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domingo, 21 de agosto de 2022

Resenha nº 195 - Esfinge, de Coelho Neto

 




Título: Esfinge

Autor: Coelho Neto

Editora: Legatus

Edição: 1ª

Copyright:2020

ISBN: 978-1-8380473-5-1

Origem: literatura brasileira

Gênero literário: Romance de Ficção Científica

 

Henrique Maximiano Coelho Neto nasceu em 21/02/1864, em Caxias (Maranhão) e faleceu no Rio de Janeiro, em 28/11/1934. Era filho do português Antônio da Fonseca Coelho e da índia Ana Silvestre Coelho. Coelho Neto, como ficou conhecido, fez seus primeiros estudos no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, para onde sua família havia se mudado. Ele contava com seis anos de idade neste evento.

Tentou estudar medicina, mas acabou desistindo do curso. Em 1883, iniciou seus estudos superiores na Faculdade de Direito de São Paulo. De espírito inconformado com muitos fatos, viu-se envolvido em um movimento de protesto contra um professor. Diante da possibilidade de represálias, transferiu-se para o Recife, cidade na qual começou o primeiro ano de Direito, sob o comando de Tobias Barreto.

De ideais republicanos e abolicionistas, Coelho Neto tornou-se companheiro assíduo de José do Patrocínio, participando da campanha contra a escravidão no Brasil. Ingressou no jornal Gazeta da Tarde e depois no A Cidade do Rio, onde obteve o cargo de secretário. Data desta época a publicação de seus primeiros trabalhos.

Escreveu 120 obras, abrangendo os gêneros romances, contos, crônicas e teatro. Utilizou vários pseudônimos, tais como Anselmo Ribas, Caliban, Ariel, Amador Santelmo, Blanco Canabarro, Charles Rouget, Democ, N. Puck, Tartarin, Fur-Fur, Manês. Entre sua vasta obra literária, A Conquista (1899), Turbilhão (1906), Esfinge (1908) e Fogo Fátuo (1928).

Num concurso, promovido pelo famoso jornal O Malho, nosso autor foi reconhecido como “o príncipe dos prosadores brasileiros”. Foi um dos escritores mais lidos de sua época. Entretanto, por seu preciosismo textual, os autores modernistas (a Semana de Arte Moderna é de 1922) declararam guerra ao nosso autor. O beletrismo de Coelho era tudo o que o vendaval modernista abominava. Resultado, o autor caiu no ostracismo.  

Como venho fazendo sempre que abordo uma obra com mais anos de existência, passo à contextualização. Este livro foi publicado em 1908, quando o Rio de Janeiro vivia a Belle Époque – nome francês para designar o período agitado que vai do final do século XIX até a Primeira Guerra Mundial. No Brasil, durou até a Semana de Arte Moderna. Por todo lado, vivia-se a euforia, pois o futuro anunciado era esperançoso. Houve uma explosão de inventos que mudariam, realmente, a sociedade como as pessoas a conheciam. Invenção do avião, do automóvel, do telégrafo e telefone, da lâmpada elétrica. A ciência anunciava um mundo de bem-estar e era o centro das aspirações.

Nem tudo, entretanto, eram flores. Também ocorreu o êxodo rural para as cidades, a exploração da mão de obra trabalhadora. As nações europeias disputavam entre si a primazia no campo das artes, cultura e ciência; teve início a corrida armamentista – citada como um dos fatores decisivos para a Primeira Guerra Mundial.

O Brasil mantinha intenso intercâmbio com a França. A elite brasileira viajava a Paris, a fim de se informar a respeito da última moda, dos artistas mais prestigiados. A Belle Époque se fez presente, em nosso território, nas regiões mais adiantadas economicamente, como as do ciclo da borracha (Amazonas e Pará), as do ciclo cafeeiro (São Paulo e Minas Gerais). As três cidades principais de origem colonial (Rio de Janeiro, Recife e Salvador) também foram tocadas por esta verdadeira febre.

O estilo arquitetônico característico do período é o Art Noveau. Como exemplos desta tendência, temos o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o Theatro Amazonas, a Confeitaria Colombo (Rio), a Estação da Luz (São Paulo), o Castelinho da Floresta e a casa de Afonso Pena Júnior (Belo Horizonte).

