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terça-feira, 19 de março de 2019

Resenha nº 147 - Pretérito Imperfeito, de B. Kucinski


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Título: Pretérito Imperfeito

Autor: Bernardo Kucinski
Editora: Companhia das Letras
Edição: 1ª
Copyright: 2017
ISBN: 978-85-359-3017-7
Gênero Literário: Romance
Origem: Brasil
Bibliografia do autor (incompleta): Os Visitantes, 2016; Alice Não mais que de repente, 2014; Você vai voltar pra mim e outros contos, 2014; K. - Relato de uma Busca, 2011; Jornalismo econômico, 1996; Jornalistas e Revolucionários, 1991; O que são Multinacionais, 1991; Brazil Carnival of the opressed, 1995; Pau de Arara, La Violence Militaire au Brésil, 1971 ; Fome de Lucros, 1977; The debt squads, 1988 ; A ditadura da dívida, 1987; Jornalismo na era virtual, 2005; Cartas ácidas da Campanha do Lula de 1998, 2000 ; Lula and the workers party in Brazil, 2003; Brazil state and struggle, 1982 ; A síndrome da antena parabólica, 1998; Abertura: a história de uma crise. Brasil Debates, 1982.

Já há algum tempo alimentava a vontade de ler alguma coisa de B. Kucinski. Acabei dando neste título, Pretérito Imperfeito, muito embora na minha mente estivesse o seu trabalho mais famoso, K – Relato de Uma Busca. Bernardo Kucinski tem uma curiosidade, ele se lançou como ficcionista com mais de setenta anos, o que é uma exceção neste Brasil de poucas chances para escritores nacionais. Mas, reportemo-nos ao volume. Pretérito Imperfeito pode ser um romance pequeno, de apenas 150 páginas; entretanto, é uma leitura que incomoda. Não por ser mal conduzida, não é isto. É incômoda pela história que conta e pelo estilo seco e objetivo de Kucinski. Não sobram palavras, não há qualquer excrescência neste livro. Capítulos curtos relatam a história de um menino adotado pelo narrador em primeira pessoa. É um menino de cor negra (a cor de pele se define depois). Será um filho-problema,  por ser negro, não por ser adotado. Sofre bullying na escola, sofre na mão dos policiais, sofre no seio de uma sociedade hipócrita que não o aceita. É uma leitura dura. Entretanto, o texto de Kucinski é de ritmo rápido, não há longas orações subordinadas. Talvez a influência de ter tido sua primeira obra ficcional no gênero conto – gênero este que prioriza a contenção, a objetividade, a concisão – tenha sido o que norteou este texto. Desejo ler outras coisas do autor.

B. Kucinski nasceu em São Paulo, no ano de 1937. Filho de imigrantes poloneses, os quais, ao permanecerem na Europa, foram mortos em campos de concentração nazistas. Talvez esta condicionante – ter os pais mortos por um poder dominante – tenha feito de nosso resenhado um homem comprometido com ideais e ideias libertárias. Possui graduação em física pela USP (1968) e sua irmã, Ana Rosa Kucinski, que fora professora do departamento de química da mesma universidade, foi morta pelo regime da ditadura militar brasileira. Bernardo torna-se, então, militante estudantil, foi preso e exilado. Trabalhou como assessor de imprensa no primeiro mandato do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, é colaborador do Partido dos Trabalhadores e professor na USP, onde leciona jornalismo internacional.

Não é boa política de leitura transferir-se dados biográficos para explicar obras literárias. Entretanto, há casos em que isto se justifica, e tal é o caso da presente obra. O tom francamente contestatório deste Pretérito Imperfeito – a começar pelo título escolhido – e de sua obra, como um todo, mergulha em sua biografia.

Disse que o narrador é em primeira pessoa e, de fato, isto se verifica. Não obstante, esta voz narradora abre espaço para que falem outros personagens: a mãe adotiva, notícias de jornal, interrogatórios, entrevistas, autos de processos.

Para ilustrar estas interrupções da voz narrativa, transcrevemos o seguinte trecho:
“Consta do incluso inquérito que os policiais militares estavam em patrulhamento de rotina na reserva florestal de denominação Serra do Itatiaia quando abordaram e revistaram o indiciado que se encontrava em atitude suspeita, não encontrando nada junto a seu corpo, porém foram encontrados dentro do seu veículo uma porção de substância entorpecente e um cigarro que, submetidos à perícia  revelaram potencialidade lesiva, conforme laudo anexo.” (página 62)
É um texto complexo em sua estrutura, extremamente dinâmico e moderno. Vejamos, porém, como Kucinski inicia sua obra:
“Começo pelo fim. Pela carta. Escrevi à mão, cada palavra sopesada. Despachei à antiga, para ser entregue por carteiro que bate à porta, como se deve. Registrei, para me assegurar da entrega. Todavia, sem remetente. Carta para não ser respondida.
Não vou repetir por inteiro o que escrevi. Não é coisa bonita de se dizer, nada de que se orgulhar. Escrevi porque era preciso. Sempre houve o pai que expulsou de casa o filho. Deus baniu o homem do paraíso e o homem era Seu filho, por Ele criado à sua semelhança, e o paraíso era Sua morada. Mito fundador, o paraíso para sempre perdido. Expulsou ao primeiro pecado.” (página 9)
A seu favor, o narrador vai dizer que ele deixara passar pecados sem conta. E o leitor já é fisgado por esta excelente página inicial, ele identifica que há algum problema muito sério entre o pai e o filho, pois há o fato da expulsão. Coisa grave, pois levou o narrador de Kucinski a se justificar, citando o mito fundador do paraíso perdido – que tantas vezes já foi citado em outras obras literárias, inclusive por aquela obra-cânone Paraíso Perdido, de Milton.

