste blogue entrar em considerações teóricas.

Por autoficção entende-se obra de ficção que se vale dos dados da vida real do autor. Mais que isso, à voz do narrador funde-se a voz do autor. Os fatos, as emoções evidentemente, são aqueles do próprio escritor. Ele fará a seleção dos fatos, de acordo com o andamento pretendido para o romance.

Pode-se confundir autoficção com autobiografia. Entretanto, a autobiografia se pretende fiel à sequência dos fatos reais, quer-se documental, normalmente é escrita com a intenção de informar, de perpetuar a memória de determinada personalidade.

Já a autoficção destina-se a ser lida como um romance, como uma obra literária, na qual o autor exerce suas possibilidades estéticas; a estrutura aqui utilizada é a do romance, com seus conflitos, clímax e desenlaces. Um romance, portanto, não é simplesmente uma sequência de fatos, mas de fatos que servem à confecção de uma narrativa. A seleção deles só se faz por serem significativas para o andamento da estrutura da história.

Temos, então, Bernardo Kucinski como um autor de autoficção. Em K – Relato de Uma Busca há um narrador que se “cola” ao próprio autor. O personagem principal é um pai que busca, incessantemente, por sua filha desaparecida durante a ditadura militar. Envida todos os esforços para ter o direito de encontrar a filha ou, em último caso, poder reconhecer o cadáver dela.

“A tragédia já avançava inexorável quando, naquela manhã de domingo, K. sentiu pela primeira vez a angústia que logo o tomaria por completo. Há dez dias a filha não telefona. Depois, ele culparia a ausência dos ritos de família, ainda mais necessários em tempos difíceis, o telefonar uma vez por dia, o almoço aos domingos. A filha não afinava com sua segunda mulher.

E como não perceber o tumulto dos novos tempos, ele, escolado em política? Quem sabe teria sido diferente se, em vez dos amigos escritores do iídiche, essa língua morta que só poucos velhos ainda falam, prestasse mais atenção ao que acontecia no país naquele momento? Quem sabe? Que importa o iídiche? Nada. Uma língua-cadáver, isso sim, que eles pranteavam nessas reuniões semanais, em vez de cuidar dos vivos.” (páginas 19/20)

Um pai que busca o paradeiro da filha, mas um pai fortemente questionado pelo seu descuido com a família, pois dedicava sua atenção ao culto “do iídiche, essa língua morta que só poucos velhos ainda falam”.

Só agora ele se dá conta de algo muito grave estar acontecendo à filha:

“K rememorou cenas recentes, o nervosismo da filha, suas evasivas, isso de chegar correndo e sair correndo, do endereço só em último caso e com a recomendação de não passá-lo a ninguém.

Atarantado, deu-se conta da enormidade do autoengano em que vivera, ludibriado pela própria filha, talvez metida em aventuras perigosíssimas sem ele desconfiar, distraído que fora pela devoção ao iídiche, pelo encanto fácil das sessões literárias.” (página 23)

 O romance se inicia por uma situação, no mínimo, estapafúrdia:

“De tempos em tempos, o correio entrega no meu antigo endereço uma carta de banco a ela destinada; sempre a oferta sedutora de um produto ou serviço financeiro. A mais recente apresentava um novo cartão de crédito, válido em todos os continentes, ideal para reservar hotéis e passagens aéreas; tudo o que ela hoje mereceria, se sua vida não tivesse sido interrompida. Basta assinar e devolver no envelope já selado, dizia essa última carta.” (página 15)

Estapafúrdia, mas comum. Fico pensando como tal situação se repete, por este mundo afora, no qual um sistema imbecil e insensível dispara mensagens de felicitações de aniversário, desejo de feliz natal a pessoas que já morreram.