Esfinge é um livro de leitura difícil. Parte de sua dificuldade vem exatamente da linguagem empregada pelo autor. Coelho Neto é um beletrista. Isto quer dizer que ele escolhe palavras pouco comuns, usa frases caudalosas, dotando o texto, a meu ver, de afetação desnecessária, artificial. Talvez, mais fácil do que explicar, para o entendimento de quem me lê seja trazer um trecho:

“Os hóspedes tratavam-se com intimidade, só o inglês do segundo andar, o apolíneo James Marian, retraía-se a todo o convívio, sempre sorumbático, calado, aparecendo raramente à mesa às horas das refeições, tomando-as só ou no quarto, quando não as fazia no jardim, a uma pequena mesa de ferro, à sombra das acácias, com champanhe a refrescar em um balde, ouvindo os passarinhos.” (página 49)

O trecho selecionado acima mostra bem o bordado dos termos escolhidos. Observe a o longo período subordinado, cheios de vírgulas. Para o leitor moderno, desacostumado deste jeito de escrever, a percepção do que o autor deseja comunicar é difícil.

A pensão de Miss Barkley tinha boa reputação na cidade do Rio de Janeiro. Ali, viviam pessoas de cor branca, representantes da classe média em ascenção na sociedade carioca. A maternal Miss Barkey, inglesa de origem e dona da pensão; Miss Fanny, também inglesa, jovem e professora; o próprio narrador (do qual não saberemos o nome); Frederico Brandt, professor de piano, crítico musical e compositor; o comendador Bernaz, o mais antigo morador. Ainda, Décio, estudante de medicina e admirador da poesia francesa (citando, nominalmente, Baudelaire) e inglesa; Alfredo Penalva, estudante de medicina; Péricles de Sá, viúvo, empreiteiro de obras e fotógrafo ocasional; Basílio, guarda-livros. Completam o “time”, Chispim, estudante de Direito; Carlos e Eduardo, irmãos de origem inglesa, empregados em uma casa importadora. E, por fim, o protagonista, o inglês James Marian.

O “apolíneo” (belo) James Marian é, dentre todos, o mais excêntrico e misterioso. Dono de um rosto de beleza feminina, tem um corpo viril, musculoso. Por esta dualidade, causa estranheza por onde passa. Veste-se com apuro, um dândi (creio que o termo mais atual, que corresponde a esta palavra fora de moda, seria mauricinho). Não é preciso ser expert para deduzir que, num ambiente de intimidade forçada, como o da pensão, as fofocas, o assunto de todos os dias, não poderia ser outro além daquele estranho inglês.

Quando Brandt executa suas músicas ao piano, com maestria, duas pessoas sempre vêm ao jardim da pensão, a fim de escutar melhor a execução: James Marian e Fanny. Pouco a pouco, chegamos à revelação de que a professora Fanny se apaixonou por James. Entretanto, este não corresponde aos seus anseios femininos.

Marian é uma alma atormentada. Sofre de acessos episódicos, em que se debate, de olhos arregalados, como se visse fantasmas, forçando a gola da camisa como se lhe faltasse ar. Depois, volta ao normal.

James Marian demonstra amizade ao narrador. Isto leva o protagonista a solicitar-lhe a tradução de um manuscrito que carrega. É a história de sua vida. Por este artifício, o autor nos leva ao conhecimento da história de Marian. E que história, meus caros leitores! Pois James Marian era um híbrido, um corpo masculino sobre o qual havia sido implantada uma cabeça feminina.

Coelho Neto tomou emprestada esta ideia do Frankenstein, de Mary Shelley, adaptando-a. Certo Arhat – misto de cientista, orientalista, alquimista – conhecedor profundo de uma tal Ciência Magna, havia conseguido unir o que restava de um corpo masculino, ainda com vida, com uma cabeça feminina de uma jovem cujo corpo estava destroçado. O autor não nos explica o que seria tal ciência.

Engana-se quem pensar que Arhat era só um cientista e que, à moda do Frankenstein, abandona sua criatura e mesmo a abomina. Ele tem amor paternal por James:

“Na mesma noite em que consegui realizar a conjunção dos dois corpos, que eram da Morte e que reintegrei na Vida, cedendo à terra o tributo que lhe cabia, porque os tassalhos foram sepultados pelo meu servo fiel, deixei a casa, vindo habitar este antigo castelo onde, à custa da minha própria essência, com prejuízo da minha energia, fui alimentando a vida que hoje tens, dando-te o meu fluido com o mesmo amoroso desinteresse com que a ave maternal encrava as garras no peito, esborcina a chaga a bicadas, fazendo rebentar o sangue com que ciba o ninho.

