Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

domingo, 19 de julho de 2020

Resenha nº 161 - Os Novos Moradores, de Francisco Azevedo


Os novos moradores por [Francisco Azevedo]Título original: Os Novos Moradores
Autor: Francisco Azevedo
Editora: Record
Edição: 3ª
Copyright: 2017
ISBN: 978-85-01-11057-2
Gênero Literário: Romance
Origem: Literatura Brasileira

Francisco Azevedo já era meu conhecido. Dele, já lera Arroz de Palma, resenhado neste blogue. Como no livro anterior, neste Os Novos Moradores Azevedo volta à ambiência que o consagrou – Arroz de Palma se tornou um sucesso de público e de crítica. Aqui também o ambiente é o familiar. Mas, lá como cá, engana-se quem pensa estar diante de dramas miúdos e somente bem-escritos. Desfilam situações incômodas, desafios, anseios por liberdade. Pode-se ir rapidamente do inferno ao paraíso, muita vez sem se passar pelo purgatório. Tempos modernos, questionados estão os conceitos antigos de família. Que escritor é este Francisco Azevedo! Seu estilo poético se detém sobre objetos domiciliares para deles extrair aspectos da intimidade dos personagens. Leitura fluente, apaixonante mesmo. Os Novos Moradores, na minha opinião, não fica nada a dever ao romance de estreia do autor. E olha, isto não é tão comum assim, conseguir duas obras tão boas em tão pouco espaço de tempo...

Francisco José Alonso Vellozo Azevedo nasceu no Rio de Janeiro, em 23/02/1951. É romancista, dramaturgo, roteirista, poeta e ex-diplomata. Começou a dedicar-se à literatura em 1967, quando venceu o concurso promovido pela Organização dos Estados Americanos (OEA).

Em 1978, publica seu primeiro trabalho, um livro de poesias, Contra Os Moinhos de Vento.  1984 nos dá A Casa dos Arcos (nome pelo qual é conhecido o Palácio do Itamaraty), com textos e poemas de sua lavra. 1994 nos traz a peça Casa de Prostituição Anaïs Nin; 1997, veio a comédia dramática Coração na Boca. Arroz de Palma surgiu em 2008 e em 2012, aparece Doce Gabito.

Tenho gosto especial – os que me leem já o perceberam – pelos parágrafos de abertura dos livros e aqui não será diferente:
“Idênticas na simplicidade dos traços. Duas fachadas em perfeita simetria – como se um só corpo a se olhar no espelho. Na aparência, amantes inseparáveis, unidas por invejável equilíbrio. Na intimidade, estranhas siamesas coladas pelo destino ou pelo acaso, quem poderá saber? Hoje, com o distanciamento e a isenção da maturidade, Cosme reconhece que, temperamentos opostos, ambas foram essenciais em suas vidas. A casa de cá – onde viveu até os 23 anos –, fria, desconfiada e tediosa. Enquanto a casa de lá – para onde se mudou depois –, atrevida, imprevisível, dionisíaca. Já era assim na época de Vicenza Dalla Luce, cantora lírica de gloriosa memória. Conhecida por sua raríssima voz e pelos lautos almoços e jantares que promovia – festas animadíssimas que, é claro, infernizavam a vida dos Soares Teixeira, seus vizinhos.” (página 19)
Pronto. Que nos diz este parágrafo inicial? Repare o leitor o modo pelo qual o narrador criado pelo autor nos apresenta as casas geminadas: perfeita simetria, amantes inseparáveis na aparência, estranhas siamesas na intimidade. São adjetivadas como uma, fria, desconfiada, tediosa; a outra, atrevida, imprevisível, dionisíaca. Pontos bastantes para caracterizarmos, de vez, as ditas casas geminadas como personagens deste excelente romance. E mais, há uma sombra, há um não dito pairando sobre os telhados – a casa de cá e dionisíaca – Dionísio é o nome grego para o romano Baco. Deus ligado aos ciclos campestres de colheita e plantio, ao vinho, aos sentidos, aos ciclos vitais de morte e nascimento; liga-se também à fertilidade. Prenúncio: vem aí um drama envolvendo sentidos, amantes, sexo.

