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domingo, 18 de fevereiro de 2024

Resenha nº 215 - As Maravilhas, de Elena Medel



Título original: Las Maravillas

Autora: Elena Medel

Tradutora: Rubia Goldoni

Editora: Todavia/TAG Livros

Copyright: 2020

ISBN: 978-65-5692-335-2

Gênero literário: Romance

Origem: Literatura espanhola

 

Elena Medel é escritora espanhola, nascida na cidade de Córdoba, em 29/04/1985. Estudou Filologia Hispânica na Universidade que leva o nome da cidade. Dirige a revista de poesia La Bella Varsovia. Tem trabalhos de poesia, conto, romance e ensaio publicados.

Com obras traduzidas para vários idiomas, é uma escritora em ascenção, tendo recebido o prêmio Fundación Princesa de Girona (2016). Seu único romance, por enquanto, é este As Maravilhas, publicado no Brasil pela editora Todavia e, neste caso, com edição exclusiva pela TAG – Experiências Literárias.

Duas mulheres fazem parte da história contada por Medel: María e Alícia. Outra mulher – Carmen – da qual pouco se fala, é filha de María e mãe de Alícia. María veio viver em Madri, pois precisava de um emprego e, por isso, abandona a casa dos pais, deixando para trás, também, sua filha Carmen:

“O bebê cheira a cigarro. A primeira coisa que chama a atenção de María quando pega Carmen no colo é seu cheiro, tão diferente do de outros bebês. A filha da vizinha dos seus tios às vezes cheira a cebola, por mais que a mãe passe colônia nela para disfarçar; já o menino da casa – da casa em que ela trabalha, corrige-se María; não de sua casa, que não existe –, porque não conhecia nada parecido, mas agora o reconhece nas lojas, nos cafés. A filha da vizinha brinca com as anelas à tarde, e o menino vive entre o berço e o moisés na sala; Carmen também percorre a casa a seu modo, entre o quarto e o colo da avó, sentada à mesa grande. María percebe que talvez o cheiro de cigarro tenha a ver com sua família. Sua mãe fuma na cozinha, seu pai fuma o tempo todo, e ela suspeita que seu irmão Chico começou a fumar no quarto, pensando que ali ninguém o descobriria. Carmen cheira a cigarro; talvez María pense que a filha tenha o cheiro da casa de dois quartos, ou talvez pense apenas em como é estranho estar dormindo ali, com ela.” (página 19)

Deste parágrafo selecionado podemos retirar algumas informações sobre María. Ela é pobre, precisa trabalhar na casa dos outros, não tem uma casa sua. Possui um irmão, Chico além da mencionada filha, Carmen. Este fato acontece no ano de 1960.

O livro se inicia com o arco narrativo focado em Alícia:

“Com uma única nota no bolso, Alicia observa a praça quase deserta, os poucos carros e os poucos pedestres. Mais alguns minutos, e o dia vai clarear. Quando pode escolher, Alicia sempre prefere trabalhar de tarde: não precisa acordar cedo, pode passar a tarde na loja e voltar direto para casa. Nando reclama nessas semanas, na verdade, em quase todas; ela se desculpa dizendo que foi uma colega que pediu: tem dois filhos pequenos e para ela o turno da manhã é melhor. Assim fica livre nas primeiras horas do dia e evita as tardes no bar com os amigos dele – que também são os dela, por força da rotina – as tapas baratas, os bebês entre guardanapos sujos. Alicia achava que a maternidade alheia acabaria com esse hábito, mas as mães se ausentam do bar até as crianças pegarem no sono, às vezes volta se têm certeza de que dormem profundamente, e Nando se aborrece se ela tenta pular o ritual.” (páginas 9/10)  

A narrativa coloca em cena uma Alicia que precisa contar os centavos; ela tem de fazer uma retirada num dos caixas eletrônicos da estação Atocha. É uma trajetória financeira descendente, pois esta mesma Alicia, quando ainda em idade escolar, é descrita da seguinte maneira:

“No caso de Alicia, ainda não tinham conseguido montar nenhuma história. Tudo nela as desnorteava; escrevia sem erros de ortografia; sabia de cor datas e nomes de personagens históricas, não bocejava na aula. Não entenderam como podia ter repetido de ano, mas o que mais as desnorteava era o que s passava fora de sua cabeça: quer usasse um par de tênis diferente a cada dia da semana, quer fizesse questão de exibir a marca do seu jeans.” (página 38)

As maravilhas, aludidas pelo título do romance, fazem referência às coisas maravilhosas observadas pelas colegas Celia e Inma, quando vão à casa de Alicia, fazer um trabalho escolar. Claramente, a anfitriã tem uma condição de vida muito melhor do que as convidadas.

O que teria acontecido, tanto no caso de Maria – avó de Alícia – como no da própria Alícia, empobrecida, depois?

O pano de fundo é a situação sociopolítica da Espanha. Como veremos, este país é sacudido por periódicos conflitos, quer no âmbito político – no embate entre esquerda e direita por permanência no poder –, quer por problemas sociais.

