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quinta-feira, 16 de maio de 2019

Resenha Nº 148 - A Velocidade da Luz, de Javier Cercas


Resultado de imagem para livro a velocidade da luzTítulo original: La Velocidad de la Luz
Autor: Javier Cercas
Tradutor: Sérgio Molina
Edição: 2ª
Editora: Editora Azul/TAG Livros
Copyright: 2018
ISBN: 978-85-2506-751-7
Gênero: Romance
Origem: Espanha
Bibliografia do autor (incompleta): El Móvil, 1987; El Inquilino, 1989: El Vientre de La Ballena, 1997; Soldados de Salamina, 2001; La Velocidad de La Luz, 2005; Anatomia de Un Instante, 2009; Las Leyes de La Frontera, 2012; El Impostor, 2014.
Imagem: SKOOB




Este é um livro que tem a ensinar a quem deseja, um dia, escrever. Várias referências metaliterárias aparecem no texto. Javier Cercas tem uma habilidade enorme em misturar dados da realidade e dados ficcionais, produzindo um todo coerente. Rodney, o protagonista da história, carrega seus fantasmas por ter combatido no Vietnã, é um sujeito taciturno e esquisitão. Na verdade, A Velocidade da Luz é sobre um livro que é escrito pelo narrador sobre a vida do amigo Rodney Falk. O narrador arranja um emprego, por intermédio do amigo Marcelo Cuartero, numa cidadezinha dos Estados Unidos, chamada Urbana. Ler este livro foi muito bom. Escrito com inteligência e prazer, é assim uma prova de fogo do escritor Javier Cercas. Sim, pois ele havia escrito o famoso Soldados de Salamina – considerado por muita gente como a sua obra-prima. Ora, não é todo dia que qualquer autor, após produzir um romance de referência (apontado como o melhor livro escrito em língua espanhola do século XX), consegue escrever outro, com excelência. Sem dúvida, este A Velocidade da Luz é um ótimo livro. Não posso fazer comparações, pois não li ainda o Soldados de Salamina. Mas tenho vontade de ler mais coisas deste ótimo escritor. Meu exemplar da obra anterior aguarda sua vez, na prateleira da minha estante.

Javier Cercas Menas nasceu em 1962 em Cáceres, Espanha. Acumula nada menos que 23 prêmios literários. Atua como escritor e tradutor. Um aspecto muito frequente em sua obra é a reflexão sobre o passado espanhol e do mundo ocidental e suas relações com o presente. Seu último livro, El Monarca das Sombras (O Monarca das Sombras, em português), foi publicado em 2017 e versa sobre a guerra civil espanhola.

O presente romance se inicia da seguinte forma:
“Hoje eu levo uma vida falsa, uma vida apócrifa, e clandestina, e invisível, porém mais verdadeira que uma vida de verdade. Mas eu ainda era eu quando conheci Rodney Falk. Isso foi há muito tempo e foi em Urbana, uma cidade do Meio-Oeste americano onde passei dois anos no final dos 80. A verdade é que, sempre que me pergunto por que fui parar justo lá, digo a mim mesmo que fui parar justo lá como poderia ter ido parar um qualquer outro lugar. Vou contar por que, em vez de ir parar em qualquer outro lugar, fui parar justo lá.” (página 15)
Marcelo Cuartero é um professor universitário, a respeito de quem diz o protagonista deste livro, “a cujas aulas deslumbrantes eu tinha assistido com fervor, embora fosse um aluno medíocre”.

É Cuartero quem fala de uma vaga para professor de literatura espanhola, numa cidadezinha perdida no Meio-Oeste americano, chamada Urbana. Tipicamente, uma cidade de interior, dominada pelo campus universitário. Pouco se sabia daquela localidade, a não ser que tinha sido cenário para o filme Quanto Mais Quente Melhor, com Tony Curtis e Jack Lemmon.

