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domingo, 21 de agosto de 2022

Resenha nº 195 - Esfinge, de Coelho Neto

 




Título: Esfinge

Autor: Coelho Neto

Editora: Legatus

Edição: 1ª

Copyright:2020

ISBN: 978-1-8380473-5-1

Origem: literatura brasileira

Gênero literário: Romance de Ficção Científica

 

Henrique Maximiano Coelho Neto nasceu em 21/02/1864, em Caxias (Maranhão) e faleceu no Rio de Janeiro, em 28/11/1934. Era filho do português Antônio da Fonseca Coelho e da índia Ana Silvestre Coelho. Coelho Neto, como ficou conhecido, fez seus primeiros estudos no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, para onde sua família havia se mudado. Ele contava com seis anos de idade neste evento.

Tentou estudar medicina, mas acabou desistindo do curso. Em 1883, iniciou seus estudos superiores na Faculdade de Direito de São Paulo. De espírito inconformado com muitos fatos, viu-se envolvido em um movimento de protesto contra um professor. Diante da possibilidade de represálias, transferiu-se para o Recife, cidade na qual começou o primeiro ano de Direito, sob o comando de Tobias Barreto.

De ideais republicanos e abolicionistas, Coelho Neto tornou-se companheiro assíduo de José do Patrocínio, participando da campanha contra a escravidão no Brasil. Ingressou no jornal Gazeta da Tarde e depois no A Cidade do Rio, onde obteve o cargo de secretário. Data desta época a publicação de seus primeiros trabalhos.

Escreveu 120 obras, abrangendo os gêneros romances, contos, crônicas e teatro. Utilizou vários pseudônimos, tais como Anselmo Ribas, Caliban, Ariel, Amador Santelmo, Blanco Canabarro, Charles Rouget, Democ, N. Puck, Tartarin, Fur-Fur, Manês. Entre sua vasta obra literária, A Conquista (1899), Turbilhão (1906), Esfinge (1908) e Fogo Fátuo (1928).

Num concurso, promovido pelo famoso jornal O Malho, nosso autor foi reconhecido como “o príncipe dos prosadores brasileiros”. Foi um dos escritores mais lidos de sua época. Entretanto, por seu preciosismo textual, os autores modernistas (a Semana de Arte Moderna é de 1922) declararam guerra ao nosso autor. O beletrismo de Coelho era tudo o que o vendaval modernista abominava. Resultado, o autor caiu no ostracismo.  

Como venho fazendo sempre que abordo uma obra com mais anos de existência, passo à contextualização. Este livro foi publicado em 1908, quando o Rio de Janeiro vivia a Belle Époque – nome francês para designar o período agitado que vai do final do século XIX até a Primeira Guerra Mundial. No Brasil, durou até a Semana de Arte Moderna. Por todo lado, vivia-se a euforia, pois o futuro anunciado era esperançoso. Houve uma explosão de inventos que mudariam, realmente, a sociedade como as pessoas a conheciam. Invenção do avião, do automóvel, do telégrafo e telefone, da lâmpada elétrica. A ciência anunciava um mundo de bem-estar e era o centro das aspirações.

Nem tudo, entretanto, eram flores. Também ocorreu o êxodo rural para as cidades, a exploração da mão de obra trabalhadora. As nações europeias disputavam entre si a primazia no campo das artes, cultura e ciência; teve início a corrida armamentista – citada como um dos fatores decisivos para a Primeira Guerra Mundial.

O Brasil mantinha intenso intercâmbio com a França. A elite brasileira viajava a Paris, a fim de se informar a respeito da última moda, dos artistas mais prestigiados. A Belle Époque se fez presente, em nosso território, nas regiões mais adiantadas economicamente, como as do ciclo da borracha (Amazonas e Pará), as do ciclo cafeeiro (São Paulo e Minas Gerais). As três cidades principais de origem colonial (Rio de Janeiro, Recife e Salvador) também foram tocadas por esta verdadeira febre.

O estilo arquitetônico característico do período é o Art Noveau. Como exemplos desta tendência, temos o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o Theatro Amazonas, a Confeitaria Colombo (Rio), a Estação da Luz (São Paulo), o Castelinho da Floresta e a casa de Afonso Pena Júnior (Belo Horizonte).

Esfinge é um livro de leitura difícil. Parte de sua dificuldade vem exatamente da linguagem empregada pelo autor. Coelho Neto é um beletrista. Isto quer dizer que ele escolhe palavras pouco comuns, usa frases caudalosas, dotando o texto, a meu ver, de afetação desnecessária, artificial. Talvez, mais fácil do que explicar, para o entendimento de quem me lê seja trazer um trecho:

“Os hóspedes tratavam-se com intimidade, só o inglês do segundo andar, o apolíneo James Marian, retraía-se a todo o convívio, sempre sorumbático, calado, aparecendo raramente à mesa às horas das refeições, tomando-as só ou no quarto, quando não as fazia no jardim, a uma pequena mesa de ferro, à sombra das acácias, com champanhe a refrescar em um balde, ouvindo os passarinhos.” (página 49)

O trecho selecionado acima mostra bem o bordado dos termos escolhidos. Observe a o longo período subordinado, cheios de vírgulas. Para o leitor moderno, desacostumado deste jeito de escrever, a percepção do que o autor deseja comunicar é difícil.