Há uma guerra civil, compreendida entre 1936 e 1939. A Espanha era então uma república parlamentarista, com a maioria dos parlamentares escolhidos de esquerda, com um primeiro-ministro socialista.  Acontece um golpe de estado, liderado pelo general Franco. Os golpistas tomam o poder em 1939, iniciando a ditadura franquista.

Exercendo um fascismo de direita, sob o regime de Franco a Espanha tem de conviver com um cardápio de arbitrariedades, terror violento. Os opositores do ditador são executados. Para vencer a guerra civil, Franco tem de contar com a ajuda – que mais tarde será temerária – de Hitler e de Mussolini. Portanto, quando explode a Segunda Guerra Mundial, Franco compromete seu apoio aos fascistas.

Ao terminar o conflito mundial, em plena época da chamada guerra fria, a Espanha está diante de um complexo cenário no mundo: o antigo inimigo, os Estados Unidos, tornam-se, agora, aliados do país ibérico. A Espanha era fascista sob o jugo de Franco, mas era também anticomunista. Os EUA desenvolviam alianças que evitassem o perigo comunista na Europa. A ditadura franquista só termina com a morte do seu líder, em 1975.

Na revista que acompanha a edição da TAG, em um texto informativo assinado por Paula Sperb, há um esclarecimento:

“Em As Maravilhas, aparecem as históricas eleições gerais de 1982, que consagram o socialista Felipe González, do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol), como presidente. Maria participa de uma celebração com seus companheiros do grupo de bairro. Nos anos 1990, no entanto, o país voltou a ser governado por partidos de direita.”

A Espanha mergulha numa crise econômica, que vem de 1990 e dura até os dias atuais. No romance, a perda de emprego, o empobrecimento das classes sociais é o pano de fundo da narrativa, o motivo pelo qual Alicia, que inicialmente é de uma classe mais abastada, termina na estação Atocha de maneira precária.

“Alicia custa a atravessar as catracas: não é que os trens para o centro passem cheios, mas é tanta gente descendo na estação Atocha Renfe que ela custa a alcançar o vagão. Amaldiçoa a colega que lhe pediu para cobrir seu horário por um tempo – primeiro por uma hora, depois duas ou três –, porque a amiga que olhava seus filhos não tinha aparecido e obrigou Alicia a sair do trabalho mais tarde que o normal. Ela sabia da manifestação, tinha visto de manhã as mulheres na Cuesta de Moyano, mas não imaginava que tivesse algo a ver com ela: só quer voltar logo para casa, comprar alguma coisa no mercado para jantar, e que ninguém a incomode.” (página 181)

Esta movimentação, que apanha Alicia em meio ao seu dia de trabalho, é a Greve das Mulheres, em 2018. Deixemos Paula Sperb, no mesmo artigo contextualizador da Revista da TAG, nos explicar:

“No romance, o Dia Internacional da Mulher marca um dos momentos mais importantes da trama. As manifestações de mulheres ocorreram em escala global naquele ano. Na Espanha, porém, elas reivindicaram também respostas aos problemas econômicos. “No contexto espanhol, a data adquire um caráter singular porque é convocada uma greve geral de trabalhadores e essa greve é convocada pelas mulheres. Promover a greve naquele momento tinha dois sentidos: o primeiro é o de afirmação de gênero e luta por igualdade: o segundo, o de combate à precarização do trabalho, que afeta todos, mas especialmente as mulheres”, explica Fraga.”

Em As Maravilhas, Alicia não é uma alienada; igualmente, María não era uma alienada. Ambas, em momentos diferentes da história contada, não participam diretamente dos movimentos os quais lhes são contemporâneos e do interesse delas. É que estão ocupadas, dirigem toda a sua força em sobreviver. Lutam a cada dia pelo prato de comida e por isso, não podem participar de greves, por mais importante sejam elas.

Se forem mandadas embora por ausência ao trabalho, será muito pior para elas. Têm dependentes, têm filhos a quem alimentar. Esta é a dura realidade de que se esquecem os militantes de diversas greves – mesmo as mais justas – há pessoas a quem falta tudo, até o sustento para se ter a possibilidade de lutar por aquilo em que se acredita.

As Maravilhas é o tipo de leitura que necessita fortemente de contextualização, para que possa ser entendido em profundidade. O pano de fundo da história recente da Espanha não pode ser descartado. Ajunte-se a isto a questão do direito feminino de escolha: cuidar ou não cuidar dos outros; porque, via de regra, esta é uma “função social” imposta às mulheres. Faz parte da cultura de “toda mulher nascer para ser mãe”.

Frequentemente, penso eu, desconsidera-se a individualidade, em favor de uma construção histórica. Existem mulheres que não têm a menor inclinação para a maternidade, como existem homens que não têm a menor inclinação para a paternidade. E as construções históricas, não esqueçamos, são feitas pelos dominantes. E quem são os dominantes, nesta questão? Os homens.

Se você, meu caro leitor, gosta de romances com forte contextualização política e histórica, leia este livro. Elena Medel pode ser uma romancista iniciante, mas este seu As Maravilhas é uma grata constatação. 

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