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quinta-feira, 17 de março de 2022

Resenha nº 186 - Nós, de I. I. Zamiátin

 



Título original: MЫ

Autor: I. I. Zamiátin

Tradutora: Gabriela Soares

Editora: Aleph

Copyright: obra em domínio público

ISBN: 978-85-7657-311-1

Gênero literário: Romance (ficção científica)

Origem: Literatura russa

 

Ievguêni Ivanóvitch Zamiátin nasceu na Rússia, em 01/02/1884 e faleceu em Paris, em 10/03/1937. Seus pais foram Ivan Zamiátin, sacerdote ortodoxo e professor, e Maria Zamiatina, musicista. Consta que ele se casou com Ludmila Zamiatina, mas não consegui encontrar o ano do evento. O escritor estudou Engenharia Naval na cidade de São Petersburgo, no período entre 1902 e 1908. 

Começou a escrever ficção como passatempo, após ter concluído o ensino superior. Durante seus estudos, apoiou a revolução bolchevique. Preso durante a revolução russa em 1905, foi exilado; retornou à cidade peterbuguense de modo clandestino, vivendo ali até 1906, quando partiu para a Finlândia para conclusão de estudos.

Preso outra vez em 1911, conseguiu anistia em 1913. Pouco tempo depois, foi para a Inglaterra, supervisionar a construção de navios quebra-gelo nos estaleiros Newcastle-upon-Tyne, na Inglaterra. Desta sua estada inglesa resultou um conto, The Islanders (Os Ilhéus), em que faz críticas ao modo de vida britânico.

Progressivamente, foi se tornando cada vez mais crítico do regime socialista e, como consequência, seus trabalhos foram severamente censurados. Para se ter uma ideia, Nós – obra aqui resenhada – só obteve sua primeira edição em inglês. Na verdade, esta distopia nunca foi publicada em solo russo.

Nós é livro considerado, hoje, o pai das distopias. A tempo, distopias são histórias de ficção científica que têm uma visão catastrófica do futuro da humanidade. Reportam-se, no mais das vezes, a civilizações (ou o que restou delas) pós-apocalípticas. Nós foi publicado em 1920, como disse, na Inglaterra. É extraordinária a semelhança com outras distopias famosas, como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, 1984, de George Orwell, Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, Farenheit 451, de Ray Brudbury e, ainda, teria influenciado Anthen, de Ayn Rand. Não é pouca coisa e por isso, merece ser lido.

Mas, quais foram as influências recebidas pelo próprio Zamiátin, além daquelas de H. G. Wells, de quem foi tradutor para o russo? Sua distopia tem digressões sobre moral e religião muito próximas às de Dostoiévski. Este sempre foi um “cristão atormentado”, oscilando entre crer e não crer nas propostas do cristianismo. Aponto, por exemplo, o trecho em que o narrador de Zamiátin – D-503 – nos relata no capítulo 36:

“Não lhe parece que o papel dos que estão no alto é o mais difícil, o mais importante? Se não fosse por eles, seria possível realizar toda essa magnífica tragédia? Eles foram vaiados pela multidão ignorante: mas, por tudo isso, o autor dessa tragédia, Deus, devia tê-los recompensado ainda mais generosamente. O próprio Deus cristão e misericordioso queimava lentamente no fogo do inferno todos os insubmissos. Ele não é um carrasco? E não são menos os queimados pelos cristãos nas fogueiras do que os cristãos queimados? E, contudo, compreenda isso, contudo, esse Deus, ao longo dos séculos foi glorificado como o Deus do amor. Absurdo? Não, ao contrário: é uma permissão escrita com sangue, do inerente juízo humano.” (página 290)

As pessoas não são chamadas pelos seus nomes. Nesta sociedade, elas recebem números e assim mesmo são referidas – números. Assim, temos I-330, uma mulher com quem D-503 se relaciona, com ideias, a princípio, disfarçadamente subversivas. Há também O-90, a quem o nosso protagonista dedica um afeto não muito bem compreendido por ele mesmo.

Numa passagem bastante elucidativa, logo após ter tido uma conversa com I-330, o narrador nos diz:

“Essa mulher me afetava da mesma maneira desagradável que um termo irracional e irredutível que se intromete ao acaso numa equação. Fiquei feliz de passar algum tempo a sós com a querida O.

De mãos dadas, passamos quatro avenidas. Na esquina, ela teve de virar à direita, e eu, à esquerda.

— Hoje eu gostaria muito de ir para casa com você e fechar as cortinas. Hoje, agora mesmo... – O-90 levantou timidamente para mim os olhos redondos, de um azul cristalino.

Graciosa. Mas o que eu poderia dizer? Ela havia estado em minha casa ainda ontem e sabia tão bem quanto eu que nosso próximo dia sexual seria depois de amanhã. Esse era simplesmente mais um caso de seu “pensamento antecipado”, como acontece (e às vezes é prejudicial) com uma faísca antecipada num motor.

Ao despedir-nos, duas... Não, serei preciso, três vezes beijei seus maravilhosos olhos azuis, não maculados por nenhuma nuvem.” (página 26)

Sim, é isto mesmo, leitor. Os números (cidadãos) têm “horas particulares” e, dentro destas, alguns dias em que podem fechar as cortinas contras as paredes de vidro de suas residências e terem o que D-503 chamou de “dia sexual”:

“Naturalmente, tendo submetido a Fome (algebricamente=a soma dos bens externos) o Estado Único conduziu uma ofensiva contra outro senhor do mundo: contra o Amor. Finalmente, esse elemento também foi vencido, isto é, organizado e matematizado, e por volta de trezentos anos atrás foi promulgada nossa histórica Lex Sexualis: “todo número [leia-se pessoa] tem direito a qualquer outro número como produto sexual”.

Bem, o que se segue é apenas técnico. No laboratório do Departamento Sexual examinam-nos e calculam exatamente a composição de nossos hormônios sexuais no sangue, e produzem para nós uma Tábua apropriada dos dias sexuais. Em seguida, fazemos uma declaração de que queremos utilizar nossos dias com esse ou aquele número, e recebemos o devido talão cor-de-rosa. Isso é tudo.” (páginas 42/43)

A cultura, os costumes e desejos da civilização antiga, antecedente à implantação do Estado Único são considerados nocivos, desorganizadores, causadores de infelicidade. Em poucos termos, todo individualismo foi banido. Obras de arte, discursos, poesias só podem existir se exaltarem as qualidades deste Estado, pois

“O homem só deixa de ser uma besta selvagem quando construiu a primeira parede. O homem só deixou de ser um selvagem quando construímos o Muro Verde, quando com esse Muro isolamos nossas máquinas, nosso mundo perfeito, do insensato e repugnante mundo das árvores, pássaros, animais...” (página 132)

As cidades são cercadas por muros, apartando delas os rebelados, os insensatos que ousaram resistir ao término da dor, da inveja, do crime. Isoladas em células administráveis e sobre elas, paira a figura do Benfeitor – alguém que garante o funcionamento das mínimas peças deste estado totalitário – tais cidades eliminaram quaisquer diferenças, uniformizando todos os humanos, certamente sem paixões, mas igualmente acríticos, acéfalos, submissos. Em suma, sem possibilidade de evolução.

Uma das poucas figuras admiradas da sociedade antiga é Taylor, autor do taylorismo. Num artigo buscado na Internet, intitulado “Entenda o que é o taylorismo, como surgiu e quais são seus princípios”, assinado por Thiago Coutinho, há explicação sobre em que consiste tal termo:

“O taylorismo é um método de produção idealizado pelo teórico Frederick Winslow Taylor, no final do século XIX. Ele também é conhecido pelo nome de Administração Científica.

Ele é marcado por uma forte racionalização do trabalho, sendo a especialização dos colaboradores a expressão máxima desse conceito. Isso quer dizer que cada trabalhador, ao invés de executar várias tarefas, deve ser treinado e capacitado para somente algumas delas, de maneira a executá-las melhor.

Podemos considerar isso como a aplicação do método científico na organização do trabalho. Por isso o nome "administração científica". Portanto, cada aspecto do trabalho deve ser planejado cientificamente, com o objetivo de maximizar a produção.

Além disso, a administração científica de Taylor ainda dizia que era tarefa dos gerenciadores da empresa desenvolverem sistemas de produção apropriados para alcançar a eficiência econômica.

Apesar dos termos "administração científica" e "taylorismo" serem utilizados como sinônimos, é mais preciso considerar o taylorismo como uma primeira forma de utilização de métodos científicos na administração.”

Ficam evidentes os motivos para a exaltação de Taylor:

“Sim, esse Taylor foi, sem dúvida, o mais genial dos antigos. É verdade que ele não chegou a pensar em estender seu método para todas as esferas da vida, para cada passo, dia e noite. Não soube integrar seu sistema às 24 horas do dia. Mas, de qualquer forma, como eles puderam escrever uma biblioteca inteira sobre um tal de Kant, sem quase notar Taylor, esse profeta que conseguiu enxergar dez séculos à frente?” (página 57)

A completa aceitação dos postulados do Estado Único, pelo narrador em primeira pessoa – D-503 – é algo que nos irrita, como leitores. Sabiamente instituído por Zamiátin, este narrador “colado” ao que se quer denunciar, torna-se uma ferramenta poderosa, do ponto de vista discursivo, contra o Estado Único. Esta submissão derrama-se para fora da obra literária, articula-se com o nosso conhecimento de mundo de leitores, fere-nos os conceitos morais e libertários:

“A tabuada de multiplicação é mais sábia e absoluta do que o antigo Deus: ela nunca erra, entenda, nunca erra. E não há cifras mais felizes do que as que vivem pela lógica eterna das leis da tabuada de multiplicação. Sem variações, sem erros. Existe apenas uma verdade e um caminho verdadeiro; e essa verdade é o dois vezes dois, e o caminho verdadeiro é o quatro.” (página 98)

D-503 é o construtor da “Integral” – uma nave espacial que terá como tarefa grandiosa levar o Estado Único ao restante do universo, obrigando – que paradoxo! – todos os seres a serem felizes.

O romance é o gênero literário que permite digressões de um personagem, de um narrador. Entretanto, tais digressões não podem se afastar do tema central, sob pena de perda de coerência, o que será fatalmente notado pelo leitor.

No capítulo 28 há uma dessas digressões, importante para se entender até onde vai o domínio da ideologia do Estado Único:

“Então há duas forças no mundo: a entropia e a energia. Uma tende ao repouso beatífico, ao equilíbrio feliz; a outra tende à destruição do equilíbrio, ao doloroso movimento sem fim. A entropia, os nossos, ou melhor, os seus antepassados, os cristãos, adoravam-na como a um Deus. E nós, os anticristãos, nós...” (página 224)

A propósito desta postura anticristã, dentro do projeto literário de Nós é perfeitamente compreensível. O que caracteriza o Antigo Testamento é exatamente a Justiça, a Ordem. Entretanto, o Novo Testamento tem como tônica a nova revolucionária do Amor. Não mais aquele Deus sisudo, punitivo e inflexível, mas outro, o da compreensão, do Amor Incondicional, que nos diz, pela boca de Jesus, seu filho, que “o que fazeis ao mais pequenino é a mim mesmo que o fazeis”.

Não é demais lembrar, todos os regimes ditatoriais têm verdadeiro horror às expressões de arte e a seus criadores. É que sabem muito bem, a forma mais definitiva de se dominar as pessoas é lhes possuindo a mente, a consciência. Abafado o senso crítico, a segurança do ditador se instaura.

Excelente livro. A edição que tenho, da Editora Aleph – graficamente muito bonita, por sinal – conta com uma carta de Zamiátin a Stálin, em que o autor solicita a permissão de sair da Rússia e, ainda, uma análise de ninguém menos que George Orwell. Autor do aclamado 1984, ele é de opinião que, embora Admirável Mundo Novo e Nós tenham tantas semelhanças, Aldous Huxley tem menos consciência política que Zamiátin. Não entro nesta discussão. Basta-me reconhecer que tanto um quanto o outro são duas legítimas análises sociais.

Na minha opinião, mesmo as mais delirantes obras de ficção científica são sobre os humanos e suas ambições, seus abismos e altiplanos. Somos seres humanos. Por conseguinte, tudo o que produzimos nos reflete, conta a nossa própria história. Quer como indivíduos, quer como sociedade.

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