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quinta-feira, 14 de maio de 2020

Resenha nº157 - Os Bórgias, de Mario Puzo


Os Bórgias - Livros na Amazon Brasil- 9788501062765Título original: The Family
Título em português: Os Bórgias
Autor: Mario Puzo
Tradutor: Alves Calado
Editora: Record
Edição: 14ª
Copyright: 2001
ISBN: 978-85-01-06276-5
Gênero Literário: Romance histórico
Origem: Literatura americana
Outras obras: O Poderoso Chefão, Os Tolos Morrem Antes, O Quarto K, O Último Chefão, O Siciliano.





Impressões ao ler:

Há muito tempo este volume repousava na minha estante. Finalmente, chegara o dia de lê-lo e por isso convoquei minha disposição – trata-se de um volume de 420 páginas. Mas, como estamos em quarentena obrigada pelo coronavírus, iniciei a leitura. Um romance histórico, cheio de intrigas no âmbito da religião, envolvendo cardeais e o papa Alexandre VI. Rodrigo Bórgia, pai de César, Juan, Jofre e a famosa Lucrécia Bórgia. Relação incestuosa entre César e Lucrécia, hábitos um tanto estranhos, adesões costuradas por casamentos arranjados – tudo isto era bastante comum à época. A  Itália não existia ainda como um país unificado. O que prevalecia eram as cidades-estados. Os Bórgias não é uma história agradável de se ler no sentido de algo leve, mas é muito bem escrita. O enredo prendeu-me a atenção; mas, à medida em que tantas tramoias, assassinatos, traições (não só sexuais) aconteciam, certo asco ameaçava parar a leitura. Lancei mão, desta forma, de uma atitude útil para quando tenho de ler algo que não me agrada inteiramente: o distanciamento histórico. Virei a chave para uma leitura mais distante, menos emocional e emocionada. É um grande livro, embora não goste de certos elementos chamados a compor a narrativa.

Breve biografia do autor:

O escritor americano Mario Gianluigi Puzo nasceu em Manhattan, Nova Iorque, a 15/10/1920 e faleceu em Bay Shore, a 02/07/1999. Sua família era de italianos que habitavam o bairro nova-iorquino de Hell’s Kitchen. Sua infância, passou-a entre os trens, pois seu pai era ferroviário. Dividia este tempo entre os trilhos e a bibliotecas públicas; seu gosto pela literatura estava sendo formado. Desde cedo, também desenvolveu seu gosto pelo jogo, preferência que nunca abandonou. Quando Mario Puzo anunciou à família seu projeto de vida de tornar-se um escritor, obteve a rejeição da família. Alistou-se na Força Aérea americana e foi mandado para a Ásia e Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. De volta aos EUA, ingressou na New School For Social Research, em Nova Iorque. Publicou seu primeiro conto na revista American Vanguard, de nome The Last Christmas. A certa altura, surgiu-lhe uma proposta irrecusável: um adiantamento de cinco mil dólares para escrever um livro sobre a máfia. Assim veio a lume sua obra mais famosa, O Poderoso Chefão, que se tornou filme estrelado pelo excelente Marlon Brando, segundo minha avaliação, em sua melhor performance, contando a saga da máfia, e imortalizando o protagonista, Don Vito Corleone.

O Livro:

“Enquanto a peste negra varria a Europa, devastando metade da população, muitos cidadãos desesperados voltaram os olhos do céu para a terra. Ali, para dominar o mundo físico, os que tinham inclinação filosófica tentaram desvendar os segredos da existência e com isso desenredar os maiores mistérios da vida, enquanto os pobres só esperavam acabar com o sofrimento.
Foi assim que Deus caiu na terra como homem, e a rígida doutrina religiosa da Idade Média perdeu poder e foi substituída pelo estudo das antigas civilizações de Roma, da Grécia e do Egito. Quando a sede das cruzadas começou a diminuir, os heróis olímpicos renasceram e as batalhas olímpicas foram travadas de novo. O homem lançou sua mente contra o coração de Deus e a razão reinou.” (página 11, Prólogo)
Um parágrafo inicial fortemente contextualizador, escrito em tom grandiloquente, lembrando até certo ponto, as epopeias antigas. A história acontece na Roma do século XV, mais precisamente, no Vaticano. O Papa Inocêncio VIII (1484-1492) havia morrido e o cardeal Rodrigo Bórgia manipulou sua própria eleição como sucessor do Santo Pontífice, o que aconteceu no período de 11/08/1492 a 18/08/1503.

Com sua amante Vanozza Cattanei, Rodrigo tem César, Juan (seu preferido), Jofre e Lucrécia. Aos que estão estranhando a manutenção de uma amante e a existência de filhos no regaço papal, eis como Rodrigo – Papa Alexandre VI – justifica sua ligação amorosa:
“Como filho da Igreja, era proibido de se casar, mas como homem de Deus tinha certeza de que conhecia o plano do Bom Senhor. Ora, o Pai Celestial não criou Eva para completar Adão, mesmo no Paraíso? Então não era óbvio que, nessa erra traiçoeira cheia de infelicidade, um homem precisava ainda mais do conforto de uma mulher? Ele tivera os três filhos anteriores quando era um jovem bispo, mas essas últimas crianças de quem era pai, as de Vanozza, tinham um lugar especial em seu coração.” (página 15)
Bastante cínica a justificativa, não, meu caro leitor? Acostume-se. Alexandre VI adotará, no decorrer das páginas deste Os Bórgias, tanto cinismo quanto for necessário para suas pretensões.

