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segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Resenha nº 105 - O Estrangeiro, de Albert Camus

Resultado de imagem para livro o estrangeiroTítulo original: L’Etranger
Título em português: O Estrangeiro
Autor: Albert Camus
Tradutora: Valerie Rumjanek
Editora: Record
Copyright: 1957
Edição: 40ª
Origem: Literatura Francesa
ISBN: 978-85-01-01486-3
Bibliografia do autor: Révolte dans les Asturies (Revolta nas Astúrias), 1936; L'Envers et l'Endroit (O Avesso e o Direito), 1937; Noces (Núpcias), 1939; Réflexions sur la Guillotine (Reflexões sobre a Guilhotina), 1947; L'Étranger (O estrangeiro), 1942; Le Mythe de Sisyphe (O mito de Sísifo), 1942; Les justes (Os justos), 2008; Malentendu (O malentendido), 1944; Lettres à un ami allemand (Cartas a um amigo alemão),1941; La peste (A peste), 1972; L'État de siège (Estado de sítio), 1948; L'Artiste en prison (O Artista na prisão), 1952; Actuelles (Atuais) I, Crônicas, 1944-1948", 1950; "Actuelles (Atuais) II, Crônicas, 1948-1953; L’homme révolté (O homem revoltado); L'Été (O Verão), 1954; Requiem pour une nonne (Réquiem para uma freira); La chute (A queda),  1972; L'Exil et le Royaume (O exílio e o reino), 1957; La Femme adultere (A mulher adúltera), Le Renégat (O Renegado), Les Muets (Os Mudos), L'Hôte (O Hóspede), Jonas. La Pierre qui pousse (A Pedra que brota, Os discursos da Suécia (publicado juntamente com O avesso e o direito); Carnets I (Cadernetas I), 1962; Carnets II (Cadernetas II), janeiro 1942-março 1951, 1964; Carnets III (Cadernetas III), março 1951-dezembro, 1959; La Postérité du soleil, photographies de Henriette Grindat. Itinéraire par René Char (A posteridade do Sol, fotografias de Henriette Grindat. Itinerário por René Char, 1965;  Les possédés (Os possessos),  adaptação ao teatro do romance de Fiódor Dostoiévski, 1959; Résistance, Rebellion, and Death (Resistência, Rebelião e Morte); Le Premier Homme (O primeiro homem), 1994; La mort heureuse (A morte feliz); Albert Camus, Maria Casarès. Correspondance inédite (1944-1959). Avant-propos de Catherine Camus, Gallimard, Collection Blanche, 2017.

Albert Camus é um escritor argelino de nacionalidade francesa. Nasceu em 07/11/1913, em Mondovi, Argélia, e faleceu em 04/01/1960, em Villeblevin, França. Um homem de vários talentos: romancista, ensaísta, jornalista, dramaturgo e filósofo. Na sua terra natal, viveu sob o guante da fome, da guerra, da miséria e do sol. Tais referências vão aparecer em toda a sua obra.
Camus foi agraciado com o Prêmio Nobel de 1957, pelo conjunto da obra. Ele era tuberculoso e esta condição, à época uma ameaça real de morte, lhe traz a dimensão da falibilidade do ser humano. Como filósofo, Albert integra a corrente existencialista; como escritor, vincula-se ao que se convencionou chamar “estética do absurdo”. Como precedentes, dentro da mesma proposta estética, temos Dostoiévski e Franz Kafka; como filiados posteriores, Samuel Beckett e Eugène Ionesco.
Vale transcrever a abertura de O Estrangeiro:

“Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.” Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.
O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. Vou tomar o ônibus às duas horas e chego ainda à tarde. Assim posso velar o corpo e estar de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de licença a meu patrão e, com uma desculpa destas, ele não podia recusar. Mas não estava com um ar muito satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe: “A culpa não é minha.” Não respondeu. Pensei, então, que não devia ter-lhe dito isto. A verdade é que eu nada tinha por que me desculpar. Cabia a ele dar-me os pêsames. Com certeza, irá fazê-lo depois de amanhã, quando me vir de luto. Por ora é um pouco como se mamãe não tivesse morrido. Depois do enterro, pelo contrário, será um caso encerrado e tudo passará a revestir-se de um ar mais oficial.” (página 13)

Uma das mais perfeitas páginas de abertura que já li. E o parágrafo introdutório é simplesmente irretocável. Perfeito. Várias informações importantes são adiantadas já neste introito. Vejamos.
  • A mãe do protagonista morreu em um asilo para velhos, na localidade de Marengo;
  • A relação do protagonista com o patrão não é das mais afetivas;
  • O narrador é em primeira pessoa, narrando do ponto de vista do protagonista e se constitui, pelo tom já demonstrado, numa voz neutra, distante de qualquer envolvimento emocional com os fatos;
  • O estilo desenvolvido pelo autor é seco, direto, quase sem adjetivos;
  • ·Por fim, o protagonista é um homem sem grande importância social;
  • Não é demais perceber-se, de saída, o tom de pessimismo assumido.