A pensão de Miss Barkley tinha boa reputação na cidade do Rio de Janeiro. Ali, viviam pessoas de cor branca, representantes da classe média em ascenção na sociedade carioca. A maternal Miss Barkey, inglesa de origem e dona da pensão; Miss Fanny, também inglesa, jovem e professora; o próprio narrador (do qual não saberemos o nome); Frederico Brandt, professor de piano, crítico musical e compositor; o comendador Bernaz, o mais antigo morador. Ainda, Décio, estudante de medicina e admirador da poesia francesa (citando, nominalmente, Baudelaire) e inglesa; Alfredo Penalva, estudante de medicina; Péricles de Sá, viúvo, empreiteiro de obras e fotógrafo ocasional; Basílio, guarda-livros. Completam o “time”, Chispim, estudante de Direito; Carlos e Eduardo, irmãos de origem inglesa, empregados em uma casa importadora. E, por fim, o protagonista, o inglês James Marian.

O “apolíneo” (belo) James Marian é, dentre todos, o mais excêntrico e misterioso. Dono de um rosto de beleza feminina, tem um corpo viril, musculoso. Por esta dualidade, causa estranheza por onde passa. Veste-se com apuro, um dândi (creio que o termo mais atual, que corresponde a esta palavra fora de moda, seria mauricinho). Não é preciso ser expert para deduzir que, num ambiente de intimidade forçada, como o da pensão, as fofocas, o assunto de todos os dias, não poderia ser outro além daquele estranho inglês.

Quando Brandt executa suas músicas ao piano, com maestria, duas pessoas sempre vêm ao jardim da pensão, a fim de escutar melhor a execução: James Marian e Fanny. Pouco a pouco, chegamos à revelação de que a professora Fanny se apaixonou por James. Entretanto, este não corresponde aos seus anseios femininos.

Marian é uma alma atormentada. Sofre de acessos episódicos, em que se debate, de olhos arregalados, como se visse fantasmas, forçando a gola da camisa como se lhe faltasse ar. Depois, volta ao normal.

James Marian demonstra amizade ao narrador. Isto leva o protagonista a solicitar-lhe a tradução de um manuscrito que carrega. É a história de sua vida. Por este artifício, o autor nos leva ao conhecimento da história de Marian. E que história, meus caros leitores! Pois James Marian era um híbrido, um corpo masculino sobre o qual havia sido implantada uma cabeça feminina.

Coelho Neto tomou emprestada esta ideia do Frankenstein, de Mary Shelley, adaptando-a. Certo Arhat – misto de cientista, orientalista, alquimista – conhecedor profundo de uma tal Ciência Magna, havia conseguido unir o que restava de um corpo masculino, ainda com vida, com uma cabeça feminina de uma jovem cujo corpo estava destroçado. O autor não nos explica o que seria tal ciência.

Engana-se quem pensar que Arhat era só um cientista e que, à moda do Frankenstein, abandona sua criatura e mesmo a abomina. Ele tem amor paternal por James:

“Na mesma noite em que consegui realizar a conjunção dos dois corpos, que eram da Morte e que reintegrei na Vida, cedendo à terra o tributo que lhe cabia, porque os tassalhos foram sepultados pelo meu servo fiel, deixei a casa, vindo habitar este antigo castelo onde, à custa da minha própria essência, com prejuízo da minha energia, fui alimentando a vida que hoje tens, dando-te o meu fluido com o mesmo amoroso desinteresse com que a ave maternal encrava as garras no peito, esborcina a chaga a bicadas, fazendo rebentar o sangue com que ciba o ninho.

És verdadeiramente o filho da minha alma.” (página 159)

Temos, portanto, a “realidade” de James Marion. Um ser ambíguo em sua (re)criação; uma cabeça que pensa em chave feminina, num corpo masculino – por quem se apaixonara Fanny. O feminino em James Marion jamais poderia liberar o masculino nele para corresponder ao amor manifestado pela professora.

O protagonista corre o mundo em busca de um sentido para sua vida. Muitos anos depois, após a Segunda Guerra Mundial, o psicoterapeuta Viktor Emil Frankl elabora a sua psicologia denominada Logoterapia. Ele defendia que o impulso mais forte a mover um ser humano é encontrar um sentido para a sua vida. A função do logoterapeuta, portanto, é ajudar o paciente a encontrar o seu sentido de vida, para ser pleno.