Eis como o protagonista caracteriza seus companheiros professores universitários:
“Eu me lembro muito bem desse jantar, entre outras razões porque algumas das coisas lá ocorridas, receio, dão o tom exato do que devem ter sido minhas primeiras semanas em Urbana. Os três colegas que compareceram tinham mais ou menos a minha idade; eram dois homens e uma mulher. Os dois homens dirigiam uma revista semestral chamada Línea Plural: um deles era um venezuelano chamado Felipe Vieri, um sujeito muito lido, irônico, um pouco esnobe, vestido com um apuro não isento de afetação; o outro se chamava Frank Solaún, era um americano de origem cubana, corpulento e animado, de sorriso brilhante e cabelo empastado com gel. Quanto à mulher, seu nome era Laura Burns, e, como eu soube mais tarde pelo próprio Borgheson, pertencia a uma família riquíssima e aristocrática de San Juan de Porto Rico (seu pai era dono do maior jornal do país), mas o que mais me chamou a atenção nela naquela noite, além de seu inequívoco físico de gringa – alta, robusta, loura, de pele branquíssima –, foi sua intimidadora propensão ao sarcasmo, a duras penas refreada pelo respeito que a presença de Bogheson lhe inspirava.” (página 21)
Entretanto, é na figura de Rodney Falk que a narrativa de Javier Cercas vai se centrar. Sempre em seu estilo fluente, fácil de ler, o autor nos adianta alguma coisa deste personagem tão importante para o romance:
“Mas não foi em nenhuma daquelas festas multitudinárias que eu conheci Rodney Falk, e sim na sala que dividimos durante um semestre no quarto andar do Foreign Languages Building. Nunca vou saber se me deram essa sala por acaso ou porque ninguém queria dividi-la com Rodney (tendo mais à segunda alternativa), mas o que sei é que, se não fosse por isso, o mais provável é que Rodney e eu nunca tivéssemos feito amizade, e tudo teria sido diferente, e minha vida não seria o que é, e a lembrança de Rodney teria sumido da minha memória como depois de alguns anos sumiu a de todas as outras pessoas que conheci em Urbana.” (página 25)
Javier Cercas é um escritor de muitos recursos narrativos e vai revelando a complexidade da personalidade de Rodney Falk aos poucos. Ele tinha lutado no Vietnã – uma batalha em que os EUA se meteram e na qual sofreram acachapantes derrotas.

Para contextualizar, podemos dizer que o Vietnã havia sido colônia francesa e que, ao final da Guerra da Indochina (1946-1954) fora dividido em dois países: o Vietnã do Norte, comandado por Ho Chi Minh, de orientação comunista pró-União Soviética e o Vietnã do Sul, uma ditadura militar que passou a ser aliada dos EUA.

Em 1959, os vietcongues (guerrilheiros comunistas apoiados por Ho Chi Minh e pela então União Soviética) atacaram uma base norte-americana no Vietnã do Sul. Isso foi suficiente para os americanos declararem guerra. O que se seguiu foi um verdadeiro mar de sangue, com os EUA fazendo uso de armas modernas contra um inimigo que, se estava completamente defasado em termos de armamentos, conhecia profundamente seu próprio território e possuía extrema eficiência em táticas de guerrilha. Em 1960 já era claro o fiasco americano.

Em 1973, o governo dos EUA, pressionado pela opinião pública e pelo morticínio intenso de seus soldados, aceita o Acordo de Paris, que prevê o cessar-fogo. A América retira todos os seus soldados e abandona o território vietnamita em 1974.

Este resumo contextualizatório da Guerra do Vietnã se torna necessário, para o leitor entender melhor o porquê das características do personagem Rodney Falk. Tendo feito parte de um grupo de fuzileiros americanos, teve suas amargas experiências. É que tal grupo, certa feita, confunde um conjunto de cidadãos do Vietnã do Norte com um grupo guerrilheiro e abre fogo cerrado contra ele. Para descobrir, depois, que o “inimigo” era composto de mulheres, crianças e velhos indefesos.

E, como de um momento para outro, Rodney Falk pede demissão do seu cargo de professor na Universidade e some, sem deixar qualquer notícia, o protagonista vai à casa dele, numa cidade próxima a Urbana, na tentativa de encontrá-lo. Encontra o pai de Rodney e recebe dele um completo dossiê sobre o amigo, composto de cartas à família em que tal incidente com o grupo de cidadãos vietnamitas é narrado.

O livro A Velocidade da Luz é contado a partir de um narrador-personagem, em primeira pessoa. Esta escolha técnica deve ter sido bastante consciente, pois produz um efeito muito interessante no livro. É que, como ocorre nestes casos de narradores-personagens, as verdades são sempre relativas, subjetivas. Como é um narrador afetado pelos acontecimentos que ele próprio descreve, como ele analisa os fatos sempre a partir do “eu”, a maior parte do que é narrado fica por conta da subjetividade, da interpretação pessoal. Portanto, este é o famoso “narrador não confiável”, do mesmo miolo que constitui o Bentinho de Dom Casmurro, do nosso Machado de Assis. Ainda mais que, no caso de Javier Cercas, o protagonista é escritor, quer escrever um livro cujo personagem central é Rodney Falk. Os fatos aconteceram mesmo, ou foram pura ficção romanesca do narrador-escritor?

