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domingo, 19 de dezembro de 2021

Resenha Nº 178 - Todos Nós Adorávamos Caubóis, de Carol Bensimon

 

                                                       
 Título original: Todos Nós Adorávamos Caubóis

Autora: Carol Bensimon

Edição: TAG/Companhia das Letras

Copyright: 2013

ISBN: 978-85-359-3245-4

Gênero literário: Romance

Origem: literatura brasileira

 


 



Carol Bensimon é natural de Porto Alegre, Rio Grande do Sul e aí nasceu, em 1982. Ingressou no curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2000 e o concluiu em 2005. Tem textos publicados em várias revistas, tais como Piauí, Galileu, Superintessante, Bravo!; nos jornais, suas publicações saíram em O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha de São Paulo, Zero Hora.

Ela é também tradutora, mas é como escritora que seu trabalho é mais conhecido. Carol publicou Pó de parede, 2008; Sinuca embaixo d’água, 2009; Todos nós adorávamos caubóis, 2013; Uma estranha na cidade, 2015; O clube dos jardineiros de fumaça, 2017. A maioria destas obras está traduzida para outras línguas.

Na introdução deste Todos nós adorávamos caubóis, a crítica literária e professora Noemi Jaffe (resenhei o livro de Noemi Jaffe, O que ela sussurra, aqui, no blogue) propõe que este trabalho de Carol se insere, a um só tempo, como um Bildungsroman e uma road novel. Expliquemos.

Bildungsroman é a designação em alemão que se dá ao chamado romance de formação. É uma narrativa que acompanha, pormenorizadamente, a trajetória de um personagem, desde muito cedo (por exemplo, desde a sua infância) até a idade adulta ou velhice. São, no mais das vezes, personagens comuns, sem heroísmos ou genialidade. De certa forma, estas obras bebem nas águas da biografia romanceada. O termo usado vem em alemão porque a obra inauguradora desta forma de compor narrativas é Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, do consagrado autor germânico Johann Wolfgang von Goethe.

Entre os romances de formação podemos citar, até para leitores interessados em explorar tal característica: O apanhador no campo de centeio, de Salinger; Demian, de Herman Hesse; As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain; Norwegian Wood, de Haruki Murakami; David Copperfield, de Charles Dickens.

Já uma road novel é outra forma de narrar, o enredo acontece enquanto o protagonista se desloca em viagem. O efeito criado é o de que não haja preocupação do autor com qualquer planejamento para um enredo; que os fatos vão sendo relacionados enquanto o personagem viaja. Claro, é só um efeito. As road novels (literalmente, romances de estrada) marcaram a literatura americana. Como exemplos, temos o On the road (Pé na estrada), de Jack Kerouac; A estrada, de Cormac McCarthy; The price of salt, de Patricia Highsmith.

O encaixe em uma road novel já se anuncia no parágrafo de abertura do livro de Bensimon:

“Tudo o que fizemos foi tomar a BR-116, passando sob pontes com slogans de cidade que não tínhamos a mínima intenção de visitar, ou que falavam na volta de Cristo e na contagem para o fim do mundo. Deixamos para trás as ruas suburbanas cujo início é marcado pela rodovia, que depois vão se perder em um parque industrial e nos casebres jogados em volta de um arroio, onde os cachorros vadios se arrastam e quase nunca latem, e seguimos, seguimos até a reta virar curva. Eu dirigia. Julia estava com os pés sobre o painel. Eu raramente podia olhar para ela. Quando ela não sabia a letra das músicas, cantarolava. ‘Tu mudou o cabelo’, eu disse, olhando de relance para a franja dela. Julia respondeu: ‘Há mais ou menos dois anos, Cora’. Nós rimos enquanto subíamos a serra. Isso foi o começo da nossa viagem.” (página 13)

Cora e Júlia, então, são as duas mulheres ao redor das quais todo o enredo é construído. Cora é um tanto urbana, tendo já passado por Paris, de onde vem para conhecer seu meio-irmão, filho do segundo casamento do pai. Nega-se a este compromisso; ao chegar, inicia sua viagem sem fim determinado.

Júlia é o contraponto, um tanto interiorana, embora haja morado em Montreal, Canadá. Ela e Cora tiveram um caso, no passado, mas tal fato é considerado por Júlia como uma fase, um momento. Reencontram-se agora, nesta viagem sem destino. A relação das duas é claramente lésbica, mas a sexualidade de Cora é fluida.

