Título em português: A Escolha da
Dra. Cole
Autor: Noah Gordon
Tradutor: Aulyde Soares Rodrigues
Editora: Rocco
S/Ed.
Copyright: 1995
ISBN: 85-325-0675-5
Bibliografia: Gênero: Romance
Páginas: 320
Literatura americana
Bibliografia do autor: O Rabino, 1965; O Comitê da Morte, 1969; O
Diamante de Jerusalém, 1979; O Físico,
1986; Xamã, 1992; A Escolha da Dra. Cole, 1996; O Último Judeu, 2000; Sam e Outros Contos de Animais, 2005; La Bodega, 2007 (no Brasil, todos os
títulos publicados pela Editora Rocco).
Noah Gordon nasceu em Worcester,
EUA, em 11/11/1926. Serviu no exército, durante Segunda Guerra Mundial; após
esta conflagração, entrou para o curso de pré-medicina, por pressão dos pais.
Cursou apenas por um semestre. Transferiu-se para o curso de jornalismo e se
formou em 1950. Atuou como editor em algumas revistas, tendo publicado seu
primeiro romance O Rabino em 1965.
Seus trabalhos falam a respeito da história da medicina e ética médica; mais
recentemente, passaram a focar a inquisição e a herança cultural judia.
Com este volume, Noah Gordon fecha sua trilogia sobre a história da
medicina. Os volumes anteriores, já resenhados para este blogue, foram O Físico e Xamã. Para quem ainda não leu as duas resenhas precedentes, esta
saga trata da família Cole e o estranho dom
que permeia alguns dos componentes. Tal característica é o poder que têm alguns
dos médicos da família de, apenas ao segurar as mãos de uma pessoa, saber
imediatamente se ela morrerá em breve. Outra coisa que marca esta família é que
são frequentes os membros formados como médicos, em várias épocas. Assim, temos
a história de O Físico ambientada na
velha Europa do século XI, na qual a medicina começa a ser considerada uma
profissão, com orientação científica; convive, por um tempo, com os
barbeiros-cirurgiões (sem formação superior).
Xamã executa um salto
temporal e a ação vai se localizar nos Estados Unidos, melhor dizendo, na época
da formação deste país como nação. Os médicos, ali, lutam ainda com condições
muito precárias, inclusive sendo mal remunerados.
A Escolha da Dra. Cole se
passa no final do século XX e é ela – uma mulher – desta vez, quem será a
personagem central deste volume:
“R. J. lembrava de ouvir a mãe dizer a uma amiga que sua filha havia desafiado o pai pelo fato de nascer mulher. Ele esperava um filho. Há séculos, os primogênitos dos Cole recebiam o nome de Robert com segundos nomes que começavam com a letra J. O dr. Cole tinha pensado muito para escolher o nome do filho – Robert Jenner Cole, o segundo nome em homenagem a Edward Jenner, o descobridor da vacinação. Quando nasceu uma menina e quando se tornou evidente que sua mulher, Bernadette Valerie Cole não podia ter mais filhos, o dr. Cole insistiu para que o nome da filha fosse Roberta Jenner Cole e seria chamada de Rob J. Era outra tradição da família Cole. De certa forma declarar que a criança era um novo Rob J. era declarar que acabava de nascer outro médico na família Cole.” (página 67)
Caberá a ela enfrentar uma das grandes questões femininas em debate,
ainda no nosso tempo: o direito de as mulheres disporem do próprio corpo,
encerrando uma gravidez indesejada. Questão polêmica, bem se vê, pois, as religiões,
de uma maneira geral, são contra o aborto. Uma grande parcela da população
também tem posição contrária. E o raciocínio lógico que se antepõe à tese
contra o aborto ( a de que o nascituro tem direito à vida) firma suas bases,
além de no já alegado direito feminino de gestão do corpo, é a de que se o
aborto não fosse legalizado, mesmo assim ele seria executado, pondo em risco a
vida de milhares de mulheres, que se serviriam do atendimento perigoso de
clínicas clandestinas.
Esta é a crença da Dra. Cole: ela não apoia o aborto, mas acha que as
mulheres têm direito à melhor assistência possível para a tomada autônoma desta
importante decisão:
“Ela dava valor especial às crianças e não gostava da ideia de evitar que nascessem. O aborto era uma coisa feia e suja. Às vezes interferia em suas outras atividades profissionais, porque alguns dos seus colegas não aprovavam e, por motivos de relações públicas, Tom sempre temeu e detestou seu envolvimento na questão do aborto.” (página 25)
A militância antiaborto, nos Estados Unidos de então, era muito
engajada e, de fato, bastante violenta, como se atesta na mesma página 25, um
pouco abaixo da primeira transcrição acima:
“Mas estava havendo uma guerra antiaborto na América. Muitos médicos se afastavam das clínicas, intimidados pelas ameaças nada dissimuladas do movimento antiaborto. R. J. achava que era um direito da mulher decidir o que fazer com o próprio corpo, assim, todas as quintas-feiras de manhã ela ia de carro até Jamaica Plains e entrava discretamente na Clínica do Centro de Planejamento Familiar, evitando os grupos que faziam manifestações na frente do prédio, as faixas sacudidas sobre sua cabeça, os crucifixos apontados para ela, o sangue atirado, os vidros com fetos quase encostados no seu rosto e os palavrões.”