E – claramente – uma delas é excercer seu poder religioso sobre uma Itália unificada. E aqui vamos a um parêntese explicativo. À época, a Itália como nação não existia. Deixemos, entretanto, que o narrador de Mario Puzo explique a situação:
“Além disso, o país que agora conhecemos como Itália não existia. Em lugar dele havia cinco grandes poderes: Veneza, Milão, Florença, Nápoles e Roma. Dentro das fronteiras da “bota” havia muitas cidades-estados independentes governadas por antigas famílias lideradas por reis locais, senhores feudais, duques ou bispos. Dentro do país, vizinho lutava contra vizinho para ganhar território. E os que conquistavam ficavam sempre alertas – porque a conquista seguinte estava próxima.” (página 12, Prólogo)
Já acontecera o cisma católico do ocidente – que o narrador de Puzo classifica como “paródia”. Cisma do ocidente é a divisão que ocorreu no poder da Igreja, com um papa em Roma e outro, na cidade francesa de Auvignon.

Habemus papam, Alexandre sobe ao trono católico; a César estará destinado o cardinalício e o Papa tenta garantir o melhor para a sua família. Agora, sua amante não é mais Vanozza, mas a jovem e bela Júlia, a cujo parceiro ela serve com prazer... inclusive sexual.

No trabalho de construir seu poder sobre todos os cinco centros irradiadores do poder, como descrito acima, Alexandre VI destina cada um de seus filhos a casamentos com representantes dos poderosos daqueles lugares. Busca uma aliança estável e maiores ganhos para a Igreja:
“Logo Alexandre começou a formular outro plano: com o objetivo de proteger sua posição no Vaticano e proteger a própria Roma de uma invasão estrangeira, teve certeza de que precisava unificar as cidades-estados da Itália. Foi então que concebeu o conceito da Liga Santa. Seu plano era unificar e liderar várias das maiores cidades-estados – isso lhes daria mais poder juntas do que cada uma tinha em separado.” (página 85)
Alexandre é também importante para a história de Portugal e Espanha. Chamado a dirimir uma pendenga existente com relação às novas terras descobertas no novo mundo, o Papa emite uma bula. Considera de Portugal as terras a leste da linha traçada próxima dos Açores e das ilhas de Cabo Verde. A oeste daquela linha estavam as terras de posse espanhola.

A sociedade romana era um verdadeiro caos. Para se ter ideia, vamos deixar falar o narrador de Os Bórgias:
“Seis mil e oitocentas prostitutas percorriam as ruas da cidade, gerando uma nova ameaça médica, além da moral, ao povo. A sífilis estava se tornando comum; tendo começado em Nápoles, foi espalhada pelas tropas francesas, seguiu para o norte até Bolonha e então foi levada pelo exército através dos Alpes. Os romanos mais ricos, infectado pela “erupção francesa”, pagavam vastas quantias aos vendedores de óleo de oliva para que os deixassem ficar durante horas dentro dos barris de azeite para aliviar a dor das feridas. Mais tarde o mesmo óleo era vendido em lojas elegantes como “puro extravirgem”. Que piada!” (página 185)
Aliás, este trecho serve bem para exemplificar como o narrador de Os Bórgias não só narra a história como observador privilegiado, mas ainda emite juízos sobre o que nos conta.

O papa tem inimigos. Se mantém relações mais amistosas com os Médici, de Florença, os Sforza, de Milão, ali mesmo, no Vaticano, os seguidores do cardeal Giulio della Rovere tramam contra o papa em exercício e sua família. Encarregam-se de espalhar notas quase sempre de condenação às libertinagens de Alexandre, à lubricidade dos filhos e dão larga divulgação ao relacionamento incestuoso entre César e Lucrécia, até mesmo incluindo Alexandre nesta relação.


Entretanto, neste festival de traições, negociatas, falcatruas e maledicências, há trechos belos. E um dos que mais chamou minha atenção, talvez num expediente de tornar a relação incestuosa dos dois irmãos mais aceitável, Mario Puzo faz seu narrador nos dizer, lá pelas páginas 243:
“Então ele se curvou para beijá-la, um beijo suave, o beijo de um irmão para a irmã... e alguma parte dele ficou rígida e fria. O que faria sem ela? Até aquela noite, sempre que pensava em amor, pensava nela; sempre que pensava em Deus, pensava nela. Agora temia que, sempre que pensasse em guerra, pensaria nela.”
César é um personagem muito interessante e bem construído. Mas é Lucrécia, Crécia para os familiares, que o autor dota de voz crítica, questionadora. Vejamos a seguinte passagem, na qual isto fica bastante evidente:
“Foi então que começou finalmente a questionar a sabedoria do pai. Tudo que lhe tinham ensinado era bom e certo? Seu pai era realmente o Vigário de Cristo na terra? E o julgamento do Santo Padre era também de Deus? Lucrécia tinha certeza de que o Deus gentil que estava em seu coração era muito diferente do deus punitivo que sussurrava nos ouvidos de seu pai.” (página 312)
Toda vez – creio eu – que voltar à leitura deste livro, vou sentir o mesmo asco, a mesma sensação de que da relação ser humano-poder não pode advir coisa boa. Não posso dizer que tenha adorado a obra, afinal, tenho meu conjunto de valores e este texto confronta vários deles. A obra se impõe por si mesma, e aí está o que se pode dizer ser o maior valor de um trabalho literário: impor-se por si próprio. Bem contada, bem conduzida, com personagens complexos (o bem e o mal fazem parte deles, mesmo de Alexandre VI – ou principalmente dele) a narrativa permanece em minha memória, após lida.

Por isso tudo, recomendo-a: é uma ótima experiência de leitura. Os Bórgias, de Mario Puzo.


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