Outras tantas coisas vão acontecer no romance, caro leitor, mas não desejo dar spoilers, como sempre. Eu não me importo com eles, se tenho interesse em ler um livro, pouco se me dá que alguém me conte o final ou os principais lances narrativos. Leio alguns livros, de que gosto muito, várias vezes – na minha estante há livros lidos quatro, cinco vezes – pelo simples fato de gostar da história, da forma como um autor faz o seu trabalho. Enfim, diz o sábio ditado popular, “de sábios, de médicos e de loucos, todos temos um pouco”. No meu caso, predomina a porção do “louco”. Entretanto, a maioria das pessoas não gosta de spoilers e eu lhes dou razão.

Vários dados biográficos são encontrados na composição dos personagens e nos fatos narrados no livro, para quem quiser fazer o trabalho de Sherlock Holmes (aliás, não seria nada mal resenhar aqui um livro deste muito caríssimo Sherlock).

Por exemplo, é dito na obra A Velocidade da Luz que o primeiro livro do escritor-narrador não fez sucesso. Que depois de muito tempo, ele consegue publicar um livro que se torna um best-seller. Temos o protagonista indo para os Estados Unidos.

Não por acaso, Javier Cercas deixou a Espanha e foi viver por um tempo na América. Realmente, seu sucesso e reconhecimento só chega com Soldados de Salamina, após outras publicações. Defendo que, de um jeito ou de outro, acabamos pondo algo de nós em narrativas que escrevemos. Por que deveria ser diferente?

Aproveitar nossas próprias experiências é sábio. Ademais, como identificar ou mesmo extirpar dados nossos guardados lá na caixinha preta do nosso inconsciente? Parece que o ato de contar uma história, de verter uma narrativa para o papel – ou, em tempos modernos – para o arquivo digital estabelece uma ligação direta com tal caixinha preta.

Escrever é assim: um prazer, um trabalho (às vezes muito árduo), uma revelação. Tantas vezes o leitor descobre relações insuspeitadas pelos escritores, nos livros destes... E ao autor, interessado ou incomodado, conforme o caso, só resta dizer um “não tinha pensado nisso”.

O próprio Umberto Eco – grande escritor e estudioso da semiótica – conta seu caso deste tipo. Diz ele, um crítico de O Nome da Rosa (que romance, meus caros leitores! Viciante!), sua obra mais conhecida, apontou certa vez uma passagem que lembrava em tudo outro texto antigo. Na hora, Umberto disse que não havia relação, que ele não havia consultado tal texto.

Depois de algum tempo, pesquisando outra coisa em sua biblioteca pessoal – sonho dos sonhos, mais de 30 mil volumes – deu com um livro fora do alinhamento. Tomou-o nas mãos. Estava marcado em determinado ponto. Releu o texto. Lá estava, inteirinha, a passagem aludida pelo crítico. Sim, ele, Umberto Eco, havia gravado o texto antigo e, de modo inconsciente, fizera uma alusão a ele, ao construir a trama da sua obra mais conhecida.

A Velocidade da Luz é um livro repleto de comentários sobre o ato de escrever, as preocupações de um escritor. E não é forçado, uma vez que o protagonista se vê às voltas com um dossiê que traz não só relatos de guerra, mas, principalmente, sentimentos de um soldado participante de uma batalha que lhe fora vendida como um ato de honra contra um inimigo comunista e o que ele confronta, na realidade, são pessoas que dão o seu sangue e sua vida para expulsar o invasor. Eterna luta de David contra Golias; no fundo, no fundo, o livro é também um libelo contra as loucuras dos conflitos armados, da insanidade humana que vê inimigos onde eles não existem.

Não seria esta a mensagem dada pela descrição do fuzilamento do grupo de civis vietnamitas, homens velhos, mulheres e crianças? O sórdido acordo firmado entre os participantes do evento, no sentido de todos se calarem quanto ao ocorrido é o que desequilibra o personagem Rodney Falk. Afinal, calar consciência, nem todo mundo consegue. Aqueles que são mais sensíveis sofrem mais.

Mas paremos por aqui, amigo leitor. No entusiasmo da resenha, quase levei você a um spoiler. Leia este A Velocidade da Luz. Livrão, somente isto. Livrão.

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