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quinta-feira, 28 de abril de 2022

Resenha nº 190 - Mal-Entendido em Moscou, de Simone de Beauvoir

 



Título original: Malentendu à Moscou

Autora: Simone de Beauvoir

Tradutora: Stella Maria da Silva Beartaux

Editora: Folha de São Paulo

Copyright: 2017

ISBN: 978-85-7949-334-8

Gênero literário: novela

Origem: Literatura francesa

 

Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir nasceu em Paris, em 09/01/1908 e faleceu na capital francesa, em 14/04/1986. Escritora, intelectual, filósofa ligada ao movimento existencialista, ativista política, feminista e teórica social. Simone, porém, não se considerava, propriamente, filósofa.

Filha de um casal proveniente da aristocracia francesa decadente, Simone de Beauvoir estudou matemática no Instituto Católico de Paris; literatura e línguas, ela as cursou na Sorbonne (Universidade de Paris). Nesta última instituição de ensino, conheceu os filósofos Merleau-Ponty, René Maheu e Jean-Paul Sartre, com quem teve um relacionamento aberto por toda a sua vida.

Ela escreveu romances, contos, ensaios, biografias, autobiografia, monografias sobre filosofia. Talvez a sua obra mais conhecida seja O Segundo Sexo, um tratado minucioso a respeito da opressão das mulheres, publicada em 1949. Envolveu-se, também, em um polêmico manifesto, juntamente com seu companheiro, Jean-Paul Sartre e Michel Foucault, que propunha alteração de idade para que a mulher pudesse ter relações sexuais.

Escreveu várias obras: 1943, A convidada (L'Invitée), romance; 1944, Pyrrhus et Cinéas, ensaio; 1945, O sangue dos outros (Le Sang des autres), romance; 1945, Les Bouches inutiles, peça de teatro; 1946, Tous les hommes sont mortels, romance; 1947, Pour une morale de l'ambiguïté, ensaio; 1948, L'Amérique au jour le jour; 1949,  O segundo sexo, ensaio filosófico; 1954, Os mandarins (Les Mandarins), romance; 1955, Privilèges, ensaio; 1957, La Longue Marche, ensaio; 1958, Memórias de uma moça bem-comportada (Mémoires d'une jeune fille rangée), autobiográfico; 1960, A Força da idade (La Force de l'âge), autobiográfico; 1963, A força das coisas (La Force des choses); 1964, Une mort très douce, autobiográfico; 1965, Malentendu à Moscou (Mal-Entendido em Moscou); 1966, Les Belles Images, romance; 1967, A mulher desiludida (La Femme rompue), novela; 1970,  A velhice (La Vieillesse), ensaio; 1972, Tudo dito e feito (Tout compte fait), autobiográfico; 1979, Quand prime le spirituel, romance; 1981, A cerimônia do adeus (La Cérémonie des adieux suivi de Entretiens avec Jean-Paul Sartre: août - septembre 1974), biografia.

Este é o meu primeiro contato com obras de Simone de Beauvoir. E já vou revelando: este Mal-Entendido em Moscou me deixou um travo incômodo nos olhos, na mente. Pequena na extensão, esta novela, a meu ver, foi pensada nos mínimos detalhes.

Antes de tudo, porém, como este blogue se destina a todos os leitores, talvez o termo novela deixe muitos em dúvida. Trata-se de um gênero textual de caracterização meio imprecisa, colocado entre os romances e os contos. Impreciso, porque não há consenso entre os estudiosos sobre o que, afinal de contas, caracterizaria este gênero literário. Não é apenas extensão do texto.

Seja como for, esta obra é classificada como novela. Romance não é, nem conto. Então, fiquemos com a classificação costumeira, mal não faz.

Os eventos se passam na cidade russa de Moscou e o livro se inicia do seguinte modo:

“Ela ergueu os olhos do livro. Que tédio, todas essas arengas banais sobre a não comunicação! Quando se quer comunicar, mal ou bem, consegue-se. Concordo que não seja com todos, mas com duas ou três pessoas, sim. Sentado no assento ao lado, André lia um romance policial da Série noire. Ela apaziguava o mau humor, os arrependimentos e as pequenas preocupações dele; sem dúvida André também tinha segredos, mas, no geral, eles se conheciam muito bem. Ela espiou pela janela: florestas escuras e prados claros a perder de vista. Quantas vezes atravessaram a região juntos, de trem, de avião, de barco, sentados lado a lado, com um livro nas mãos? Muitas vezes ainda deslizariam lado a lado em silêncio sobre o mar, por terra e pelo ar. Esse instante possuía a doçura de uma lembrança e a alegria de uma promessa. Teriam eles trinta ou sessenta anos? Os cabelos de André ficaram brancos prematuramente: antes, isso era charmoso, a neve que realçava o frescor moreno de sua tez. E ainda o era. A pele havia engrossado e enrugado, como couro velho, mas os sorrisos da boca e dos olhos mantinham seu brilho.” (página 9)

Este casal, descrito acima, é formado por dois professores aposentados, em torno de sessenta anos de idade. Ela, Nicole; ele, André. Estão visitando a capital da Rússia, acompanhados de Macha, filha do primeiro casamento de André, residente em Moscou.

O narrador desta obra se expressa em terceira pessoa, ora selecionando o marido, ora dando voz a Nicole. Esta alternância de pontos de vista é muito bem-feita e, por ela, ficamos sabendo o que pensam um e outro. Nicole reflete mais sobre os sentimentos, enquanto André se expressa mais sobre política.

