Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Resenha nº 201 - Do Tempo Em Que Voyeur Precisava de Binóculos, de Luize Valente

 




Título: Do tempo em que voyeur precisava de binóculos

Autora: Luize Valente

Editora: Record

Edição: 1ª

Copyright: 2019

ISBN: 978-85-01-11716-8

Origem: literatura brasileira

Gênero: conto

 

Luize Mendes Pinheiro Valente nasceu no Rio de Janeiro e é de ascendência portuguesa e alemã. Formada em jornalismo e pós-graduada em Literatura pela PUC-RJ, é fascinada por História, notadamente ligada às questões judaicas e os refugiados dos tempos de guerra. Sua bibliografia é composta de três romances: O Segredo do OratórioUma praça em Antuérpia, Sonata em Auschwitz e um livro de contos, Do tempo em que voyeur precisava de binóculos. Seus livros já foram editados fora do Brasil; Uma praça em Antuérpia ganhou edição portuguesa pela editora Saída de Emergência, integrando a coleção "História de Portugal em Romances". O Segredo do Oratório ganhou uma tradução holandesa pela Nieuw Amsterdam.

Em 2017, os direitos cinematográficos de O Segredo do Oratório e de Uma praça em Antuérpia foram adquiridos pelos produtores Breno Silveira (de 2 Filhos de Francisco) e Paula Fiuza (diretora do documentário Sobral).

Do tempo em que voyeur precisava de binóculos contém três contos longos, a saber, De repente o mundo ficou realmente grande, O dia em que Eva acordou e (In)cômodos. O que encaixa estes três trabalhos de Luize sob o longo e descritivo título são duas coisas. Primeiro, serem todas as histórias ambientadas nos anos sessenta. Segundo, todas as tramas têm a ver com os imóveis habitados pelos personagens. O volume possui até um glossário, com palavras que, com bastante certeza, a geração de leitores mais novos não tem a menor ideia do que significam. Ou significaram.

Assim, temos: carrossel de CD, DOS, Filme B, Yuppie, prafrentex, pager ou bipe. Não faltam referências a séries televisivas como Os Jetsons, Os Simpsons (esta, incrivelmente duradoura, passa até hoje) e Os Waltons.

O parágrafo introdutor do primeiro conto parece ter sido planejado como uma introdução para a coletânea inteira:

“Ninguém se torna um voyeur. Já nasce assim. Se você olhar um berçário com bastante atenção, vai perceber que algumas crianças viram o rosto quando encaradas. Foram descobertas. Eu sei do que estou falando. Nasci prematuro e as semanas na incubadora me ajudaram a desenvolver um senso agudo de observação. Meus olhos eram a porção humana de um corpo com pulmões artificiais e uma cabeça inchada de veias sob a pele fina e transparente.” (página 15)

De repente o mundo ficou realmente grande tem uma pegada à Janela Indiscreta, filme de Alfred Hitchcock, estrelado por James Stewart, Grace Kelly e Wendell Corey. Enredo: um fotógrafo quebra a perna e é obrigado a ficar em casa. Não tem nada para fazer, então, bisbilhota a vida dos outros com seus binóculos. De sua janela, ele presencia o que pode ter sido um assassinato.

Aqui neste livro, o voyeur observa, de sua janela, a privacidade alheia com seu binóculo. Observa sua obsessão, Fernanda:

“Tenho uma ambição desmedida, que Fernanda não possui. Quero muito, o poder me agrada. Ela se esconde numa dissertação de mestrado. Muitas vezes, julgo que ela adoraria ter sofrido meu acidente para poder adiar mais um pouco a entrada na vida.

A esta altura, já a acompanho faz uma semana. A primeira impressão insossa é substituída pela sensação de descobrir alguém especial. Não é bela o bastante para o encanto de um primeiro olhar. Também não tem a fibra da profissional atirada que fascina ao mesmo tempo que amedronta. Mas a beleza é um misto de genético e cosmético; e o sucesso, de oportunidade, perseverança e algum talento. Fernanda tem carisma. Isso é herança divina. A gene vê Fernanda no primeiro dia e dá de ombros. No segundo, as lentes a procuram como quem não quer nada. E assim os dias vão passando, e o foco cai nela não se sabe por quê. Não anda pelada, não faz nada de mais. No entanto, os olhos se perdem em observá-la, hora a fio, neste não fazer, por alguma razão que meu eu racional não explica.” (página 27)

O solitário voyeur, ao invadir a vida de outra pessoa, acaba mexendo na sua própria vida. Forçado a uma espécie de autoanálise, a um reexame de sua própria existência:

“Todo ser humano tem um quê de perverso... pelo menos isso me serve como justificativa para elucubrar pensamentos pecaminosos sobre a família. No estado de inércia em que me encontro, faz bem enveredar a mente por caminhos proibidos pela moral cristã. Embora não tenha tido educação religiosa severa – cheguei a fazer primeira comunhão, mas jamais comunguei depois daquele dia –, carrego a culpa católica de maldizer pai e mãe. Mas o homem é racional porque pensa e não pelo que pensa. Hein? Deixo as divagações de lado para voltar ao concreto que define minha paisagem.” (página 41)