És verdadeiramente o filho da minha alma.” (página 159)

Temos, portanto, a “realidade” de James Marion. Um ser ambíguo em sua (re)criação; uma cabeça que pensa em chave feminina, num corpo masculino – por quem se apaixonara Fanny. O feminino em James Marion jamais poderia liberar o masculino nele para corresponder ao amor manifestado pela professora.

O protagonista corre o mundo em busca de um sentido para sua vida. Muitos anos depois, após a Segunda Guerra Mundial, o psicoterapeuta Viktor Emil Frankl elabora a sua psicologia denominada Logoterapia. Ele defendia que o impulso mais forte a mover um ser humano é encontrar um sentido para a sua vida. A função do logoterapeuta, portanto, é ajudar o paciente a encontrar o seu sentido de vida, para ser pleno.

Filosofias, religiões diversas não deram conta do conflito interno, da transexualidade de Marion. Então, recorre ao Brasil na tentativa de encontrar aqui, junto à exuberância da natureza, o apaziguamento, o sentido para a vida. Tentativa inútil. E como não encontra a paz, deve partir, ir buscá-la ainda em outro lugar.

Mas, haverá algum lugar, alguma filosofia, alguma religião, ou mesmo alguma psicologia a resolver tal impasse? Não é só a transexualidade conflituosa; a ela, soma-se a questão ambígua da sua re(criação). Marion é e não é humano. É humano, se se considerar que Arhat usou sua ciência para juntar duas partes humanas. Não é humano, pois o alquimista interferiu no ciclo de vida-morte e criou um híbrido por meio de uma intervenção não natural.

Não se enquadra na discussão atual de gênero versus sexo. James não é, simplesmente, um homem com psicologia feminina e muito menos, uma mulher com psicologia masculina; são duas peças distintas, em irremediável conflito, como lhe assevera o próprio Arhat:

“Se em ti predominar o feminino que transluz na beleza do teu rosto, o rosto de tua irmã, serás um monstro: se vencer o espírito do homem, como faz acreditar o vigor dos teus músculos, serás como um ímã de lascívia: mas infeliz serás como ainda não houve outro no mundo se as duas almas que pairavam sobre a carne rediviva lograram insinuar-se nela.

O Linga-sharira, ou corpo astral, “aura” ambiente, que circula, em auréola, em torno da cabeça, é o último princípio que abandona o corpo e a tua cabeça é feminina. Será o coração viril?” (página 161)

Trata-se, como está explícito na passagem, de duas almas que tentam conviver no mesmo corpo e isto não é simbólico. É validado pelo raciocínio de que, se o corpo astral de característica feminina circula ao redor da cabeça, o corpo astral masculino, por semelhança, circula ao redor do resto do corpo.

Coelho Neto, como grande construtor de narrativas que é, não deixa pontas soltas. Uma delas, o que será feito de Fanny; está lá, leitor; só não vou contar para você o que acontece. Haveria algo mais que o relato do narrador, que dê ao livro um fechamento mais verossímil? Claro que há, mas também não o adianto. Sugiro que você se aventure a ler o livro.

Parte da citação acima, relativa à página 161, nos dá ideia da complexidade dos componentes sob a superfície do texto. Coelho Neto faz uma mistura de orientalismo, conceitos teosóficos e espiritismo. Não soa falso porque o personagem Arhat é instaurado como um sábio, versado na Magna Ciência. Desta expressão, conclui-se tratar-se de uma ciência maior, além do conhecimento comum. Uma mistura entre o experimentalismo científico e o conhecimento ocultista, que resultaria numa ciência dos deuses (grifo nosso). A época privilegiou muita especulação de cunho ocultista, teosófico, espírita. Para se ter ideia do ambiente do Rio de Janeiro, Marcelo Spalding (in Digestivo Cultural) cita trecho de As Religiões do Rio, do cronista João do Rio (1904):

“Nós dependemos do feitiço. Não é um paradoxo, é a verdade de uma observação longa e dolorosa. Há no Rio magos estranhos que conhecem a alquimia e os filtros encantados, como nas mágicas de teatro, há espíritos que incomodam as almas para fazer os maridos incorrigíveis voltarem ao tálamo conjugal, há bruxas que abalam o invisível só pelo prazer de ligar dois corpos apaixonados, mas nenhum desses homens, nenhuma dessas horrendas mulheres tem para este povo o indiscutível valor do feitiço, do misterioso preparado dos negros.”

