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sábado, 3 de novembro de 2018

Resenha nº 135 - Os Leões de Bagdá, de Brian K. Vaughn e Niko Henrichon


Resultado de imagem para livro os leões de BagdaTítulo original: Pride of Baghdad: The Deluxe Edition
Título em português: Os Leões de Bagdá: Edição de Luxo
Roteiro: Brian K. Vaughn
Desenhos: Niko Henrichon
Editora: Panini Books (Vertigo)
Copyright:2018
ISBN: 978-85-8368-284-4
Gênero: Graphic Novel
Origem: América do Norte
Páginas: 168
Bibliografia Brian K. Vaughn: Runway (Fugitivos), 2003; Pride of Baghdad, 2006; Y: The Last Man, 2002 ; Ex-Machina, 2004. Prêmios : Eisner Award em 2005, 2013 e 2014.

Sempre tive uma ligação muito forte com revistas em quadrinho. Lembro-me de ter muitos exemplares de O Fantasma, Roy Rogers, Cavaleiro Negro, Zorro, Tio Patinhas, Mickey, Pato Donald. Havia também o Batman, o Super-homem, Flash Gordon, Príncipe Valente. A maioria delas, em branco e preto. Eu as levava sempre para trocar por outros exemplares, na porta de um cinema de bairro, pertencendo ao meu primeiro clube de leitura, ainda que informal. Minhas professoras, na época, vivam dizendo que não devíamos ler este tipo de literatura, certamente elas viciavam e deixavam os leitores preguiçosos, por causa do grande foco nas imagens. Devorava tanto aquelas revistas quanto os livros mesmo, e sou prova de que a arte sequencial – como é chamada agora – nunca tornou leitores preguiçosos. Depois, veio uma fase em que me distanciei destas publicações; hoje, volto a me aproximar delas com o mesmo gosto de antes. As Graphic Novels – Romances Gráficos – são edições maravilhosas, bem-cuidadas: Sandman, de Neil Gaiman, Jornada nas Estrelas, Guerra nas Estrelas.

Os Leões de Bagdá, com argumento de Brian K. Vaughn, desenhos de Niko Henrichon e letreirismo de Todd Klein é uma festa para os olhos. Em 168 páginas belas, conta-se a história verídica de quatro leões que fugiram do zoológico da cidade de Bagdá, bombardeada pelo exército americano na Guerra do Iraque, conflito que teve seu início em 23 de março de 2003. Brian utilizou a realidade dos fatos, até certo ponto, emprestando à história um tom de fábula distópica, em que os personagens centrais são o leão Zill, as leoas Safa e Noor e o filhote macho, Ali; o antagonista será o enorme urso preto, Fajer. É uma produção luxuosa, de capa dura, contendo ainda muito material de apoio, como dossiê de personagens, o argumento escrito por Brian, os comentários feitos pelo roteirista sobre a simbologia da fábula.

Ficam muito claras as águas onde Brian bebe: Neil Gaiman, uma pitada do desenho da Disney, O Cão e A Raposa; algo de O Rei Leão, pincei também ecos de O Corvo, célebre poema de Edgar Allan Poe, referências ao 1984 e A Revolução dos Bichos, ambos de George Orwell. A maior parte destas observações estão explícitas no próprio esboço dos personagens e roteiro do livro.

O enredo: na Guerra do Iraque, caçando Saddam Hussein, os aviões americanos despejam bombas sobre a capital, Bagdá, e quatro leões fogem do zoológico da cidade. Perambulam pelas ruas, cheias escombros, famintos e magros. Entram no palácio da família Hussein e lá têm de enfrentar um gigantesco urso negro. Terão também, de enfrentar o exército americano.

Os Leões de Bagdá começa com um pássaro, possivelmente um corvo, repetindo à exaustão “o céu está caindo! O céu está caindo!” O ambiente é ainda o zoológico, onde tratadores garantem a subsistência dos animais ali presos. Os diálogos entre os animais são inteligentes e ajudam a caracterizar a personalidade de cada um destes personagens.

Assim, Zill é um leão que viveu em liberdade, na África, por pouco tempo; é agradecido pela comida que lhe dão, apesar de sentir um pouco de saudade dos tempos livres. É o patriarca da família leonina.

Safa é uma leoa mais velha, ex-amante de Zill, cega de um olho, de uma refrega com um leão nos tempos da África. Ela não entende como os outros leões pensam em deixar a segurança do zoológico.

Noor é a atual amante de Zill, mãe do pequeno Ali. Extremamente protetora em relação ao seu filhote, Noor mal se lembra dos tempos africanos, mas tem certeza de que a liberdade é preferível à segurança e conforto do zoo.

Ali é um filhote buliçoso, à cata de aventuras (leia-se, presas), não conhecendo nada do que seja a vida selvagem. Inconsequente, como são normalmente os muito novinhos, tem, entretanto, respeito pelos seus familiares.

Fajer, por fim, é o antagonista da história, um urso negro e que não poupa ninguém. Muito forte e selvagem, fugiu do zoo quando uma bomba arrebentara com o seu espaço; não suporta dividir seu território com qualquer outro animal (o encontro se dá no palácio dos Hussein).

Os traços com que são desenhados estes personagens não os antropomorfiza; são representações reais de leões, andando de quatro, tendo relações sexuais, atacando suas presas. Entretanto, possuem uma psique humana e têm o dom da comunicação por palavras.

Noor representa os jovens reformistas iraquianos, aqueles que desejam, de fato, uma democracia. Ela tenta, há muito tempo, convencer os outros animais do zoo de que é possível fugir, desde que todos se juntem num mesmo projeto; ela prega no deserto, entretanto, pois ninguém leva em conta o que ela pretende.

Safa, a leoa mais velha do bando, simboliza aqueles iraquianos que são fanáticos por Saddam Hussein. Quando, após a destruição do zoo, e liderados por Noor, os leões se afastam do seu cativeiro, ela simplesmente os segue, sem qualquer convicção, porque sabe que, se ficar entre os escombros do zoo, ela não terá chance de sobrevivência.

O filhote Ali representa as crianças iraquianas, que, em seu alheamento infantil, não entendem o que acontece realmente, quem seja Saddam Hussein ou mesmo George Bush, presidente americano que ordenou o ataque às terras iraquianas. Seu mundo de referência é sua família.

Fajer, o urso-antagonista, encarna os leais a Saddam e os terroristas dispostos a fazer qualquer coisa para se vingar do inimigo. Ainda no campo dos antagonistas, o próprio zoológico representa as forças repressivas e cerceadoras de Saddam Hussein, mantendo em cativeiro todos os personagens.

Tanto os tratadores quanto os soldados do exército americano são identificados por detalhes – um braço, homens de costa, vultos ao longe – sem qualquer identificação, a não ser pelo uniforme e armamento.

Os Leões de Bagdá é uma obra de cunho social e político – político, aqui, em seu sentido mais amplo, aproximando-se do sentido de engajamento. Mas, é bem mais do que isso: propõe a aguda oposição liberdade/cativeiro. O jogo de interesses entre Noor (defensora da liberdade, ainda que corra risco de morte) e Safa, clara defensora do cativeiro com benesses (segurança, conforto) é discutido ao longo da história.

Entretanto, como disse Brian em seu roteiro, ele, Brian, não tem interesse em resolver a questão posta, não toma partido nem da liberdade com risco, nem do cativeiro confortável. A questão incômoda é colocada nas mãos do leitor, para que ele se posicione.

Parece que, no início, conforme relata o roteirista, pensou-se em colocar uma coruja para repetir “o céu está caindo”; entretanto, depois optou-se pela figura esguia de um corvo e aí é impossível não se pensar no mesmo corvo simbólico de Poe, repetindo seu exaustivo “never more (nunca mais)”.

Os Leões de Bagdá é um lídimo representante das Graphic Novels atuais. São muito evidentes as características literárias presentes na obra. Os diálogos são bem estruturados, há uma preocupação, um cuidado artesanal, tanto no nível de linguagem quanto nos desenhos. Uma paleta de cores integrada ao que retrata cada capítulo só acrescenta elementos expressivos à mensagem que se quer construir.

Cada um dos seis capítulos, em que não há identificação por título, há uma abertura com um quadrinho ocupando a página toda.

Recomendo entusiasticamente a leitura deste Os Leões de Bagdá. Felizmente, temos aqui no Brasil editoras especializadas na produção de caprichada literatura em quadrinhos, dos quais a mais nova tem um nome, no mínimo, curioso: Pipoca & Nanquim. Na França, por exemplo, as Graphic Novels contam com uma importante produção e distribuição, inclusive com excelentes adaptações de clássicos da literatura, como pude comprovar numa livraria visitada em Paris.

A Bélgica é, talvez, o maior centro de produção destes livros de arte sequencial. Há até um museu dos quadrinhos; que pena, quando passei por lá era feriado e o museu estava fechado.

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