O tempo passa, uma das casas geminadas muda de mãos. Mantém, entretanto, cada uma delas, suas respectivas personalidades. Morador da casa de cá, Cosme tem uma relação amorosa com Vicenza, residente na casa de lá. Entretanto, ela se muda, indo embora no verão de 1985 – para a alegria dos pais dele, pois Vicenza era trinta anos mais velha que o amante.

Fica sozinho o apaixonado Cosme; sozinho, na casa vazia, ele relembra seu amor:
“Cosme não pensa duas vezes, tira a roupa, entra no boxe, torneiras abertas ao máximo como era hábito seu. A generosa catadupa bate-lhe nas costas, no peito, no rosto. Olhos fechados, água escorrendo forte, ele relembra trechos da carta que lhe chegou na véspera. Descobre então que aquela última visita não celebra apenas a casa que lhe é tão especial. Celebra mais. Celebra a promessa feita a Vicenza de manter o espírito independente e livre! Ali mesmo, quando se despediram, ela lhe disse que, em dia não muito distante, ele entenderia que ambos haviam cumprido os seus papéis e que era hora de se aventurar em novas histórias, novos amores. Quem sabe algum assim da sua idade, excessivo e visionário como ele?
Cosme já não precisa da toalha, deixa-a lá mesmo caída na banheira – para quem está no paraíso, nudez é traje adequado. No quarto, o cenário pronto: velas e incensos acesos, os poucos itens harmoniosamente dispostos no chão que é todo ele mesa e todo ele cama. Vicenza se faz presente com a “Bachiana número 5”, de Villa-Lobos. O vinho é servido nos cálices, o pão é partido e posto nos pratos. A mão direita brinda com a esquerda aquele momento único. Juntas, como se numa oferenda pagã, levam à boca o sangue de Dionísio. Depois, o pão molhado no vinho é corpo triturado por impiedosos dentes. Corpo mastigado e ingerido sem o menor cuidado, porque o corpo de Dionísio não foi dado por nós nem nos redime os pecados. Porque o corpo de Dionísio é luxúria e êxtase e saudável perdição.”  (página 27)
Uma celebração em dois planos, certamente; num, plano da tradição do cristianismo, a celebração do amor incondicional que se dá por inteiro; noutro, o amor carnal, que se realiza por inteiro.

Mas, para a casa de lá mudam-se novos moradores. Inês, Pedro, Amanda e Estêvão. Saíram do Sul e vêm para o Rio de Janeiro. Um acidente doméstico tira a vida de D. Carlota, mãe de Cosme e Damiana e tal fato faz se aproximarem Amanda, o irmão desta, Estêvão, e Cosme.

Pela visão do narrador – um narrador onisciente seletivo – ficamos sabendo de uma série de não ditos, agasalhados sob os telhados daquelas duas famílias e um deles é o da própria Inês, mãe de Amanda e Estêvão:
“Inês volta ao presente. Com gestos conformados, tira as fronhas dos travesseiros e solta o lençol de forro para dobrá-lo também. O colchão despido é voo à adolescência: Ela e aquele colega de faculdade que mal conhecia se espremiam na mesma cama de solteiro em busca do êxtase. Depois, a paz, o sono, agradecido. Na manhã seguinte, o se dar conta sem culpa, o arrancar os panos sujos de sangue e pronto, só lavar. Água e sabão servem para isso. Só que manchas aqui não estão na cama. Lá, a juventude, o prazer, a poesia na contestação, no afrontar os intolerantes e preconceituosos. Os sonhos de mudar o mundo! Aqui, a dor, a decepção, a desesperança, por quê? Não teriam os filhos recebido dos pais a rebeldia, a audácia, a mesma paixão pelo risco? E a obsessiva busca da verdade, não terão também herdado?” (página 231)
O que acontecera com os dois filhos muda a história, transforma toda a família, que terá de se desfazer  e nesse desfazimento, deixar entrar novas formas de ver e de sentir, para, muito tempo depois, retornarem os elementos, a recompor a família. Os tempos são outros, tem mudado o conceito de família, que abre espaço para grupos compostos por dois pais e filhos, duas mães e filhos, além do cardápio tradicional, pai e mãe e filhos. Mais que isso, não adianto, sob pena de irreparável crime de spoiler.