Mersault leva uma vida banal, completamente convencional. A tudo que lhe é proposto, reage com um “tanto faz”, que nos lembra muito, a nós, leitores do século XXI, a extraordinária novela de Herman Melville, Bartleby, o escrivão. Também ele reage de forma parecida, quando lhe propõem alguma tarefa: “melhor não”. Mersault não tem quase desejos, ambições; a vida o leva.
Coloca-se, desde cedo, a grande questão da liberdade. Mersault, não tendo opções a fazer, não tendo ambições, não sendo vinculado a sentimentos, nem a correntes filosóficas, religiosas ou ideológicas e mesmo não sendo filiado a nenhuma corrente teórica científica, configura-se como um homem completamente livre. É um homem que realmente pode escolher o caminho que desejar, pois tem todas as cartas à sua disposição. O que acontece, entretanto, é que ele não escolhe. É livre para escolher, mas tudo lhe parece tão banal, tão sem propósito, que não há o que escolher.
O narrador-protagonista nos narra os fatos no tempo do presente, às vezes fazendo incursões ao passado. Estas incursões, não obstante, não são portadoras de afetividade ou saudosismo. São apenas referências que desembocam no presente.
Penso ser de muita utilidade a transcrição de outro trecho, desta vez de autoria de Manuel da Costa Pinto, jornalista que assina o prefácio:

“Estamos diante de uma consciência esvaziada, estranha (ou “estrangeira”) a tudo, que vive no tempo presente e na recusa de estabelecer nexos entre a gratuidade dos fatos. Esse novo tipo de herói – ou, no caso, de anti-herói, pelo caráter banal de sua existência nua – antecipa em duas décadas o nouveau roman de Alain Robbe-Grillet e Claude Simon, com seus enredos confinados na descrição fenomenológica das coisas e em ações que rejeitam determinações sociais ou explicações de ordem psicológica.” (páginas 5 e 6)

Somos obrigados a fazer relação direta ao livro anteriormente resenhado neste blogue, ainda dentro do mês de novembro, O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati. Aqui como lá, o tom de desencanto; aqui como lá, a percepção de que a vida não é significativa, de que existe apenas o esvaziamento dos sentidos atribuíveis à vida.
Mesmo no caso das relações amorosas, especificamente entre Mersault e Marie, há um esvaziamento, por parte dele:

“À noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar-me com ela. Disse que tanto fazia, mas que se ela queria, poderíamos nos casar. Quis, então, saber se eu a amava. Respondi, como aliás já respondera uma vez, que isso nada queria dizer, mas que não a amava.
— Nesse caso, por que se casar comigo? – perguntou ela.
Expliquei que isso não tinha importância alguma e que, se ela o desejava, nós poderíamos casar. Era ela, aliás, quem o perguntava, e eu me contentava em dizer que sim. Observou, então, que o casamento era uma coisa séria.
— Não – respondi.
Ela se calou durante alguns instantes, olhando-me em silêncio. Depois, falou. Queria simplesmente saber se, partindo de outra mulher com a qual tivesse o mesmo relacionamento, eu teria aceitado a mesma proposta.
— Naturalmente – respondi.” (página 49)

De vez em quando, Mersault a desejava, mas era apenas uma necessidade fisiológica, um impulso natural e automático.
A falta de religião do protagonista vai levar, a certa altura da narrativa, um padre à exasperação. Ele havia tentado obter de Mersault uma declaração de pertencer a esta ou àquela religião:

“Ia dizer-lhe que estava errado em obstinar-se: este último ponto não tinha tanta importância assim. Mas ele me interrompeu e exortou-me uma última vez, do alto de sua posição, perguntando-me se acreditava em Deus. Respondi que não. Sentou-se, indignado. Disse-me que era impossível, que todos os homens acreditavam em Deus, mesmo os que lhe viravam o rosto. Essa era a sua convicção, e se algum dia viesse a duvidar dela, a sua vida deixaria de ter sentido.
— O senhor quer – exclamou – que a minha vida não tenha sentido?Na minha opinião, eu não tinha nada com isso, e foi o que lhe disse. Mas do outro lado da mesa ele já brandia o Cristo sob os meus olhos e gritava de maneira irracional:— Eu sou cristão. Peço perdão pelos seus pecados a esse aqui. Como pode não acreditar que ele sofreu por você?” (página 73)

Não tive, leitor, o planejamento de ler duas obras tão densas, enquadradas na “estética do absurdo” – obras tão desesperançadas – uma após a outra. O deserto dos tártaros, sim, foi opção; queria ler essa obra há muito tempo. Mas não este O estrangeiro. Ele me foi indicado pelo instrutor de um curso que estou fazendo. Ademais, Albert Camus era uma lacuna imperdoável na minha vida de leitor – lacuna que reparo agora.
Se você gosta de leituras densas, é uma boa indicação. Aliás, é mais do que a questão posta. Na verdade, se você gosta desta linha pessimista, ou se você consegue lê-la, mesmo não se identificando com o tom tão pessimista (sou desses, otimista de carteirinha, mas que consegue mesmo assim gostar de algo tão contrário à minha disposição), leia-o. É um dos clássicos da literatura ocidental.

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