Vou ser honesto com você: eu, com a experiência de quem já leu muita coisa e coisas variadas, tive dificuldade em completar a leitura. Somente com disciplina venci alguns capítulos intermediários, usando a intuição leitora de que o restante do livro compensaria a dedicação. Confiei no talento de Coelho Neto, já detectado nos capítulos iniciais, e segui adiante. Não me decepcionei.

Tenho com este Esfinge sentimentos confusos. É uma obra “fora da curva”, estranha, leitura cheia de camadas. Não tenho muito costume com literatura gótica e talvez daí venham tais sentimentos confusos. Vale lembrar, o teórico das histórias de fantasia, Tzvetan Todorov, nos alerta de que um dos elementos do fantástico é, exatamente, o estranhamento.

Foram importantíssimos para esta tentativa de resenha os dois textos de apoio que acompanham esta bela edição da Editora Legatus. Um prefácio do professor Alexander Meireles da Silva e um posfácio, de autoria da professora Mary Elizabeth Ginway. Sem eles, a leitura teria sido menos proveitosa.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Resenha nº 194 - Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe

 



Título original: Die Leiden des jungen Werthers

Título em português: Os Sofrimentos do Jovem Werther

Autor: Johann Wolfgang von Goethe

Tradutor: Daniel Martineschen

Editora: TAG Experiências Literárias

Copyright: domínio público

ISBN: 978-65-88526-21-7

Origem: Literatura alemã

Gênero Literário: romance

 

Johann Wolfgang von Goethe nasceu em 28/08/1749, na cidade de Frankfurt e faleceu em 22/03/1832, em Weimar, ambas localidades da Alemanha. O escritor alemão foi polímata e estadista do Sacro Império Romano-Germânico, fazendo, inclusive, incursões pelas ciências naturais. Figura mais importante da literatura alemã, Goethe é um dos valores do cânone da literatura ocidental.

É apontado como introdutor do Romantismo na Alemanha, período que compreende o final do século XVIII e início do XIX. Juntamente com Friedrich Schiller, foi um dos líderes do movimento literário alemão denominado Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto).

Goethe foi um autor prolífico; o ponto alto de toda a sua obra, sem dúvida, é Fausto – um drama trágico –, em que explora o mito fáustico. Este mito, em sua interpretação mais ampla, tem tudo a ver com o homem moderno e sua luta incessante pela busca do sentido para sua vida. Mas o que tornou o autor conhecido do público foi este Os Sofrimentos do Jovem Werther. O espantoso é que ele o escreveu aos 25 anos, em quatro semanas. Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister é outra obra importante, inauguradora do que se convencionou chamar “romance de formação”. Por esta denominação entende-se aquela narrativa que acompanha determinado personagem, desde a mais tenra idade até a fase madura.

O autor foi apontado como gênio no Segundo Reich, sendo também fundamental para a instauração da República de Weimar, logo após a Primeira Guerra Mundial. Lido por ninguém menos que Napoleão – coisa de que o autor alemão se gabava – influenciou vários escritores ao redor do mundo. Aqui, no Brasil, dois gigantes literários sofreram sua influência: Machado de Assis e Guimarães Rosa.

Quanto à religiosidade, o escritor era cristão. Entretanto, um cristão diferente: acreditava na mensagem de Cristo, sem se vincular a uma expressão religiosa. Para ele, qualquer especulação metafísica racionalista era incapaz de mensurar os movimentos do universo, e compreender o mistério divino em sua integridade.

Envolveu-se em pesquisas de alquimia, filiou-se, em 1780, à sociedade secreta Illuminati, conhecida como “Maçonaria Iluminada”, de grande prestígio entre as elites europeias de então.