Todo o procedimento de emissão/recepção da comunicação de expulsão do filho se faz, como diz o narrador, de modo antigo, com carteiro entregando no endereço “como se deve” e, ainda, garantindo a entrega por meio da remessa registrada. Ato de quem não quer deixar rastros, pois, como é dito, “não é algo de que algum pai possa se orgulhar”.

O ato da adoção do pequeno se dá numa condição de distanciamento deste pai, como podemos verificar no trecho a seguir:
“Assim que terminasse o seminário de Nova York, eu iria documentar o triunfo sandinista na Nicarágua. Esse era o meu programa. Quinze dias fora do Brasil. Pensava na Nicarágua e assistia com Abou ao Cravos de Abril, de Ricardo Costa, quando alguém me toca nos ombros e sussurra: ligação do Brasil. Minha mulher não telefonaria por ninharias. Penso num acidente. Sempre imagino o pior. Assim que atendo, ela diz: surgiu um bebê, o que você acha? Penso: logo agora! Ela diz: tenho que decidir hoje. Sinto pelo fervor de sua voz que ela quer, que telefonou para ganhar coragem. Pergunto: menino ou menina? Menino, gorduchinho. Deduzo que já viu o bebê, já se engraçou, já o trouxe ao regaço. Digo que sim, tudo bem. Pergunto: você dá conta até eu voltar? Ela diz sim, não se preocupe.” (página 15)
Este distanciamento entre pai e filho marca quase a obra toda. Mais tarde, o menino, já maiorzinho, vai morar com uma família de amigos nos Estados Unidos; depois, ficará um tempo em Israel.

O distanciamento geográfico, a dificuldade de comunicação entre gerações, o distanciamento psíquico e os eventos de segregação racial levam o filho a se meter no mundo das drogas. E aí, a relação, que já era um tanto difícil, torna-se um inferno. O curioso aqui é que o narrador de Kucinski trabalha como correspondente internacional – área essencialmente de comunicação – e não consegue se comunicar com o filho.

Vejamos o trecho em que o filho vai para Israel:
“O filho criança mente para se proteger de nossa ira; adulto, mentirá para nos proteger de seus fracassos. Humanas mentiras nas quais fingimos acreditar. Ele mentia para nos desfraldar. Na antevéspera da partida para Israel, dei-lhe um relógio de pulso. No embarque, não vi o relógio. Perguntei: cadê o relógio? Fui assaltado na saída de um bar, disse. Já então eu duvidava do que ele dizia, mas fingi acreditar. Deixei passar. Hoje me pergunto: por que deixei passar? Talvez porque não quisesse a verdade. Refugiava-me na dúvida, quem sabe fora mesmo assaltado? Tornara-me de fato um codependente.” (página 97)
As lembranças do período ditatorial se fazem presentes, às vezes como um pano de fundo, como uma espécie de subconsciente a ditar cuidados e medos já incorporados, às vezes bastante explícitos no texto de Kucinski, como no trecho abaixo:
“Nos anos de chumbo, os militares a tinham [a maconha] como instrumento do comunismo internacional visando à dissolução da família e dos valores cristãos. Os adolescentes necessitavam prová-la com a ânsia de uma iniciação sexual; e suas mães, temendo que na rua se metessem em encrenca, imploravam que trouxessem os companheiros para fumar dentro de casa.” (página 60)
Este trecho torna evidente a influência dos problemas enfrentados pelo autor Bernardo Kucinski – como disse, ele teve a irmã morta pelo regime de então. Kucinski é, portanto, autor de uma escrita marcada pela ideologia de resistência, muito mais do que uma ideologia de esquerda. O fato é que não se esquecem facilmente eventos tão fortes, que tiveram o poder de marcar tão fundo as pessoas, as famílias, os entes queridos.

No Brasil, pelo menos entre a população, e como resultado de uma forte contrapropaganda emanada do poder ditatorial, perpetua-se uma visão ingênua sobre o que seja ser alguém de esquerda. Ficou claro nesta eleição recente, na qual houve forte polarização, esquerda é identificada com o Partido dos Trabalhadores. Não que ele não o seja, mas o PT não representa todas as correntes e complexidades da chamada esquerda.

Coisa para se discutir, talvez, em outra época, com outro livro, outra leitura.

Aqui, nos cabe resenhar uma obra literária.

E esta obra literária é o livro Pretérito Imperfeito, de B. Kucinski. O título é ambíguo de propósito; refere-se a um tempo verbal, caracterizado pela continuidade ou frequência das ações, posto que imperfeito. E, ao mesmo tempo, nomeia um passado com falhas, com senões, com problemas.

Recomendo a leitura desta pequena obra-prima. Ainda não li outras coisas de Kucinski, mas este livro me abriu as recordações de uma época muito difícil, pela qual eu também passei, ainda que de maneira mais suave. Não tive parentes molestados, mas me recordo perfeitamente de colegas de faculdade que, de repente, sumiam de circulação.

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