Filosofias, religiões diversas não deram conta do conflito interno, da transexualidade de Marion. Então, recorre ao Brasil na tentativa de encontrar aqui, junto à exuberância da natureza, o apaziguamento, o sentido para a vida. Tentativa inútil. E como não encontra a paz, deve partir, ir buscá-la ainda em outro lugar.

Mas, haverá algum lugar, alguma filosofia, alguma religião, ou mesmo alguma psicologia a resolver tal impasse? Não é só a transexualidade conflituosa; a ela, soma-se a questão ambígua da sua re(criação). Marion é e não é humano. É humano, se se considerar que Arhat usou sua ciência para juntar duas partes humanas. Não é humano, pois o alquimista interferiu no ciclo de vida-morte e criou um híbrido por meio de uma intervenção não natural.

Não se enquadra na discussão atual de gênero versus sexo. James não é, simplesmente, um homem com psicologia feminina e muito menos, uma mulher com psicologia masculina; são duas peças distintas, em irremediável conflito, como lhe assevera o próprio Arhat:

“Se em ti predominar o feminino que transluz na beleza do teu rosto, o rosto de tua irmã, serás um monstro: se vencer o espírito do homem, como faz acreditar o vigor dos teus músculos, serás como um ímã de lascívia: mas infeliz serás como ainda não houve outro no mundo se as duas almas que pairavam sobre a carne rediviva lograram insinuar-se nela.

O Linga-sharira, ou corpo astral, “aura” ambiente, que circula, em auréola, em torno da cabeça, é o último princípio que abandona o corpo e a tua cabeça é feminina. Será o coração viril?” (página 161)

Trata-se, como está explícito na passagem, de duas almas que tentam conviver no mesmo corpo e isto não é simbólico. É validado pelo raciocínio de que, se o corpo astral de característica feminina circula ao redor da cabeça, o corpo astral masculino, por semelhança, circula ao redor do resto do corpo.

Coelho Neto, como grande construtor de narrativas que é, não deixa pontas soltas. Uma delas, o que será feito de Fanny; está lá, leitor; só não vou contar para você o que acontece. Haveria algo mais que o relato do narrador, que dê ao livro um fechamento mais verossímil? Claro que há, mas também não o adianto. Sugiro que você se aventure a ler o livro.

Parte da citação acima, relativa à página 161, nos dá ideia da complexidade dos componentes sob a superfície do texto. Coelho Neto faz uma mistura de orientalismo, conceitos teosóficos e espiritismo. Não soa falso porque o personagem Arhat é instaurado como um sábio, versado na Magna Ciência. Desta expressão, conclui-se tratar-se de uma ciência maior, além do conhecimento comum. Uma mistura entre o experimentalismo científico e o conhecimento ocultista, que resultaria numa ciência dos deuses (grifo nosso). A época privilegiou muita especulação de cunho ocultista, teosófico, espírita. Para se ter ideia do ambiente do Rio de Janeiro, Marcelo Spalding (in Digestivo Cultural) cita trecho de As Religiões do Rio, do cronista João do Rio (1904):

“Nós dependemos do feitiço. Não é um paradoxo, é a verdade de uma observação longa e dolorosa. Há no Rio magos estranhos que conhecem a alquimia e os filtros encantados, como nas mágicas de teatro, há espíritos que incomodam as almas para fazer os maridos incorrigíveis voltarem ao tálamo conjugal, há bruxas que abalam o invisível só pelo prazer de ligar dois corpos apaixonados, mas nenhum desses homens, nenhuma dessas horrendas mulheres tem para este povo o indiscutível valor do feitiço, do misterioso preparado dos negros.”

Vou ser honesto com você: eu, com a experiência de quem já leu muita coisa e coisas variadas, tive dificuldade em completar a leitura. Somente com disciplina venci alguns capítulos intermediários, usando a intuição leitora de que o restante do livro compensaria a dedicação. Confiei no talento de Coelho Neto, já detectado nos capítulos iniciais, e segui adiante. Não me decepcionei.

Tenho com este Esfinge sentimentos confusos. É uma obra “fora da curva”, estranha, leitura cheia de camadas. Não tenho muito costume com literatura gótica e talvez daí venham tais sentimentos confusos. Vale lembrar, o teórico das histórias de fantasia, Tzvetan Todorov, nos alerta de que um dos elementos do fantástico é, exatamente, o estranhamento.

Foram importantíssimos para esta tentativa de resenha os dois textos de apoio que acompanham esta bela edição da Editora Legatus. Um prefácio do professor Alexander Meireles da Silva e um posfácio, de autoria da professora Mary Elizabeth Ginway. Sem eles, a leitura teria sido menos proveitosa.

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