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terça-feira, 21 de setembro de 2021

Resenha nº 171 - A Besta Humana, de Émile Zola

 


Título original: La Bête Humaine

Título em português: A Besta Humana

Autor: Émile Zola

Tradução, apresentação e notas: Jorge Bastos

Editora: Zahar Editores

Copyright: 2014

ISBN: 978-85-378-1291-4

Literatura francesa

 

Este volume faz parte de um projeto ambicioso de Émile Zola, Os Rougon-Macquart: História natural e social de uma família sob o Segundo Império. São vinte volumes lançados entre os anos 1871-1893. É comum comparar-se o projeto de Zola com o de Balzac – outro mestre francês – pela extensão de obra, acompanhando a saga de uma época. Entretanto, esta série de livros não se fixa na análise dos valores de uma geração anterior; ela será uma “consequência da evolução científica do século”.

Contemporâneo seu é O Médico e O Monstro, de Robert Louis Stevenson. À época desta história, a Europa vivia a Revolução Industrial, entronizando o cientificismo e as máquinas que vinham para tomar o lugar do homem. Situada na segunda metade do século XVIII, tal revolução estabeleceu as bases do que viria a ser o capitalismo.

Não será nem preciso dizer, a partir deste momento temos a exploração excessiva dos recursos naturais, pois através da mecanização crescente foi possível aumentar a produção. Como segunda consequência, veio também a exploração da mão de obra, desvalorizada pelo emprego das máquinas. Assim, o século XVIII também viu aumentarem movimentos e reivindicações trabalhistas por direitos e garantias.

A Besta Humana é um clássico. Personagens como Séverine, Roubaud, Jacques, Cabuche, Louisette desfilam nas páginas desta obra. Sem contar com Lison, a locomotiva conduzida por Jacques, ela mesma uma personagem importante no contexto desta história.

O primeiro parágrafo:

“Ao entrar no quarto, Roubaud pôs em cima da mesa o pão de meio quilo, o patê, a garrafa de vinho branco. Pela manhã, antes de descer para o trabalho, a velha Victoire havia deixado as brasas do fogão encobertas com tanta cinza que o calor era sufocante. O subchefe de estação abriu então uma janela, fincou os cotovelos no parapeito e ali ficou.” (página 21)

Certas ideias positivistas estão presentes aqui. Por exemplo, o narrador utiliza o recurso da imagem do protagonista refletida num espelho para proceder a uma análise física. São acionadas as teorias biantropológicas e a frenologia do italiano Cesar Lombroso. Segundo Lombroso, da conformação física, pela observação do crânio de uma pessoa, podia-se deduzir se ela seria um “criminoso nato”:

“A meia hora soou. Roubaud andava de um lado para outro e, ao menor barulho, virava o ouvido na direção da escada. Na falta do que fazer, passando diante do espelho, parou e olhou para si mesmo. Não envelhecera tanto, chegava aos quarenta sem que o ruivo ardente dos cabelos encrespados clareasse. A barba, deixada inteira, mantinha-se espessa, alourada de sol. De altura mediana, mas dono de extraordinário vigor, não tinha do que reclamar, satisfeito com a cabeça ligeiramente achatada, testa curta, pescoço grosso, rosto redondo e sanguíneo, iluminado por dois olhos vivos. As sobrancelhas se juntavam, dando à sua testa a pelagem dos ciumentos. Como se casara com mulher quinze anos mais moça, essas averiguações frequentes no espelho o tranquilizavam.” (página 25)

Se a frenologia, já naquela época sofria contestações, isto não impedia que ela granjeasse muita fama e conquistasse muita gente. O fato é que tal estudo nunca teve fundamentação científica.

Roubaud ocupa o cargo de subchefe de estação ferroviária da Compagnie de l’Ouest. Ele tem como esposa Séverine – importante personagem desta história. Filha caçula  do jardineiro, já falecido, que trabalhava na casa do presidente da Companhia férrea, Sr. Grandmorin. Ele a  tomara sob seus cuidados, sendo seu padrinho e tutor; Séverine servia como dama de companhia de Berthe, filha do Sr. Grandmorin.

