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domingo, 31 de maio de 2020

Resenha nº 159 - O Homem Que Caiu Na Terra, de Walter Tevis


Título original: The Man Who Fell To Earth
Título em português: O Homem Que Caiu Na Terra
Autor: Walter Tevis
Tradutor: Taissa Reis
Edição: n/c
Editora: Darkside
Copyright: 1991
ISBN: 978-85-9454-005-8
Origem: Literatura Americana
Gênero Literário: Romance (Ficção Científica)
Pequena bibliografia do autor: The Hustler, 1959; O Homem Que Caiu Na Terra, 1963; Mockinbird, 1980; Os Passos do Sol, 1983; The Gambit Of The Queen, 1983; A Cor do Dinheiro, 1984. Publicou, ainda, vários contos em revistas norte-americanas.

Impressões ao Ler:

As horas vão se passando e os olhos não deixam o livro: já passa de meia-noite deste sábado de pandemia. Apenas mais algumas páginas... finalmente, fecho o volume exatamente à meia-noite e meia. Leitura desconcertante: ficção científica completamente fora da curva. Não é distopia, não fala de uma guerra entre alienígenas doidos para acabar com a humanidade, não há batalhas megalomaníacas entre naves espaciais. Já começamos a leitura sabendo que o protagonista é um ser de outro mundo – do planeta Anthea. O narrador, em terceira pessoa, cola-se ora no protagonista, ora no coprotagonista Nathan, e é do ponto de vista deles que a história é contada. E, à medida que o enredo progride, vamos sentindo um incômodo. Apesar de passar longe das características de uma distopia, o livro tem uma visão pessimista da humanidade e sua civilização, de seus valores. Ah, me fez lembrar de outro clássico, O Dia Em Que A Terra Parou. Indubitavelmente, este O Homem Que Caiu Na Terra é um clássico do gênero. A edição da Darkside é belíssima, um livro bem acabado, em capa dura e com o corte superior, lateral e inferior em tinta alaranjada. Obra que nos convida à releitura.

Pequena biografia do autor:

Walter Tevis é um autor norte-americano, nascido em San Francisco, Califórnia (28/02/1928) e faleceu em New York (09/08/1984). Aos 10 anos de idade, Walter foi colocado numa casa de convalescença de crianças, em Stanford por um ano, enquanto eles retornavam a Kentucky, onde a família recebera terras em concessão no condado de Madison. O menino, então com onze anos, viajou sozinho em um trem, para encontrar-se com a família. Aos 17 anos, Tevis participou da segunda guerra mundial, que já estava quase no fim, servindo como carpinteiro a bordo do USS Hamilton. Mais tarde, ele atuou como professor de quase tudo, nas escolas secundárias. Graduou-se em escrita criativa (mestrado), lecionando esta matéria na Universidade de Ohio. Casou-se com Jamie Griggs em 1957 e permaneceu casado com ela por duas décadas. Walter Tevis morreu de câncer de pulmão em 1984, na cidade de New York. Seus restos estão enterrados em Richmond, Kentucky.

O livro:

“Após andar por três quilômetros, encontrou uma cidade. Na entrada havia uma placa na qual se lia: ‘Haneyville. População: 1.400’. Estava bom, um tamanho razoável. Ainda era cedo – ele escolhera a manhã para a caminhada de três quilômetros porque estaria mais fresco – e não havia ninguém nas ruas. Andou por vários quarteirões sob a luz fraca, confuso pela estranheza do lugar, tenso e um pouco assustado. Tentou não pensar no que faria. Já havia pensado o bastante sobre aquilo até o momento.
Encontrou o que queria no pequeno centro comercial: uma loja minúscula chamada The Jewel Box. Na esquina próxima a ela havia um banco verde madeira, e ele foi até lá para se sentar, com o corpo doendo pelo esforço da longa caminhada.
Viu um ser humano alguns minutos depois.” (página 15)
Neste parágrafo primeiro já contamos com alguns elementos, algumas pistas de que esta pessoa, um caminhante, tem características suspeitas. Chega a pé, caminhou por três quilômetros, está cansado, sozinho; e a frase “viu um ser humano alguns minutos depois” soa ou deslocado ou indicativo de que ele, o caminhante, não era humano. Como sempre, o autor, ao construir seu suspense, economiza nos indícios, para surpreender seu leitor à frente. Mas as pistas estão no texto com bastante frequência, pois o objetivo é intrigar quem lê a obra, fazendo com que ele se sinta fisgado o bastante para continuar a leitura.

O personagem Nathan Bryce é extremamente importante na história de Walter Tevis. Contracenando com o protagonista, vários aspectos sobre o personagem principal serão dados pela observação de Bryce com relação ao personagem principal.

É muito interessante como o autor, ao descrever o apartamento em que mora Bryce, nos dá elementos sobre o morador:
“No lado da mesa que não estava amontoado de coisas ficava sua máquina de escrever, como outro deus mundano – um deus grosseiro, trivial e exigente demais –, ainda com a décima sétima página de um artigo sobre os efeitos de radiações ionizantes sobre resinas de poliéster, um artigo sem demanda, sem compromisso e que provavelmente nunca seria concluído. O olhar de Bryce encontrou essa confusão sombria: as folhas dos trabalhos espalhadas como uma cidade de castelos de cartas bombardeada, as soluções infindáveis e assustadoramente organizadas dos estudantes para equações de oxirredução e para preparos industriais de ácidos desagradáveis, e o artigo igualmente tedioso sobre resinas de poliéster. Olhou para aquelas coisas por trinta segundos, com as mãos enfiadas nos bolsos de seu casado, em uma tristeza sombria.” (páginas 35/36)
Bryce é engenheiro químico, não consegue arrumar seus objetos, mas é produtivo, embora escreva artigos e faça pesquisas que nunca serão divulgadas. E mais, é solitário, a figura clássica de um cientista, meio desligado do mundo que o cerca e das necessidades rotineiras de manutenção de uma casa ou apartamento.