Vejamos uma amostra de tais disposições:

Nicole

“Com uma certa apreensão ela olhava para a pista que se aproximava. Um futuro infinito que poderia ser interrompido de uma hora para outra. Conhecia bem estes saltos que iam de uma segurança beatífica a pontadas de pânico. A terceira Guerra explodiria, André teria câncer de pulmão – dois maços de cigarro por dia eram muito, eram demais – ou o avião se espatifaria no chão.” (página 10)

André

“Ele fora educado no culto a Lenin; sua mãe, com oitenta e três anos, ainda militava no Partido Comunista. André não entrou para o partido; mas, através de ondas de esperança e desespero, sempre acreditou que a União Soviética detinha as chaves do futuro e, com isso, desta época e do seu próprio destino. Entretanto, mesmo nos anos obscuros do stalinismo, nunca teve a impressão de compreendê-la tão mal. A atual estada ali poderia esclarecê-lo?” (página 13)

As dificuldades da velhice e as dificuldades da política são os dois temas que correm juntos. Ao começar a leitura do livro, achei que seriam temas paralelos, isto é, seguiria cada um pelo seu caminho. Enganei-me e isto ficou claro apenas lidas mais algumas páginas. Entrelaçam-se de tal forma estas duas direções que uma impacta a outra. Mais precisamente, os pareceres e discussões de André e Nicole, e mesmo Macha, sobre questões políticas e de sentimentos são válidas a partir do amadurecimento e idade que têm, bem como do lugar em que estão.

É bom lembrar que André e Nicole se movem nos anos 60, no panorama da chamada guerra fria – período em que, terminada a Segunda Guerra Mundial, o bloco capitalista e o bloco comunista procuravam estabelecer sua hegemonia sobre o mundo. Em 1969, explode o conflito sino-soviético; Mao Tse-tung subira ao poder na China e tinha ideias próprias sobre o que seria o comunismo, em confronto direto com as ideações da Rússia.

Em suas reflexões, André se mostra desesperançado:

“A bomba, em 1948, parecia uma ameaça abstrata: hoje ela é uma angustiante realidade. Havia pessoas que não se incomodavam: “uma vez que eu morra, que a terra sobreviva ou não, não é problema meu”. Um amigo de André chegara a dizer: “Já que é assim, eu me arrependo menos pensando que não deixo nada para trás.” Quanto a ele, se mataria assim que soubesse que a terra iria explodir. Ou simplesmente que toda a civilização seria destruída, que a continuidade da história seria interrompida e que os sobreviventes – chineses, sem dúvida – recomeçariam do zero. Talvez fizessem o socialismo triunfar, mas o sistema deles não teria nada a ver com o que seus pais, seus camaradas e mesmo André haviam sonhado. Entretanto, se a União Soviética optasse pela coexistência pacífica, o socialismo não seria um projeto para o futuro. Quanta esperança perdida! Na França, a Frente Popular, a resistência e a emancipação do Terceiro Mundo não fizeram o capitalismo recuar nem um centímetro. A Revolução Chinesa gerou o conflito sino-soviético. Não, o futuro nunca pareceu tão desolador a André. “Minha vida não terá servido para nada”, pensou. Tudo o que havia desejado era que sua vida se inscrevesse de modo útil em uma história que levasse os homens à felicidade. Talvez um dia conseguissem. André tinha acreditado por tempo demais para não continuar acreditando mais um pouco: mas isto ocorria através de desvios que levariam a história a deixar de ser sua.” (página 29)

A seu turno, Nicole tem conclusões tão dramáticas quanto André. Observando o marido dançar com a filha Macha, a mulher se sentiu incomodada não só pela dança, mas porque pai e filha mostravam uma cumplicidade, um entendimento além do que o relacionamento conjugal proporcionava a Nicole:

“Pouco a Pouco ela votara à sua antiga circunspecção: dois velhos casados como dois pombinhos, isso seria ridículo. No entanto, Nicole sentia um leve ciúme daquela cumplicidade entre ele e Macha, e se criticava por não ter conservado em sua relação com André aquela leve ternura. Reprimida pela antiga rigidez, que nunca a vencera por completo, porque nunca tinha aceitado inteiramente sua condição de mulher. (E, no entanto, nenhum homem soubera, mais que André, como ajudá-la a se assumir.)” (páginas 42/43)

O título Mal-Entendido em Moscou, portanto, é ambíguo. O mal-entendido refere-se tanto à interpretação de Nicole, a de que “está sobrando ali, na relação entre André e Macha”, quanto à de André, “a solução socialista proposta pela União Soviética não obtivera qualquer relevância duradoura para o mundo”.

O ritmo, a respiração do texto de Simone de Beauvoir são tensos. As descrições, quando ocorrem, são curtas e precisas; as reflexões, as conclusões dos personagens são colocadas sem volteios.

A escolha do gênero literário novela não foi por acaso. Para uma história de fundo psicológico, analítica, fundiu-se muito coerentemente fundo e forma, sem querer reviver aquela velha dicotomia que animou muito discurso acadêmico.

Mal-Entendido em Moscou, a princípio, fazia parte da coletânea de três contos, A Mulher Desiludida. Simone, entretanto, optou por substituir, naquele livro, o texto abordado nesta resenha por A Idade da Discrição. Pôde, assim, trabalhar com maior coerência, já que a coletânea era de contos e o texto objeto desta resenha é uma novela.

Tenho, em uma prateleira, um box aguardando leitura. Trata-se de escritoras francesas: Simone de Beauvoir novamente, Marguerite Yourcenar e Marguerite Duras. Que time feminino! Mas, esta é uma outra história.

Ao leitor que me dá o prazer da sua leitura, aconselho firmemente este Mal-Entendido em Moscou. Literatura não é só fruição; é também reflexão disfarçada sob uma história. Aconselho-o, por isso mesmo, a leitores que gostem de textos mais reflexivos, analíticos. São apenas 74 páginas, nesta minha edição da coleção Mulheres na Literatura, lançada pela Folha de São Paulo.  

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