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sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Resenha nº 172 - A Revolução dos Bichos, de George Orwell

 



Título: A Revolução dos Bichos

Título original: Animal Farm

Autor: George Orwell

Tradutor: Fábio Bonillo

Editora: Gutenberg/TAG

Copyright: 2021

ISBN: 978-65-86553-43-7

Literatura inglesa


Uma fábula do século XX. Numa época em que o gênero literário parecia superado, eis que Eric Arthur Blair – mais conhecido pelo pseudônimo de George Orwell – nascido na Índia Britânica vai contra as tendências e nos dá uma fábula.

Mas, o que seria uma fábula? Bem, é um gênero textual em que personagens são animais. A estrutura narrativa é simples e direta e visa a transmitir uma mensagem, um conselho ou uma moral. Seus personagens não costumam ser complexos, assemelhando-se a tipos.

E é aí que está o pulo do gato – perdoem-me a associação fabulística – deste A Revolução dos Bichos. São poucas as vezes que podemos ver tão claramente um projeto literário sendo posto em prática:

“Ao retornar da Espanha, pensei em expor o mito soviético em uma história que pudesse ser facilmente entendida por quase qualquer um e que pudesse ser facilmente traduzida para outros idiomas. No entanto, por algum tempo, os próprios detalhes da história não me ocorreram, até que um dia (eu então vivia numa pequena aldeia) vi um garotinho, de talvez dez anos de idade, conduzido uma enorme carroça por um caminho estreito, açoitando o cavalo sempre que tentava virar. Ocorreu-me que, se calhasse de os animais se tornarem cientes da própria força, nós não teríamos poder sobre eles, e que os homens exploram os animais de maneira muito parecida com a maneira como os ricos exploram o proletariado.” (prefácio, página 10/11)

E Orwell segue, nos dando notícia de ter procedido a uma análise da teoria de Marx do ponto de vista dos animais. Completa, ressaltando a semelhança com a história real da Revolução Russa.

A Revolução dos Bichos se inicia nos dando notícia de uma importante reunião dos bichos da Fazenda Manor, sob o comando do Sr. Jones. Ele esquecera de trancar as portinholas dos galinheiros. Estava muito bêbado para isto. Todos os animais foram convocados pelo velho Major, um porco de aparência majestosa, sábio e benevolente. Os bichos foram chegando e se acomodaram dentro daquele grande celeiro.

Começa seu discurso constituindo-se como portador de sabedoria, tendo tido uma vida longa e experiências várias. Teve tempo para refletir sobre a situação dos humanos e dos animais e chegara a importantes conclusões, a serem partilhadas com seus confrades:

“O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Ele não dá leite, ele não põe ovos, ele é fraco demais para conduzir o arado, ele não corre rápido o bastante para apanhar coelhos. Contudo, ele é o senhor de todos os animais. Ele os põe para trabalhar, ele lhes restitui o mínimo para impedir que morram de fome, e o restante ele guarda para si. Nosso trabalho lavra a terra, nosso adubo a fertiliza, e contudo não há nenhum entre nós que possua mais do que a própria pele.” (página 33)

Major lhes conta seu sonho da noite anterior. Vislumbrara como seria a Terra depois que o Homem perdesse o poder sobre os animais. Compusera até um hino, chamado Bichos da Inglaterra, que, ironicamente, o narrador de Orwell diz situar-se entre “Clemetine” e “La cucaracha”. O discurso e o hino tiveram o efeito de uma bomba. A algazarra foi tanta, que o Sr. Jones acordou e acabou com a festança.

O visionário porco Major morreu pouco tempo depois. Dois jovens porcos, Napoleon e Snowball, foram então alçados ao comando da bicharada e batizaram a nascente filosofia do Major de Animalismo.

“Napoleon era um porco berkshire de grande porte e aparência assaz feroz, o único de sua raça na fazendo, pouco afeito à conversa, mas com reputação de conseguir o que queria. Snowball era um porco mais vivaz que Napoleon, de fala mais ágil e engenhoso, mas não era considerado dono da mesma profundeza de caráter.” (páginas 41/42)

Tipos vão se delineando, então. Temos Mollie, uma égua frívola e narcisista. De um modo geral, os cavalos continuam sendo meio imbecis e só podem contribuir com a força bruta. As ovelhas são subservientes, pois é de sua natureza seguir um pastor. Há também Moses, um corvo adestrado, falador e que convence alguns da existência de um lugar chamado Montanha do Açúcar-Cande – o paraíso perdido para onde irão todos os animais um dia.

Os animais conseguem se organizar e tomar a Manor Farm. Expulsam o Sr. Jones, dono da fazenda e seus empregados. A mulher do dono, vendo tudo da janela da casa, junta algumas de suas coisas na mala e foge por outro caminho. Liderados por Napoleon e Snowball, os bichos adotam os sete mandamentos do Animalismo, a saber:

  1. O que quer que ande sobre duas pernas é um inimigo.
  2. O que quer que ande sobre quatro pernas ou tenha asas é um amigo.
  3. Nenhum animal deve usar roupas.
  4. Nenhum animal deve dormir em uma cama.
  5. Nenhum animal deve ingerir álcool.
  6. Nenhum animal deve matar outro animal.
  7. Todos os animais são iguais.