Do ponto de vista político, ele se classificava como um “liberal moderado”. Este liberalismo tinha toques de conservadorismo. Era defensor do federalismo, posicionando-se como crítico da centralização do poder na Alemanha (durante muito tempo, a Alemanha fora composta de vários territórios, sob o nome geral de Sacro Império Romano-Germânico).

Caro leitor, estamos diante de um clássico, considerando-se aquela caracterização de que “um clássico é uma obra que, tendo sido escrita há muito tempo, continua tendo coisas a dizer ao mundo atual”. Sem dúvida, Os Sofrimentos do Jovem Werther tem coisas importantes a nos dizer.

Um triângulo amoroso: o jovem Werther, Charlotte (Lotte) e Alfred, noivo dela. Você poderá dizer: meu Deus, tantas histórias lidas por mim envolvem este mesmo drama. Se fosse só isso, este livro não poderia ser enquadrado como um clássico. Há muito mais.

É um romance epistolar, curto (minha edição conta com 172 páginas). A narrativa é feita por cartas, organizadas cronologicamente. Elas são escritas por certo Werther e dirigem-se, em sua maioria, ao amigo Wilhelm. Portanto, sabemos apenas suas impressões sobre o mundo, seus sofrimentos, de que nos fala o título.

Werther muda-se de uma cidade do interior. Eis como ele fala de sua nova moradia ao amigo Wilhelm:

“Fiz todo tipo de amizade, mas ainda não encontrei companhia. Não sei o que tenho de tão atraente para as pessoas; tantas gostam de mim e se aproximam, e fico muito triste quando nosso caminho é o mesmo apenas por um curto trecho. Se você me perguntasse como são as pessoas daqui, teria que lhe responder: como de qualquer lugar! É uma coisa uniforme, o ser humano. A maioria das pessoas trabalha a grande parte do tempo para viver, e o pouco de liberdade que lhes resta lhes exige tanto que procuram todas as formas para se livrar dela. Ah, a determinação do ser humano!” (página 16)

O protagonista conhece a bela Charlotte (Lotte) e por ela se apaixona desvairadamente. O problema é que Lotte está prometida a Alfred. A princípio, contenta-se em amá-la sem lhe confessar seus sentimentos:

“Ela é sagrada para mim. Todo desejo se cala na presença dela. Nunca sei como agir quando estou com ela; é como se a alma se torcesse em todos os meus nervos. Ela tem uma melodia que toca ao piano com a força de um anjo, tão simples e espirituosa! É sua canção preferida, e me remove de toda dor, confusão e martírio tão logo toca a primeira nota.” (página 47)

Não há nada a fazer. Ainda mais que Werther aprecia Alfred; seu rival é um homem adequado para Lotte, bem capaz de fazê-la feliz:

“Chega, Wilhelm, o noivo chegou! Um homem dedicado e querido a quem devemos ser bons. Felizmente não estive presente na sua chegada! Isso teria me partido o coração. Ele também é bastante horado, não beijou Lotte nem uma única vez na minha presença. Que Deus lhe pague! Devo amá-lo, pelo respeito que tem pela menina. Ele quer o meu bem, e especulo que isso seja mais obra de Lotte do que seu próprio sentimento pois para isso as mulheres têm fino senso e entendimento. Quando podem manter dois admiradores em boa convivência, a vantagem é sempre delas, mesmo que isso só raramente funcione.” (página 51)

Pouco a pouco, o jovem Werther vai mudando de humor. Mergulha num estado depressivo sem remissão (melancolia, como era conhecido este estado psicológico):

“Ranjo os dentes e escarneço da minha desgraça, e escarneço duas e três vezes mais de quem quisesse dizer que eu deveria me resignar, pois não há nada a se fazer. Tirem tais espantalho de perto de mim! Corro pelas florestas, e quando chego até a casa de Lotte, vejo Albert sentado ao seu lado no jardim sob as folhas e não posso prosseguir, então me torno um verdadeiro palhaço e começo a fazer todo tipo de confusão.” (página 51)

Como tudo é dito apenas do ponto de vista de Werther, não podemos ter certeza se Lotte percebe a devoção dele e a alimenta, ou se tudo é produto de sua imaginação sobre-excitada.

Apesar de a minha edição não trazer a divisão em duas partes (livro 1 e 2), o tom da narrativa muda a partir de certo ponto. A segunda parte é sombria, tudo se precipita. Alfred e Lotte se casam. Werther é despedido do emprego, a depressão piora.