E, no fim de tanta observação, de tanto exercício voyeur, na confirmação da teoria que nos diz que aprendemos com os outros, o narrador constata:

“Estou apaixonado pela vida. E é essa sensação que me faz querer mudar tudo. Procurar os caminhos que o destino traçou para mim e não apenas olhá-los como possibilidades do que poderia ter sido.” (página 65)

Em O dia em que Eva acordou, temos uma narradora que acompanha a personagem Eva. Ela compulsa o diário de Eva e revê a vida dela:

“Tudo se passou em menos de uma hora, desde o instante em que Eva abriu os olhos naquela manhã de sábado. Não estamos aqui para julgá-la. Existe certo e errado? Além do mais, já está feito. Quanto a Berto, Homem do Ano, Empresário Modelo e tal, cometeu um erro primário. Falou de noite, quando temos apenas os fantasmas para dividir a angústia, o que deveria ter dito pela manhã... Afinal era sexta-feira. Custava deixar para segunda?” (página 71)

Eva tem de acompanhar o marido Berto. É-lhe imposto mudar de país e de casa e, pouco a pouco, estas movimentações vão mexendo com sua vida. O diário de Eva revela o crescente interesse dela pela cunhada Noelle e suas autodescobertas – tanto quanto ao seu corpo, quanto aos seus sentimentos – se revelam:

“A cabeça de Eva ia sendo ocupada por zeros e mais zeros que engordavam as somas de uma vida inteira. As cifras abririam as portas do mundo para ela e Noelle. A cunhada teria os carros que quisesse, os brilhantes que quisesse, ela fecharia a Chanel se Noelle pedisse. Juntas conquistariam o universo. Ela e Noelle, ela e Noelle, Noelle, Noelle, Noelle. Agora eram as letras daquele nome magnífico que lhe tomavam a mente e lhe enchiam o corpo de prazer.” (página 83)

(In)cômodos fornece dados interpretativos a partir do nome. Não é um trocadilho simplório. Ao fornecer duas leituras superpostas – incômodos dos personagens por algum motivo e “em cômodos” anuncia uma espécie de identificação de problemas em cada aposento – anuncia um tema que caminha para os lados de Viagens ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre.

A vida de duas mulheres numa relação homoafetiva não é fácil, como qualquer relação, aliás:

“É fácil ignorar, quem está sendo agredida sou eu.” Ela, muda. “Nunca minha mãe, meu pai, qualquer pessoa da minha família te tratou mal. Sabe por quê? Porque eu me dou ao respeito, eu saí de casa de verdade, eu cortei o cordão. Mas você, você... “Eu o quê?”, corta ríspida, se levantando, não deixando fôlego, “tá aí brigando sozinha. Aliás você é mestre em brigar sozinha”, e sai da sala. E me larga falando, bufando. Que ódio, ódio. Uma frase. Eu só quero ouvir dela uma frasezinha, mas ela não diz, nunca diz. Por que a pessoa que a gente ama nunca fala o que a gente quer, na hora que a gente quer?” (página 92)

É uma relação cheia de não ditos, de termos e incômodos em suspensão. E as coisas tomam proporções enormes exatamente no banheiro em obras. Já foram trocados todos os canos velhos, mas a infiltração continua. Nesse cômodo com vazamento, acontece o vazamento de mágoas e desentendimentos:

“será que você vai finalmente se realizar cuidando de mim doente? Será que a reforma do maldito banheiro vai pro espaço por causa do barulho que vai incomodar o seu amorzinho?”, e esmurra o peito como se fosse um tambor, e bate a cabeça na parede e, e... e aquilo vai subindo, subindo, subindo até que vomito um CHEGA. Vindo do estômago, “CHEGA, eu não quero mais você, sua louca. Saia da minha frente. Eu te adoeço? O que significa isso? Em bom português, eu te adoeço e você me adoece. Não me coloque no meio da tua loucura. CHEGA, abre essa porta que eu quero sair.” (página  107)

Do tempo em que voyeur precisa de binóculos é uma boa coletânea. Luize Valente maneja bem o conto, mas não tenho como comparar gêneros tão diferentes: conto e romance. A ambientação dos anos sessenta nos deixa a sensação... sensação? Não. Deixa-nos a certeza de que, afinal, muito pouca coisa mudou de lá para cá. Os problemas de relacionamento humano continuam os mesmos. Tudo bem, um voyeur hoje não precisa mais de binóculos. Tem tralhas tecnológicas para isto: webcams, Instagram, Facebook, Tik Tok, invasão de smartphones, et cetera.

Pensando bem, talvez nem seja mais necessária a existência de voyeurs: as próprias pessoas se encarregam de expor suas intimidades em qualquer mídia social, para o deleite de olhos ansiosos. Parece, tal exposição confere aos expostos seus habituais quinze minutos de fama, como queria Andy Warhol.

Ah, e estamos em plena era das fake news...

Nenhum comentário: