Título em português: O Físico
Autor: Noah Gordon
Tradutor: Aulyde Soares Rodrigues
Editora: Rocco
Edição: N/c
Copyright: 1986
ISBN: 85-325-0303-9
Gênero: Romance
Literatura americana
Bibliografia do autor: O Rabino, 1965; O Comitê da Morte, 1969; O
Diamante de Jerusalém, 1979; O Físico,
1986; Xamã, 1992; A Escolha da Dra. Cole, 1996; O Último Judeu, 2000; Sam e Outros Contos de Animais, 2005; La Bodega, 2007 (no Brasil, todos os
títulos publicados pela Editora Rocco).
Noah Gordon nasceu em Worcester,
EUA, em 11/11/1926. Serviu no exército, durante Segunda Guerra Mundial; após
esta conflagração, entrou para o curso de pré-medicina, por pressão dos pais.
Cursou apenas por um semestre. Transferiu-se para o curso de jornalismo e se
formou em 1950. Atuou como editor em algumas revistas, tendo publicado seu
primeiro romance O Rabino em 1965.
Seus trabalhos falam a respeito da história da medicina e ética médica; mais
recentemente, passaram a focar a inquisição e a herança cultural judia.
Há muito tempo tenho, na minha
estante, os três volumes que compõem esta saga da história da medicina: O Físico, Xamã e A Escolha da Dra. Cole.
Por motivos completamente obscuros para mim, só agora li o primeiro volume, O Físico. Tenho muitos livros na fila,
para ler – nada muito organizado – não se constituindo este, portanto, um bom
motivo para que o volume ficasse me esperando.
Quinhentas e noventa páginas
lidas em quatro dias e meio dão bem a imersão que foi esta leitura. E não
consigo realizar uma tal imersão sem prazer estético. Leituras a que me obrigo
são feitas com disciplina, mas levam tempo. O
Físico é dessas obras que antes mesmo
de as ler, já sabemos do que tratam, mesmo em linhas gerais. Pertencem já ao
imaginário coletivo, ao mundo das referências literárias.
A história se passa na Europa do
Séc. XI, mais precisamente começa na Inglaterra e avança à Pérsia (do grego
transliterado Persís), país sucedido,
nos dias de hoje, pelo Irã e retorna à Inglaterra, terminando nas terras
distantes da Escócia. A Pérsia sempre fora nominada pelo seu próprio povo como
Irã (Ērānšahr significa “País dos Arianos” ou “País dos Iranianos”); em 1934,
Reza Palávi, por decreto, restituiu o nome Irã para seu país.
A palavra físico, do título, não tem nada a ver com o conceito de Física – um
dos ramos da ciência moderna. Físico era o nome dado aos profissionais formados
em medicina, na Idade Média. Entretanto, o livro não trata da história da
medicina, embora luminares desta profissão sejam citados no livro. O Físico vai nos pegar pela mão e nos
levar, entre aventuras, pelo tema da dificuldade que tais profissionais tiveram
para implantar sua ciência num mundo obscurantista e cheio de crenças impostas
pelas religiões.
Enredo: certo jovem, de nome
Robert Jeremy Cole torna-se órfão primeiro da mãe, depois do pai. Tem irmãos, o
bebê Roger, Jonathan Carte, de 18 meses, Samuel Edward, de sete anos, William
Stewart, de seis e Anne Mary, quatro. A família se desfaz, pois Robert não pode
cuidar de todos; são adotados por famílias. O próprio Robert segue como
aprendiz de Henry Croft, autocognominado Barber, por exercer a profissão de
barbeiro-cirurgião. São muitas aventuras colhidas ao lado de Barber e, um dia,
o jovem descobre desejar, mais que tudo, ser médico. Como a melhor escola de
medicina do século XI fica na cidade persa de Ispahan (também grafada Isfaran),
onde Abū ‘Alī al-Husayn ibn ‘Abd Allāh ibn Sīnā – reduzido para Ibn Sīnā, ou
mais conhecido pelo nome latinizado, Avicena – é o Príncipe dos Médicos, Rob
Cole empreende uma viagem desgastante para o país dos xás. Seguem-se outras
tantas aventuras.
As estradas da época são difíceis
e perigosas; há assaltantes por toda parte e a única segurança dos viajantes é
ajuntar-se em aglomerados maiores e assim continuarem seus caminhos. Num destes
trajetos em grupo, Rob conhece uma escocesa, Mary Cullen, acompanhada do pai e por
quem se apaixona, sendo correspondido. Entretanto, em sua persistente busca da
formação em medicina, Rob terá de adiar a convivência com Mary, abrir mão da
sua própria identidade britânica e de seu modo de vida.
Antes de prosseguir, algumas
contextualizações necessárias. A Europa do Século XI era dominada por ideias às
vezes, religiosas, às vezes ditadas pela tradição de crendices. Junte-se a isto
uma enorme ignorância quanto à higiene, à infraestrutura sanitária e ao uso de
remédios estranhos, como esterco de animais para curar feridas e teremos um
quadro de arrepiar qualquer leitor moderno. Não foi por acaso que a peste negra
assolou o velho continente e muito tempo se gastou até se descobrir de onde
vinha aquela praga. Os ratos, que infestavam as aglomerações humanas, portavam
pulgas – estas agentes da doença – logo espalhando a peste negra ou peste
bubônica entre cada vez mais ratos e humanos.
Os barbeiros-cirurgiões eram um
misto de saltimbancos, barbeiros e
cirurgiões de pequenas cirurgias; consertavam braços e pernas quebrados de modo
bastante precário, vendiam loções revigorantes e remédios universais para quase
todos os males. Viajavam em carroças, cuja identificação se fazia por um
cilindro pintado de branco e vermelho, colocados nas laterais dos veículos.
Realizavam shows de musicais, malabarismo e tudo o mais que pudesse atrair a
atenção da população para seus cataplasmas, unguentos salva-vidas e intervenções.
Barbeiros-cirurgiões tratavam da população pobre e de baixa renda; os médicos
tratavam dos ricos, possuidores de bolsas mais abastadas para pagar o
atendimento bem mais caro dispensado por eles. Como os médicos, os
barbeiros-cirurgiões não eram bem vistos por boa parte da população, sobretudo,
pelo fervor religioso.
O Físico põe em curso três grupamentos religiosos: os cristãos, os
judeus e os muçulmanos. Têm extrema resistência em aceitar a medicina por
motivos que vão desde a repulsa por dissecar cadáveres para estudo até o
preconceito de que os médicos interfeririam na vontade divina.
Retomando a resenha, eis um
trecho no qual Rob percebe possuir um dom especial:
“Era como segurar um par de pássaros trêmulos. Os dedos finos encostaram nos seus e enviaram a mensagem.
Barber viu o garoto ficar tenso.
— Vamos – disse impaciente. – Não podemos ficar aqui o dia todo.
Rob não parecia estar ouvindo.
Duas vezes sentira algo estranho e desagradável passar do corpo de outra pessoa para o seu. Agora, como nas outras duas ocasiões, foi dominado por um terror intenso, largou a mão do paciente e fugiu.
Praguejando, Barber procurou até encontrar seu aprendiz encolhido sob uma árvore.
— Quero saber o que isso significa. Agora!
— Ele... O velho vai morrer.
Barber olhou espantado para ele.
— Que conversa de merda é essa?
O aprendiz começou a chorar.
— Pare com isso – disse Barber. – Como você sabe?
Rob tentou falar mas não conseguiu. Barber o esbofeteou e ele deu um suspiro. Quando começou a falar, as palavras jorraram, pois estavam rolando em sua mente desde antes de deixar Londres.
Tinha sentido a morte iminente da mãe e aconteceu, explicou ele. Então, teve certeza de que o pai estava morrendo, e ele morreu.” (página 77)
O livro é divido em sete partes. O
grande vulto que se destaca do fundo narrativo da quarta à sexta parte é Ibn
Sīnā, o Avicena, o Príncipe dos Médicos. A universidade em que esta figura
lecionava preparava seus candidatos a serem sobretudo polímatas, isto é,
indivíduos que dominam vários saberes. Desta forma, todos são submetidos a uma
terrível avaliação, na qual deveriam demonstrar domínio do saber médico,
filosófico e do direito – este fortemente influenciado por conceitos e
argumentos fundados em Maomé.
Avicena é, ele mesmo, um
polímata. Homem atencioso com seus pacientes, vestindo-se sempre de maneira
simples, tem uma cultura invejável, sobretudo do que o rodeia, incluindo aí a
filosofia ocidental (Platão, Aristóteles), astronomia, política e,
naturalmente, medicina. Ele é realmente o grande mestre de Rob Cole. Avicena é
outro personagem apaixonante pela sua integridade, pela sua lúcida e tranquila sabedoria
e pela sua bondade.
O Físico não é somente um livro de aventuras; críticas sociais
recheiam o texto, a par de tantas informações históricas reveladoras de uma
pesquisa bem conduzida:
“Fascinado agora, Rob Observou os três homens, cada um cercado por nobres bajuladores e embevecidos. O Xá com seu grupo habitual de beijadores de traseiro, Ibn Sina, grave e discreto, respondendo calmamente as perguntas dos homens com aparência de estudiosos. Karim, como sempre naqueles dias, praticamente escondido entre os admiradores que queriam falar com ele, tocar suas roupas, banhar-se na excitação e fulgor daquela presença tão disputada.
A Pérsia parecia perita em fazer de cada homem um corno.” (página 423)
Sem esforço, podemos ler a
crítica social como se fosse do nosso tempo, não é mesmo, leitor?
Uma das coisas que me conquistou
em O Físico é a postura neutra do
narrador não nominado, no tocante às questões de religião:
“— Já pensou – perguntou Rob – como cada religião reivindica a posse do coração e dos ouvidos de Deus? Nós, vocês e o islã, cada um diz que sua religião é a verdadeira. Será que nós todos estamos errados?
— Talvez estejamos todos certos – respondeu Mirdin.
Rob sentiu uma intensa afeição pelo amigo. Logo Mirdin seria médico e voltaria para sua família em Masqat, e quando Rob chegasse a hakim[1], também voltaria para casa. Sem dúvida nunca mais se veriam.” (página 429)
Um exemplo de como Noah Gordon
maneja eficientemente sua pesquisa histórica transparece no trecho transcrito
abaixo:
“Para ela, Londres era um lodaçal negro onde já estavam afundados até os tornozelos. A comparação não era acidental, pois a cidade fedia mais do que os pântanos que tinham visto durante suas viagens. Os esgotos abertos e a sujeira não eram piores do que os esgotos abertos e a sujeira de Ispahan, mas em Londres vivia muito mais gente e em alguns bairros vivam amontoadas, de modo que o fedor das excreções humanas misturado ao do lixo era abominável.” (página 546)
Difícil não nos apaixonarmos pelo
personagem principal, Robert Jeremy Cole. Ele não é um herói, no sentido do
termo. Seus feitos são direcionados por uma firme vontade de atingir seu sonho.
Este é, portanto, um personagem de superação; erra, acerta, é brilhante às
vezes, é ingênuo outras tantas. Como disse Flaubert em Madame Bovary, “Madame
Bovary sou eu”. Rob Cole somos nós. Ou, pelo menos, sua fidelidade aos seus
propósitos, ao alto conceito dado à profissão abraçada deveria entusiasmar
qualquer de nós:
“— Talvez o sistema funcione para as raças inferiores, mas os médicos ingleses têm espírito mais independente e devem ter liberdade para conduzir seus negócios.
— Sem dúvida a medicina é mais do que um negócio – observou Rob delicadamente.
— É menos que um negócio – retrucou Hunne –, com o preço das consultas e com os borra-botas inexperientes que estão sempre chegando a Londres. Por que acha que é mais do que um negócio?
— É uma vocação, Mestre Hunne, como o chamado divino para os homens da Igreja.” (página 558)
Recomendo a leitura desta obra
com louvor, caro internauta que se dá o trabalho de me ler esta resenha. Bom
enredo, história interessante, um ritmo apropriado, a respiração do texto acelera quando deve, acalma-se quando precisa.
Gostei da posição neutra do
narrador, no tocante às religiões: não estaremos todos certos? Avicena, o
Príncipe dos Médicos, figura comprovada pelos registros históricos – um gênio
do seu tempo, embora, até certo ponto, ainda preso a concepções religiosas
engessantes – também nos impressiona. A fibra demonstrada tanto por Rob Cole
quanto por Mary Cullen são fortes referências para nossa vida.
O Físico é uma leitura bastante
oportuna pela neutralidade já referida, num momento em que cresce no mundo a
generalização perigosa de que todo muçulmano seja um terrorista, afirmação sem
conhecimento de causa e baseada apenas nas loucuras perpetradas pelo Estado
Islâmico em nome de Maomé ou Allah. Nós, os cristãos, também não fizemos
guerras com armas “abençoadas” e benzidas por sacerdotes? Seríamos todos igualmente
impiedosos?
Tocado pela experiência de ter
lido o livro, imaginei-me sentimentalmente a bordo de um camelo, com seu passo cadenciado,
mergulhado nas tinturas cambiantes do lusco-fusco, a caminho de Londres. Pela
minha mente repassavam todas as experiências de vida, todos os sacrifícios
pelos quais trafegou Rob Cole – a esta altura já sou íntimo do personagem – e tenho
a meu lado a obstinada Mary. Seguimos o caminho seguro, do ponto de vista
geográfico; não obstante, o caminho psicológico a minha frente é completamente
imprevisível.
Enfim, é desnecessário continuar
“babando” sobre o livro: numa palavra, amei-o. Atribuo-lhe uma justa nota 10.
2 comentários:
Excelente resenha sobre o livro O FÍSICO. Estou no início da leitura e já estou começando a me interessar por esta história tão fascinante e muito bem escrita.
Obrigado, Alberto. Que bom que você gostou da resenha! O Físico é realmente muito bom. Se puder, leia também "Xamã". É uma sequência, abordando esta característica tão peculiar da família Cole, que é o poder curativo.
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