O livro coloca a interpretação de muitos fatos sob a ótica filosófica, como quando Alfred e Werther debatem sobre o suicídio. Para o marido de Lotte, o ato será uma covardia, uma fuga; para o protagonista, há justificativas para tal:

“A natureza humana”, prossegui, “tem seus limites. Ela pode suportar alegria, sofrimento e dores até um determinado grau, e colapsa assim que esse grau é ultrapassado. Portanto, aqui não se trata de alguém ser fraco ou forte, mas sim se é capaz de aguentar a dimensão da própria dor? Ela pode ser moral ou corporal: considero também incrível dizer que é covarde quem tira a própria vida, da mesma maneira que seria impertinente chamar de covarde aquele que morre com uma terrível febre.” (página 57)

 Visivelmente, neste debate, Albert representa a força da análise, da razão; Werther incorpora a força da emoção, do sentimento. A escola do romantismo sempre propugnou pela supremacia da emoção. Compreende-se. Aquele mundo industrializado que despertava, com suas máquinas, sua ciência, não era capaz, aos olhos dos românticos, de possibilitar a felicidade ou a realização ao ser humano. O mundo não podia ser reduzido a equações, a experimentos controlados. Onde a criatividade, a imaginação?

Os Sofrimentos do Jovem Werther é obra por demais conhecida. Penso não ser spoiler dizer que a história termina mal. O suicídio do personagem central já fora anunciado lá na página 57, durante a discussão entre Werther e Albert. A descrição do ato terminal tem forte carga dramática, em parte constituída pelo detalhamento. Cheguei a iniciar a transcrição do trecho, mas desisti. Deixo ao leitor a tarefa de ler o trecho no livro.

Nesta parte final do romance, já não são as cartas de Werther que nos dão ciência dos fatos. Entra em cena, a partir da página 109, sob o título “Do Editor ao Leitor”, um novo narrador. Ele publica mais algumas cartas e passa a nos introduzir nos momentos derradeiros.

Duas observações a mais. Primeiro, Goethe era fã da cultura clássica, tendo estudado Platão e lido o autor grego Homero, no original. Ele transfere esta característica ao seu protagonista. Werther é também um fã do autor de Ilíada e Odisseia. Segundo, a obra em questão tem fortes presenças autobiográficas; certa Charlotte von Stein fora uma paixão não correspondida de Goethe.

É interessante notar como um autor pode usar dados da sua própria biografia para compor seus personagens, sem que eles sejam, na integralidade, seus sósias. Nada a se estranhar, pois, quem escreve, sempre parte de determinados fatos, acontecimentos; escrever é revelar-se, como já foi asseverado por alguém.

A repercussão do Jovem Werther, à época, foi enorme, um best-seller. Foi muito criticado por ter incitado jovens europeus a uma onda de suicídio, no que passou para a posteridade como “efeito Werther”. Foi, inclusive, condenado por um pastor por ser um livro pernicioso para os jovens. Semelhante ao acontecido a outro clássico, este russo, de Léon Tólstoi, o Ana Kariênina.

Cumpre dizer que este livro não é, segundo apreciações abalizadas, o melhor do autor; cabe esta celebração ao Fausto, obra monumental publicada em dois volumes. O segundo, póstumo.

Muita gente pode não gostar deste livro, e por algumas razões. A linguagem tem um sabor antigo, é um romance epistolar (há "buracos" de informação entre uma carta e outra, já que só temos os textos escritos por Werther), é um livro de alta densidade psicológica, conquanto lírica. A carga de pessimismo oriunda dos desvarios amorosos do protagonista, desagradam a muita gente. Ainda, a técnica escolhida por Goethe ao dirigir-se indiretamente ao leitor, endereçando as cartas a Wilhelm, mas permitindo ao leitor conhecê-las pode causar algum cansaço a quem não estiver acostumado a este artifício.

Os Sofrimentos do Jovem Werther é uma obra importantíssima, um marco da literatura alemã. Escrito em 1774, nos apresenta uma narrativa que poderia, talvez, ser classificada com pré-romântica. Tenho consciência, clássicos não são para todos os espíritos e não há qualquer demérito nisto. Inicialmente, tem-se de vencer as dificuldades apontadas acima.