Os bichos contam com uma filosofia, um hino. Também agora têm uma bandeira e uma estrutura; há os Comitês Animais: o Comitê do Produção de Ovos, a Liga dos Rabos Limpos, o Movimento por uma Lã Mais Branca.

Derivado de um dos sete mandamentos e guindado à posição de palavras de ordem, os animais se repetem a máxima “Quatro pernas, bom, duas pernas, ruim” à exaustão.

Os animais sabem muito bem dos perigos de serem os novos donos da fazenda, cercados que estão por fazendeiros humanos. Estes tentam retomar a fazenda, divulgando mentiras como “A Fazenda dos Bichos” está em decadência, está falindo, etc. Não é o que acontece. Para progredirem, os próprios animais vendem seus produtos e, com o dinheiro, realizam melhorias. Os pombos são encarregados de observarem os humanos e trazerem as notícias, funcionando como verdadeiras mídias sociais.

Pouco a pouco, disputando o poder, Napoleon e Snowball começam a discordar. Esta discordância se torna tão intensa que Napoleon toma o poder só para si, joga os cães que, em segredo, formam sua tropa de choque, sobre Snowball e dá um golpe de estado. Realiza uma rebelião dentro de uma rebelião.

Squealer é outro porco, sob as ordens de Napoleon, com a função de divulgar fake news, sempre que for do interesse do chefe. É uma espécie de “ministro das comunicações”. Induz, manipula, confunde. A tempo: a palavra inglesa squealer significa “delator”.

Esta obra é muitíssimo conhecida, por isso, não vou me incomodar com spoilers. Sempre haverá, não obstante, quem não tenha ouvido falar dela; a estes, direi que em nada os spoilers comprometem a leitura, pois o grande lance do livro é ver como as coisas, pouco a pouco, vão acontecendo em analogia com os acontecimentos da época e, ainda, com o mundo no qual vivemos.

O mito vai-se construindo:

“Napoleon, agora, jamais era referido simplesmente como ‘Napoleon’. Sempre se referia a ele, em estilo formal, como ‘Nosso Líder, Camarada Napoleon’, e os porcos gostavam de inventar-lhe títulos tais como Pai de Todos Os Animais, Terror da Humanidade, Protetor do Rebanho, Amigo dos Patos e congêneres. Em seus discursos, Squealer falava, com lágrimas a lhe rolar pelas bochechas, da sabedoria de Napoleon, da bondade de seu coração e do profundo amor que dedicava a todos os animais de toda parte, mesmo e especialmente aos animais infelizes que ainda viviam na ignorância e na escravidão em outras fazendas. Tornara-se habitual dar a Napoleon o crédito por todo feito bem-sucedido e todo golpe de sorte. Com frequência se ouvia uma galinha comentar com outra: “Sob a orientação do nosso Líder, Camarada Napoleon, botei cinco ovos em seis dias”; ou duas vacas, desfrutando de água no tanque, exclamavam: “Graças à liderança do Camarada Napoleon, como é excelente o gosto desta água.” (página 113)

A ironia de Orwell, através da boca do seu narrador instituído, nos dá a notícia de que logo-logo os porcos estavam recebendo um quartilho de cerveja por dia, com dois litros para o consumo do próprio Napoleon. Os suínos ocupam a casa da fazenda e suas refeições são servidas em terrinas Crown Derby.

Certo dia, surpreendem Napoleon caminhando ereto, sobre duas pernas. E a máxima que, à força de tanta repetição, sabiam de cor, fora alterada. Agora, era: “Quatro pernas, bom, duas pernas, MELHOR”. E poucos se incomodaram, quando leram no muro, no lugar onde outrora estavam estampados os sete mandamentos, estava um só: “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros.”

Há livros que envelhecem, irremediavelmente. Entretanto, há os que não envelhecem, pelo menos, enquanto a humanidade for o que é.

A Revolução dos Bichos é uma obra-prima porque teve muito a dizer a sua época e continua tendo a dizer à atual. Concebido, em parte como uma crítica direta à revolução comunista, o autor não circunscreveu sua crítica social à sua época, dotando seu texto de universalidade.

Napoleon é associado à figura de Stalin; impõe-se pela autoridade ditatorial. Snowball, mais ameno ou mais sagaz, é associado à imagem de Trotsky, o argumentador, o intelectual e que, depois, sofre a perseguição do comunismo. Morto no México, corre até hoje a teoria de conspiração de que fora assassinado pelo regime ao qual servira.

O texto límpido de Orwell nos possibilita ampliar a chave e entender Napoleon como a representação de qualquer detentor de poder que explore seus comandados. No lugar de “detentor de poder” quase disse político, referência indevida, corrigida a tempo.

Afinal, esta é uma obra literária. Qualquer semelhança com a realidade de qualquer país atual terá sido mera coincidência, claro.

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