A cena em que Betty Jo é introduzida na história também nos fornece dados importantes. Newton – é este o nome assumido pelo nosso protagonista extraterrestre – está num elevador antigo, reformado. Com ele, entra também uma mulher:
“Foi então que tudo pareceu acontecer ao mesmo tempo. Viu a mulher encarando-o e sabia que seu nariz devia estar sangrando, sujando a frente de sua camisa e, ao olhar para baixo, teve certeza daquele fato. Ao mesmo tempo, ele ouviu – ou sentiu, em seu corpo estremecido – suas pernas desabarem em frágil estalo, e caiu no chão do elevador, enrolado de forma grotesca, uma das pernas horrivelmente atravessada sob ele enquanto perdia a consciência, sua mente caindo em uma escuridão tão profunda quanto a do vazio que o separava de sua casa.” (página 63)
Esta Betty Jo será sua ligação afetiva com o mundo estranho no qual ele está. Toda a cena do elevador nos diz da constituição delicada daquele ser, certamente inteligente acima da média, mas com uma construção fisiológica tão débil. Seus ossos são finos e não suportaram a aceleração brusca do elevador antigo.

Newton consegue colocar suas ideias avançadas no mercado. Inventa um filme fotográfico que não precisa de revelação em laboratório; esse processo é feito de modo automatizado, dentro de uma lata com gás. É só o consumidor acondicionar o filme dentro dela, apertar um botão e pronto: as fotos aparecem à sua frente. Lança no mercado uma televisão de definição muito superior às usuais (num tempo em que a televisão comercial, no mundo, estava começando suas transmissões, ainda com baixíssima definição de imagem). Newton fica rico, e se prepara para seu grande plano – de que não posso dar mais dicas, pois incorreria em spoiler.

Apesar de não ser caracteristicamente uma distopia, como já dissera nas impressões ao ler, este livro flerta com uma visão pessimista da sociedade humana:
“Acredite, somos muito mais sábios do que imagina. E estamos além de qualquer dúvida razoável de que o seu mundo se transformará em um monte de lixo atômico daqui a não mais de trinta anos, se não interferirmos.” Continuou, com um ar sombrio: “Para falar a verdade, ver o que vocês estão prestes s fazer com um mundo tão bonito e fértil nos desanima muito, destruímos o nosso muito tempo atrás, mas tínhamos muito menos do que vocês têm aqui”. Sua voz agora parecia agitada e seus modos, mais intensos. “Você não percebe que não irão apenas destruir a sua civilização como ela é hoje e matar a maior parte da sua população, mas que também envenenarão os peixes em seus rios, os esquilos em suas árvores, os bandos de pássaros, o solo e a água?” (página 161/162)
Preocupação claramente ecológica e discussão atualíssima – também presente em No Dia Em Que A Terra Parou – outro clássico da sci-fi. Então, temos um alienígena de Anthea, um planeta moribundo, onde os recursos naturais, já escassos, têm uma durabilidade prevista – para sustentar os 300 antheanos existentes, não haverá mais que cinquenta anos à frente.

A Terra tem recursos em abundância, Walter Tevis propõe digressões sobre o nosso destino como moradores desta mãe-terra. Pela boca de Bryce, expõe-se uma solução para os antheanos, eles poderiam vir para a Terra e formarem um povo à parte, são apenas 300 almas, e aí transpassa o livro o subtema da solidariedade.

O Homem Que Caiu Na Terra transformou-se em roteiro cinematográfico, estrelado pelo cantor inglês David Bowie. Não poderiam ter encontrado alguém mais apropriado, embora não tenha visto ainda o filme. Pela descrição de Newton, no livro, Bowie é uma escolha acertada. O cantor inglês construiu para si uma imagem de androginia (flutuação entre características femininas e masculinas). As pessoas, inclusive Betty Jo, têm a impressão de que Newton é homossexual, dada à aparência frágil e jeitos que, se não chegam a ser femininos, também não os caracterizam como masculinos. A luta entre a brutalidade dos humanos e a inteligência dos antheanos.

O título do livro é ambíguo, polissêmico. O Homem Que Caiu Na Terra tem, no sentido mais superficial, a significação de “homem que aportou no planeta Terra”. Entretanto, o outro sentido, numa camada mais profunda, nos dá a ideia de “homem que fracassou no planeta Terra”. Não é um spoiler, visto que está no título e tal observação não exige do leitor a leitura da obra. É o mesmo sentido contido, por exemplo, numa frase muito comum em nosso tempo, como “o presidente caiu” ou, mais atual ainda, “o ministro caiu”.

Livraço, sob todos os aspectos. E é bom que assim seja, porque há muitas pessoas que ainda concebem a ficção científica como subgênero literário. Ledo engano. Hoje, este gênero amadureceu bastante e já conta com autores instigantes a nos darem verdadeiras pérolas. Estou falando de autores como Jules Verne, Isaac Asimov, Arthur C. Clark, Ursula K. Le Guin, Ray Brudbury, Philip K. Dick, George Orwell, Aldous Huxley, Margaret Atwood, para ficar com alguns de maior projeção.

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