O narrador de Zola procura caracterizar aquele casamento; Séverine é mostrada como superficial, um tanto coquete (para servir-me de um termo da época). O marido apaixonado tudo lhe perdoa, apesar de aquela superficialidade lhe trazer suspeitas quanto à fidelidade da mulher:

“Tudo nela exalava tanta sinceridade, tinha aparência tão cândida e direita que ele a apertou forte nos braços. Era como sempre terminavam as suas suspeitas. Ela se abandonava, contente com os afagos. E o marido a cobria de beijos, que ficavam sem resposta. Era esta, inclusive, a sua obscura intranquilidade, pois a passividade infantil parecia vir de uma afeição filial, sem despertar a mulher.” (página 27)

Numa cena capital para todo o restante da trama, Séverine e o marido estão sentados na cama, quando Roubaud observa um anel de ouro, com o formato de uma serpente – usado no mesmo dedo da aliança. Distraidamente, a mulher lhe diz ter sido um presente do padrinho, o Sr. Grandmorin.

O marido se torna cheio de suspeitas, pois a esposa lhe havia dito, tempos atrás, ter sido aquela joia um presente da mãe dela. Tenta se justificar diante do evidente ciúme de Roubaud, mas o estrago está feito. Ele se torna enlouquecido de raiva: a sua Séverine o traíra.

“— Confesse que dormiu com ele, santo Deus! Ou meto-lhe a faca na barriga!

Ele a mataria, via-se nitidamente em seu olhar. Ao cair, Séverine ainda havia percebido o canivete aberto em cima da mesa. Reviu o brilho da lâmina, achou que Roubaud estendeu o braço, buscando a arma. Uma grande indiferença a invadiu, um abandono de si e de tudo, uma necessidade de terminar com aquilo.

— Está bem é verdade. Deixe-me ir embora.” (página 40)

Deixemos, por enquanto, este complicado casal. É preciso falar um pouco de outro personagem, Jacques Lantier, maquinista da locomotiva Lison. Jacques é também uma pessoa estranha, pertencente à galeria de seres com compulsões de matar sem motivo aparente. Taras assim foram muito bem exploradas pela escola naturalista, à qual pertence nosso Émile Zola.

A locomotiva tivera uma biela quebrada. Por isso, os homens escalados para trabalharem nela tiveram folga. Jacques Lantier, então, fica no meio do caminho, na localidade de Croix-de-Maufras. Trata-se de uma casa isolada, quase à beira da estrada de ferro, pertencente à tia de Lantier, uma senhora de quarenta e cinco anos, acamada.

No quintal, Jacques avista Flore e a cena é indicativa da tara dele:

“— Boa tarde, Flore – ele respondeu com simplicidade.

Mas os olhos dele, grandes e pretos, semeados de brilhos dourados, se turvaram com uma névoa pardacenta que os aclarava. As pálpebras bateram, o olhar se desviou num súbito desconforto que parecia chegar às raias do sofrimento. O corpo inteiro, instintivamente, se contraiu.

Imóvel e fitando fixamente o rapaz, ela percebeu a reação involuntária que ele, no entanto, rapidamente se esforçava para controlar, como sempre que se aproximava de uma mulher. A moça pareceu ficar séria e triste. Querendo disfarçar o quanto estava pouco à vontade, o recém-chegado perguntou se a mãe dela estava em casa, apesar de sabê-la doente, impossibilitada de sair. A moça respondeu apenas com um aceno de cabeça, afastando-se em seguida para que ele pudesse passar sem que se encostassem, e voltou ao poço calada, a postura reta e orgulhosa.” (página 55)

A estada de Jacques em Croix-de-Maufras enseja uma virada de enredo, pois ele presencia um assassinato a bordo de um trem.  

“E Jacques, muito distintamente, viu, nessa precisa fração de segundo, através dos vidros faiscantes de um cupê, um homem segurando outro contra a poltrona e cravando uma faca em seu pescoço, enquanto uma massa escura, talvez uma terceira pessoa, talvez uma bagagem despencada, fazia peso sobre as pernas convulsivas de quem estava sendo assassinado.” (página 75)

Temos um crime. E mais – temos o móvel de um crime – pois o elemento assassinado é precisamente o presidente da companhia, o Sr. Grandmorin, padrinho e tutor de Séverine. Não é um spoiler; o assassinato, anunciado nesta página 75, está muito no início do livro de 364. Esta não será uma narrativa em que o leitor não conheça o criminoso. O texto o diz com todas as letras e o suspense policial se constitui em como o personagem que investiga o acontecido, Dr. Denizet, conseguirá esclarecer tudo.

Zola insere elementos cruciais de trama policial neste clássico:

1)      Grandmorin tinha grande afeição por Séverine e a protegia;

2)      Há um testamento muito favorável ao casal;

3)   Não há, por enquanto, pistas conclusivas ou testemunhas decisivas para a     elucidação do crime.

Um enredo como este, mesmo se bem construído, seria pouco para justificar a fama deste A Besta Humana. Segue-se um estudo de personagens, como convém à escola naturalista, para quem o homem sempre sucumbe a seu lado mais sombrio.

O narrador de Émile não tem as mulheres em alta conta, como fica patente neste trecho:

“Camy-Lamotte foi obrigado então a fazer um gesto para que ela se sentasse, pois aquilo fora dito num tom perfeito, sem exageros de humildade nem de pesar, com a arte inata da hipocrisia feminina.” (página 139)

Anteriormente, disse que a locomotiva Lison era uma personagem importante. E eis uma passagem de onde se pode depreender tal condição, se não bastasse para tanto, a caracterização da Lison ao longo da história.

Às páginas 157 fica evidente, a locomotiva é um ser amado pelo seu condutor, Jacques Lantier, o mesmo Jacques que se configura como portador de uma tara assassina. Nele, manifestam-se os dois impulsos – Freud diria pulsões – de Tânatos (morte, destruição) e Eros (amor, criação)

Outro trecho elucidativo é quando Pecqueux, o foguista, se atrasa e irrita Lantier. Letra por letra, eis o que nos diz o narrador de Zola:

“Apesar de dez anos mais moço, o maquinista era paternal com o foguista, abafava os seus defeitos, deixava-o dormir uma hora quando estava bêbado demais. E Pecqueux retribuía o gesto com uma devoção de cão fiel. Independentemente disso, era ótimo ajudante e experiente na profissão, a despeito de suas bebedeiras. Diga-se que também amava a Lison, o que já bastava para o entendimento. Os dois e a locomotiva formavam verdadeiro ménage à trois, uma relação a três sem qualquer rusga.” (página 159)

Você, leitor esperto, há de me perguntar: mas, e Séverine? A história continua sem ela? Calma, meu caro, evitei comentar mais coisas sobre ela, nesta resenha que já vai longa. Há subtramas, subtextos, como num jogo de xadrez. Sossegue, o “destino” reservará a ela algumas maldades.

Pois fica extremamente clara a proposição de cunho naturalista desta obra magnífica, qual seja, a de que o homem é escravo de sua hereditariedade de besta-fera. Em Jacques, convivem, como já disse, a pulsão ambígua Tânatos-Eros. A natureza violenta do ser humano, como um animal, domina-o sem sublimação.

Há mais coisas a comentar, mas este não é um estudo acadêmico-literário. As locomotivas constantes da história – tanto a Lison, quanto depois, a 608 – são personagens fundamentais. Elas representam a Revolução Industrial, que exacerbou a ganância, em detrimento do trabalhador. Afinal, neste romance, ninguém se salva. Todos são lobos.

Que romance este A Besta Humana!

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