Este jogo de claro-escuro, ditos e não ditos – com supremacia na história para os não ditos – prossegue. O que a filha Amanda vira, certa vez, não era bem o que vira, como nos conta a própria Dona Inês:
“Inês volta a se sentar ao lado da filha, cria coragem.
— Acontece que aquela aluna que você viu seu pai beijar no carro não teve culpa de nada.
— Não?
— Eu sabia de tudo. Eram fantasias minhas e de seu pai, jogo combinado. No fim das contas, a garota é que foi usada. Prepotente, pensava que havia seduzido o professor de renome, mas foi exatamente o contrário.
O impacto é grande. Olhos cheios d’água. Amanda leva algum tempo para assimilar a informação.
— Ela soube?
— Não. Seria cruel demais. Ela nos ajudou a viver a nossa fantasia, e nós deixamos que ela vivesse a dela. Ninguém saiu machucado.
— Bem criativo. Parece romance de Henry Miller e Anaïs Nin.” (página  287) 
Disse linhas acima que o narrador é onisciente seletivo. Isto porque, sabendo tudo o que se passa na cabeça e no coração dos personagens envolvidos, ele não nos revela tudo; astutamente, a bem do correr da história, ele seleciona e esconde fatos, como se vê nesta passagem: 
“Acontece que sobre Pedro Paranhos não nos é dado falar nada por enquanto, paciência. Há apenas a torcida para que esteja bem, enquanto insiste em se manter afastado assim. Como se fosse possível apagar o passado, esquecer-se de tudo e de todos. Perda de tempo, trabalho inútil. Tanta inteligência, para quê?” (página 314)
Outros fatos acontecem. Estêvão vai embora para Paris, reata o relacionamento com aquela Vicenza, separa-se dela, relaciona-se com uma francesinha, se separa dela. Volta ao Brasil. Enfim, a família modificada pelos acontecimentos se reorganiza, assim como as duas casas:
“Ao passar para as mãos de Cosme, a casa de cá ganhou vida, se reinventou, rejuvenesceu. Quando se olhou refletida em seu novo dono, era outra. Percebeu que o que a mantinha de pé não era o vigamento de ferro, era estrutura óssea. Nela, tudo respirava, tudo transpirava. O cimento virou pele, o tijolo virou carne. As portas tinham bocas e as janelas tinham olhos. Seu coração batia solto por toda parte, porque finalmente estava pronta para se unir à casa de lá. Cosme levou a proposta a Amanda, a Pedro e a Inês. Depois, conversou com Petra. Surpresa: Todos, algum dia, já haviam imaginado juntar as casas! Portanto, Orlando Salvatori Andretti ainda teve essa alegria. Dedicou-se ao projeto com entusiasmo adolescente e devoção anciã. E o fez de graça, tal seu contentamento. Dezenove de maio de 2015: a equipe da OSA Engenharia e Arquitetura Ltda. chegou disposta – euforia berlinense de 1989 –, e o muro que separava os jardins caiu em questão de horas.” (página 404)
A união das casas, desta forma, reflete a união das famílias. De maneira figurada, a aproximação da queda do muro que separava os jardins e a queda do muro de Berlin funciona, neste caso, como símbolo da superação de obstáculos e dificuldades; podem os relacionamentos serem enfim aceitos, aceitando-se as pessoas como são: as casas já se juntaram.

Se eu tivesse de resumir a característica principal deste trabalho em uma expressão apenas, escolheria romance do não dito. Relacionamentos e fantasias sexuais se misturam, a princípio não ditas, atingem um nível de tensão tal que, enfim, transbordam, têm de se revelar.
Excelente livro, este Os Novos Moradores.

Nenhum comentário: