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domingo, 25 de novembro de 2018

Resenha nº 138 - O Segredo do Oratório, de Luize Valente


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Título Original: O Segredo do Oratório
Autora: Luize Valente
Editora: Record
Edição: 4ª
Copyright: 2012
ISBN: 978-85-01-09854-2
318 páginas
Gênero: Romance (Histórico)
Bibliografia da autora – Documentários – Israel: Notas e Raízes (em coautoria com Elaine Eiger), 1999; Caminhos da memória: A trajetória dos judeus em Portugal (em coautoria com Elaine Eiger), 2002; A estrela oculta do sertão (em coautoria com Elaine Eiger), 2005; Romances – O Segredo do Oratório, 2012; Uma praça em Antuérpia, 2015; Sonata em Auschwitz, 2017. Prêmios: Melhor documentário no Festival de Cinema Judaico de São Paulo, com A Estrela Oculta do Sertão, 2005; Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, com o romance O Segredo do Oratório, 2013.

A leitura do livro em mãos não estava engrenando. Sofri para concluir as trinta primeiras páginas. Não que o livro fosse ruim, longe disso. O primeiro conto já evidenciava a qualidade do texto. Mas, às vezes, é um livro certo num momento errado. Ou o tema, que no momento não nos sensibiliza. O fato é que mudei de livro, fui ler este O Segredo do Oratório, de Luize Valente. Já havia lido e resenhado o Uma  Praça em Antuérpia (resenha 124, neste blogue) e gostado muito. Lá estava o romance histórico, evidenciando muita pesquisa, mas com a mesma pegada de suspense. Desta vez, a história envolvia a legitimidade de uma descendente judia; ela queria reconhecida sua ascendência de cristã-nova, no Brasil. E enquanto nos atínhamos ao enredo empolgante, aprendíamos muita coisa a respeito deste tais cristãos-novos.

Luize Mendes Pinheiro Valente nasceu no Rio de Janeiro e é de ascendência portuguesa e alemã. Formada em jornalismo e pós-graduada em Literatura pela PUC-RJ, é fascinada por História, notadamente ligada às questões judaicas e os refugiados dos tempos de guerra. Como se vê em sua bibliografia acima, escreveu três romances: O Segredo do Oratório, Uma praça em Antuérpia e Sonata em Auschwitz. Seus livros já foram editados fora do Brasil; Uma praça em Antuérpia ganhou edição portuguesa pela editora Saída de Emergência, integrando a coleção História de Portugal em Romances. O Segredo do Oratório ganhou uma tradução holandesa pela Nieuw Amsterdam.

Em 2017, os direitos cinematográficos de O Segredo do Oratório e de Uma praça em Antuérpia foram adquiridos pelos produtores Breno Silveira (de 2 Filhos de Francisco) e Paula Fiuza (diretora do documentário Sobral).

Enredo: A professora Ethel Mendelstein vai a Recife dar uma conferência sobre os judeus submetidos à inquisição no Brasil, levando Ana como sua assessora. Mal sabe Ana que o destino lhe reserva uma verdadeira aventura, colocando-a em contato exatamente com Ioná, uma descendente judia que também já pesquisava, por conta própria, sua ascendência. Ioná quase derruba Ana na rua, sem saber quem ela é. Mais tarde, ao tentar um lugar para a conferência de Ethel, Ioná consegue fazer chegar por Ana um bilhete a ser entregue à conferencista. É o começo de tudo:
“Pegou a caneta e o bloco que sempre carregava na mochila. A perna como apoio, começou a escrever um bilhete. Tinha que ser breve para que ela não desistisse de ler só de olhar, tinha que ser instigante para que ela ficasse curiosa.
“Cara professora Ethel Mendelstein,
Meu nome é Ioná. Sou médica, nascida na Paraíba, e há um ano descobri que pertenço a uma família cristã-nova. Nenhuma grande surpresa para a senhora, já que os conversos chegaram ao território paraibano desde as primeiras expedições da colonização. O que me fez escrever este bilhete foi a revelação feita por uma tia-avó...” (página 32)
A professora Ethel, entretanto, não poderá dar atenção ao caso, por estar com viagem marcada para os EUA. Designa, então, sua assessora para ficar e apurar o que Ioná terá para dizer. Ana vê aquilo como uma possibilidade para, finalmente, deixar os muitos livros sobre o assunto e mergulhar numa pesquisa de campo.

Assim, Ana oferece ir de carro com Ioná para a cidadezinha de Córrego do Seridó, no interior paraibano. Uma viagem de 400 quilômetros, duas quase-estranhas dentro de um carro. E, enquanto viajam, Ana se inteira da história daquela marrana, que é como também são conhecidos os cristãos-novos.

A pressa de Ioná se justifica: ela recebera uma mensagem, no sentido de que viesse logo para aquela cidade, pois sua tia-avó (também de nome Ioná, como ela) estava à beira da morte. Apesar de todo o esforço, quando elas chegam a Córrego do Seridó, a parenta já havia falecido; conseguem apenas participar do enterro, em que vários rituais judaicos são reconhecidos por Ioná.
Mais tarde, ela fica sabendo que a tia-avó, prevendo a possibilidade de a sobrinha-neta não chegar a tempo, deixara-lhe instruções:
“— Sua tia-avó esperou o mais que pôde, mas Deus quis levá-la antes de sua chegada... Ontem, quando os anjos se aproximavam e quase se ouviam as trombetas do céu, pediu que as cantadeiras, o médico e o padre saíssem. Apontou o retrato e me fez prometer que o entregaria somente a você.” (página 110)
Os eventos a seguir levam Ana e Ioná a se hospedarem na casa do prefeito (que não por acaso é parente de Ioná) e depois, a visitarem uma propriedade erma, que em tempos melhores fora uma fazenda próspera. O atual proprietário, uma espécie de ermitão insociável e esquisitão faz parte do quebra-cabeça do passado de Ioná.

A obsessão por decifrar seu passado e ser reconhecida como judia convertida levam a protagonista médica até os Estados Unidos, mais especificamente na cidade de New York, onde ela rastreia sobreviventes dos primeiros judeus egressos do Brasil, quando o governo holandês de Maurício de Nassau terminou em nosso país.

Esta parte da história tem-se que explicar melhor. Os cristãos-novos no Brasil vieram de Portugal. Nossos irmãos lusitanos eram bastante tolerantes com os judeus, durante a inquisição. Entretanto, quando Portugal se associa à Espanha, uma das cláusulas para tal aliança era os lusos submeterem os judeus ao Tribunal da Inquisição. A saída possível foi a imposição de os judeus perseguidos serem aceitos, desde que jurassem publicamente fidelidade ao catolicismo, renegando sua fé, sendo chamados, a partir daí, de judeus conversos ou cristãos-novos.

Mas mesmo este arranjo teve problemas. Para ficarem “definitivamente” a salvo de qualquer ameaça de extermínio, vieram em massa para o Brasil, sobretudo para a área do nordeste. A Holanda sempre foi um país que lhes garantia sobrevivência; assim, foram se proteger, em nossas terras, sob a força política de Maurício de Nassau, holandês.

Para se garantirem – só estavam a salvo nas áreas em que o poder holandês era forte, sobretudo nas cidades grandes – os cristãos-novos se “camuflaram” de católicos, numa espécie de sincretismo religioso, obedecendo publicamente a preceitos católicos, mas na intimidade de seus lares abraçando a fé judaica.

Defenderam-se dos católicos constituindo endogamias, ou seja, casamentos entre os da própria família – tios distantes com sobrinhas, primos com primas – a fim de preservarem seus costumes e sua fé manifestada nos recessos dos lares. Isto justificou porque Ioná encontrou, em Córrego do Seridó, tantos parentes em casamentos consanguíneos.

Outro personagem importante, além dos já apresentados (a professora Ethel, Ana e Ioná), é Pedro, um genealogista (alguém que é especialista no estudo das origens das famílias e na confecção de árvores genealógicas) e por quem Ana se afeiçoa. Um outro relacionamento confuso, complicado, acontece entre Ioná e Daniel – outro personagem, mas sem a importância de Pedro. Pedro vai auxiliar em muito a pesquisa das duas, pois não só tem profundos conhecimentos de genealogia dos judeus, como também tem bons relacionamentos com outros profissionais.

Já na cidade de New York, Ioná se hospeda na casa da  brasileira Eva. Ela a leva até um dos locais icônicos dos judeus egressos do Brasil:
“— O primeiro cemitério — continuou Eva — fica na parte baixa da ilha, em Chinatown. Foi fundado ainda no século XVII, em alguns anos depois da chegada dos judeus  fugidos do Recife – como você bem sabe – em 1654! Já  este aqui é de 1805 mas foi desativado com menos de trinta anos... e parte dele destruída por causa das obras de expansão  que cortaram a 11th. Muitos corpos foram transferidos para um outro cemitério da comunidade portuguesa, o terceiro, que fica  a dez ruas daqui, na 21st. Resistiu até meados do século XIX... por volta de 1850 a prefeitura proibiu enterros em Manhattan... a partir daí os cemitérios foram para o Queens, do outro lado do rio!” (página 260)
O que Ioná em crise busca na Big Apple, como ficou conhecida a grande cidade americana, é seu reconhecimento oficial como cristã-nova e, para isto, marca uma reunião com o tribunal rabínico, o Beit Din, onde poderá conseguir seu intento, apresentando sua história, seus argumentos e seus documentos.

A história poderia terminar por aqui e já seria uma boa história. Investigações, viagens, descobertas, a obsessão de Ioná, os problemas particulares de Ana, a aura de mistério a ser decifrado, envolvendo o oratório que aparece na fotografia deixada pela tia-avó que falecera, o estranho pedido desta para que Ioná fosse rezar por uma menina morta e enterrada na propriedade do primo esquisitão...

Mas Luize Valente é uma ótima escritora, sabe das estratégias de se escrever um romance; e, quase no final (não é um spoiler), a figura apaixonante do velho cristão-novo Menachen – em quem Ioná tinha esbarrado antes, se desculpando em português e com surpresa recebendo uma resposta dele também em português – uma pessoa para quem o acúmulo dos anos vividos trouxe uma sabedoria a toda prova:
“— Mas que coincidência encontrar o senhor aqui! Confesso  que ouvir o português na Sephardic House me deixou emocionada! No dia seguinte voltei lá mas acabei não entrando... – falou Ioná, sem jeito.
— Eu não acredito em coincidências, acredito em destino – respondeu ele sem estranhamento, como um velho conhecido. — E se você está aqui neste exato momento, a poucos minutos do surgimento da primeira estrela no céu, é um sinal para que este velho ermitão a convide para o Shabat! É uma honra ter em minha casa uma conterrânea de meus antepassados, da terra em que nunca estive! – As palavras saíram precisas, com forte acento português.
Ioná custou a acreditar que estivesse em frente de um judeu nascido nos Estados Unidos que nunca tinha cruzado o Atlântico ou descido as Américas.” (páginas 283/284)
O Segredo do Oratório, um grande romance histórico, feito por quem já havia mergulhado, em regime de coautoria, em algumas produções de documentários sobre os judeus. Este é um capítulo importante da história do Brasil, infelizmente desconhecido dos estudantes. Eu mesmo desconhecia quase por completo esta parte da história; fico feliz por resgatá-la, por meio de um romance tão bom.

Narrativas históricas têm esta característica: nos ensinam história de uma maneira prazerosa, humana. Não é à-toa que gostei tanto de ter lido o tijolaço Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, em que outra importante fatia de nossa história é desbravada, a revolta dos malês.

Coloco apenas um senão, algo que me soou como uma informação desnecessária para o leitor: Luize Valente insiste na importância de um ferro de marcar gado, visto na varanda da casa do prefeito de Córrego do Seridó. O leitor constata, a certa altura do texto, que tal ferro de marcar tem o feitio de uma chave, se se descartar a parte que queima o couro dos animais. Tal informação não serve para nada. Morre aí. Implicância minha? Pode ser, afinal, todos nós temos nossas perspectivas de leitura. É que eu esperava, sinceramente, induzido pelo clima de mistério do romance, que tal chave, disfarçada de ferro de marcar, servisse afinal para abrir alguma revelação até então oculta. O pretenso deslize em nada desmerece O Segredo do Oratório.

Recomendo esta leitura a quantos leiam este modesto blogue. Não acho, como li em um parecer de uma leitora, que este livro só interesse a quem seja judeu ou cristão-novo, ou a quem tenha interesse específico no assunto tratado. Não, é um livro muito bom, a gente o lê com prazer estético e histórico.

Talvez, no mês de dezembro seja a hora de ler o terceiro livro de Luize (já estou querendo fazê-lo), Sonata em Auschwitz. Tenho certeza, vou gostar; as leituras de Uma Praça em Antuérpia e O Segredo do Oratório me garantem isso.


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