Em sua busca incessante, K. descobre que a filha era casada. A descoberta o impacta mais ainda, pois

“A filha confiara na outra família, não nele. Para a outra família o casamento não fora secreto, apenas discreto. Havia nisso um significado maior, terá ela sinalizado uma troca de famílias? Esse pensamento o machucava. Teria sido uma resposta ao seu segundo casamento com aquela alemã que a filha detestava? Ou à sua devoção tão intensa à língua iídiche? Uma língua que nem ela nem os irmãos sabiam falar, aliás, por culpa dele, que não se preocupou em os ensinar.” (página 51)

Tentativas aqui, tentativas ali e K. não sabe mais sobre sua filha do que incialmente sabia. Aciona amigos que, por sua vez, acionam outros contatos a fim de conseguir elucidar o que acontecera à filha. Comparece à igreja católica do bairro onde mora, na qual o sacerdote rebelde tenta minorar o sofrimento de várias famílias. Ele usa seus conhecimentos para obter informações sobre os desparecidos, mas muito pouco obtém de palpável. A máquina montada para fazer desaparecer, calar vozes dissidentes é muito bem azeitada.

Em K – Relato de Uma Busca não há risco de spoilers. A ausência, a inevitabilidade de se encontrar sequer os corpos daqueles sequestrados pelo regime, entre eles, o da irmã do narrador, é anunciado desde o começo.

Nas leituras de apoio que acompanham o livro é dito que

“De tudo, a única coisa que ele deixa transparecer é a referência a Kafka, padroeiro e assombração de quase todo escritor judeu. A primeira referência está clara no nome de seu personagem e no eco entre a trama de K. e a de O Processo. Em ambas, protagonista navega por uma burocracia torturante na tentativa de esclarecer um processo judiciário opaco” (página 9 da revista da TAG, Isadora Sinay)

Concordo. Natural que seja assim. Há uma relação biunívoca entre o nonsense kafkiano e o nonsense vivido pelos judeus no Holocausto. E o nonsense vivido pela família Kucinski aqui, no Brasil.

Não há cadáver, não há o fechamento natural de uma morte; um desparecimento é como uma suspensão, mas, como em música, uma suspensão cria uma tensão no ouvinte, a expectativa de outra nota que virá. No caso do desaparecimento, a nota restauradora não vem.

Ao leitor desconhecedor dos desdobramentos do Holocausto, talvez estranhe muito tamanha dedicação de K. ao culto do iídiche. Ainda utilizando os esclarecimentos de Isadora Sinay, à página 10 da revista de apoio da TAG:

“De tudo que se perdeu no Holocausto, nada é mais representativo do que o iídiche, a língua que desapareceu com os judeus da Europa. De língua materna de milhões de pessoas, o iídiche é hoje uma língua de avós, de palavras pronunciadas com carinho ou uma maldade íntima. Uma língua que, em seu desaparecimento, foi deixando sem lar aqueles como K., exilados de uma Europa impossível e que havia encontrado na literatura da língua uma extensão da comunidade judaica que tinham sido forçados a abandonar.”

Ou seja, mata-se uma língua materna, mata-se uma cultura, neste esforço de apagamento de seres.

Do ponto de vista estrutural, o romance K., de B. Kucinski pode ser enquadrado como um romance fix up. Este termo inglês, significando “gambiarra”, “arranjo”, “conserto”, caracteriza aqueles romances que são compostos por contos cujos personagens recorrentes, ou às vezes, a ambientação em comum formam um contínuo. Um bom exemplo disto é Eu, Robô, de Isaac Asimov. O termo é mais comumente aplicado aos livros de ficção científica, mas não creio exceder-me nesta qualificação. O livro se compõe de contos, como o atesta o próprio autor, ao comentar como elaborou a obra. Um tênue fio conduz o enredo até o fim, o do pai procurando a filha.

Este é um livro que mexe com minhas memórias e, portanto, me afeta emocionalmente. Eu era estudante universitário na parte final da ditadura militar. Embora não tenha sido afetado diretamente pelas ações dela, tive colegas que simplesmente desaparecerem, como Ana Rosa Kucinski. E corria, entre nós, os alunos, avisos para tomarmos cuidado com fulano, gente tão fina, pois eram dedos-duros da famigerada ditadura.

E, por isso, me irrito quando se esforçam para me convencer de que não houve ditadura, alegando “você não foi molestado”. Por este nefando raciocínio, o que não acontece a mim, não me importa. Poderia aliviar, “mas esta é outra história”. Não, não é verdade: é a mesma história.

K – Relato de Uma Busca: um livraço, uma transfiguração da dor em literatura. A generosidade de uma vivência individual em partilha. Obrigado, Bernardo Kucinski.


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