Cora é a narradora do romance; nossa avaliação de Júlia, as reflexões sobre a vida, as relações, são as mesmas de Cora, pois o olhar do leitor é conduzido pela protagonista:

“Entre os dezoito e os vinte e um anos, acho que a gente tinha planejado a famosa viagem sem planejamento uma centena de vezes. E quando uma coisa dessas se repete tanto assim, com suas variações mínimas, é natural que se compacte tudo em uma única memória poderosa, cujo cenário é determinado de modo aleatório – basta ter acontecido uma única vez no lugar em questão –, enquanto sua carga dramática vem da soma de todas as noites que acabam nos levando à ideia da viagem, mais o número de anos que nos separam daquelas noites.” (página 24)

E Cora nos informa sua interpretação sobre Júlia:

“Parece que a desvantagem de crescer no interior é que todo mundo pode estar conversando sobre você ou sobre seus pais em todas as salas de jantar iluminadas em um raio de três quilômetros. Por isso o melhor é não dar munição para o falatório, ou ao menos era o que Julia dizia quando eu perguntava sobre como tinha sido passar a adolescência inteira em um lugar daquele tamanho. Eu estava interessada nos desvios, uma pessoa entediada acaba fazendo coisas estúpidas, essa era minha crença e talvez meu estilo de vida, mas aparentemente não havia desvio algum, uma vida regular com uma família regular, a mãe uma das últimas donas de casa de que eu teria notícia, o pai media a ascensão social pelo tamanho da garagem, o irmão cuja futura esposa não por acaso havia sido sua única namorada.” (páginas 29/30

Este desconforto, esta insegurança em relação ao que procurar acompanha Cora. Mas, ao viver intensamente esta busca, ela termina por alcançar, durante o livro, a maturidade.

No processo de autodescoberta, Cora reflete sobre a própria sexualidade, aliás, um dos componentes importantes sobre, afinal, quem ou o quê somos:

“Sim, eu me sentia atraída por garotas. Tecnicamente, eu era bissexual. Minha linha do tempo teria todos os indícios.” (página 51)

“Mas eu disse bissexual. Garotas e alguns garotos. Ou, para ser mais exata: Garota. Garota. Garota. Garoto. Garota. Garota. Garoto. E daí seguindo usualmente essa proporção. Com os garotos, eu ficava por inércia. Com as garotas, por encantamento. Com os garotos, tudo transcorria como em um roteiro de comédia romântica para grande público (salvo que eu estava justamente fingindo o papel que me cabia). Com as garotas, tudo começava, continuava e acabava no mais puro melodrama.” (página 52)

“Mas quando você gosta de pessoas do mesmo sexo, continuei, a relação pode ficar realmente confusa, quero dizer, os sinais, os sinais são mais óbvios entre um homem e uma mulher, certo? Como flertar com sua melhor amiga e se fazer entender? “Isso é um problema universal, Cora”, disse Jean-Marc com um sorriso, enquanto pegava um elástico no bolso.” (página 84)

As observações de Cora sobre o que a cerca são, muitas vezes, escritas com humor, que não chega a ser negro ou desesperançado. É o que se depreende do trecho abaixo:

“Quando Jaqueline apareceu na vida do meu pai, eu demorei a me dar conta de que ela era o que ele estava procurando sem tirar nem pôr, em resumo, burra e jovem, pois naquela época eu estava muito ocupada sendo exatamente burra e jovem, eu apostava em qualquer cavalo manco que pusessem diante de mim, remoía histórias até elas ficarem gastas, dizia a mim mesma que não tinha expectativas, enquanto expectativas eram meu único combustível.” (página 75)

Carol Bensimon escreveu um bom romance contemporâneo e os dois aspectos evidenciados pela professora Noemi Jaffe, na introdução a esta obra, são altamente funcionais, se podemos dizer assim.

Para uma protagonista que se descobre aos poucos, tendo estado, como diz, “muito ocupada sendo exatamente burra e jovem”, calha o road novel – atirar-se ao mundo “sem lenço nem documento”, numa simbologia da busca de si mesma: o processo de descoberta externa anda passo a passo com o da descoberta interna.

O segundo aspecto – romance de formação – não sei se foi escolha intencional da autora, suspeito que sim, adaptou-se à perfeição à proposta da obra. Afinal, não se pode passar a vida inteira burra e jovem; há que se amadurecer. Todos nós adorávamos caubóis é, ele mesmo, um romance maduro de uma escritora com pleno domínio do seu fazer literário.

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