Diferentemente dos
protagonistas dos livros anteriores – eles recebem o chamado para a medicina e
o aceitam sem muitas delongas – a Dra. Roberta não se dispõe imediatamente a
seguir carreira como profissional da saúde. Ela inicia sua vida profissional
como advogada. Trabalha em um grande escritório de advocacia, onde terá a
oportunidade de defender médicos em processos diversos. Esta experiência
será de grande valia para ela. R. J. – abreviatura agora designando Roberta
Jeanne – tem uma vida amorosa conturbada, como não poderia deixar de ser.
Em parte, isto acontece por causa de sua atuação como médica de uma clínica de
abortos, em parte pelas peças que “o destino” lhe prega.
A Dra. Cole deixa a clínica onde
trabalhava e vai viver e trabalhar como médica em Woodfield, no interior, entre
as montanhas, localidade pela qual se encanta:
“Lentamente, R. J., Pegg e Toby organizaram a rotina de trabalho no consultório. Lentamente também, R. J. aprendeu os ritmos da cidade e se acostumou a eles. Percebeu que as pessoas gostavam de inclinar a cabeça e dizer: ‘Olá, doutora!’ Sentia o orgulho delas no fato de a cidade ter um médico outra vez. Começou a atender chamados em casa, de preferência os que estavam acamados, viajando para ver pacientes a quem era difícil ou impossível ir ao consultório. Quando tinha tempo e ofereciam um pedaço de torta e uma xícara de café, ela sentava com eles à mesa da cozinha, conversava sobre política, sobre o tempo e copiava receitas de cozinha em seu receituário.” (página 105)
O famoso dom já havia se
manifestado em sua vida profissional. Entretanto, a médica tem, pela primeira
vez, a percepção de que tal manifestação não é uma sentença de morte do
paciente – coisa impossível de perceber aos protagonistas dos outros livros da
saga, pela própria condição precária da medicina da época. Para R. J., o dom
funciona como um aviso e, se ela estiver atenta o suficiente, é capaz de salvar
vidas de uma maneira que parece, aos seus pacientes, como coisa de origem
mágica:
“O oxigênio penetrou nas células do músculo cardíaco e quando chegou a permissão do controle médico, o medicamento começava a fazer efeito. Quando a sra. Olchowski foi retirada da ambulância pela equipe de emergência do hospital, o dano ao seu coração estava minimizado.
Pela primeira vez R. J. compreendeu que a mensagem que recebia às vezes podia salvar a vida dos seus pacientes.” (página 130)
Apesar de a Dra. Cole viver e
trabalhar numa pequena cidade, onde ela é a única médica disponível no raio de
quilômetros, a vida dela não é fácil. Ela tem problemas de relacionamento
amoroso e familiar, suas amigas – que também são suas pacientes – têm problemas
vários, ela às vezes tem de improvisar como qualquer bom médico de interior.
Não há laboratório para exames, não há aparelhagem que dê suporte a seus
diagnósticos; quando tais coisas são inteiramente necessárias, seus pacientes
têm de viajar para cidades maiores, distantes dali. Em situações completamente
inusitadas para ela, tem de atuar até como veterinária, ao fazer o parto complicado
de um bezerro. E, porque ela aceita, ainda que temporariamente, trabalhar numa
clínica de abortos, em outra cidade, às quintas-feiras, as admoestações e os
ataques dos militantes antiaborto recomeçam.
Roberta J. é uma personagem que
cresce durante a narrativa, entretanto, acredito, este romance não se enquadra
na categoria de Bildungsroman –
romance de formação – uma vez que o foco da história não é marcar a formação do
personagem, acompanhando-o desde a tenra idade até a maturidade. Há dois pontos
em que nossa protagonista demonstra estar apta e sentir vontade de dirigir a
própria vida:
“— Eu já tenho um lugar – R. J. disse, com uma leve irritação, com a impressão de estar sendo tratada com paternalismo, aborrecida com a ideia de que pessoas bem-intencionadas estavam sempre tentando mudar sua vida.” (página 277)
E esta outra:
“— Você tem de aprender a me deixar dizer não, papai – ela disse, com calma. – Tenho quarenta e dois anos e sou capaz de tomar decisões por minha conta.
Ele virou o rosto. Mas logo olhou outra vez para ela.
— Quer saber uma coisa?
— O quê, papai?
— Você está absolutamente certa.” (página 303)
Ao ler estes três volumes – O Físico, Xamã e A Escolha da Dra. Cole
– fica bem evidente que leitores menos atentos podem julgar um livro menos bom
do que outro de uma maneira bastante vaga, como uma percepção imprecisa, de
superfície. Constantemente, tenho lido comentários a respeito desta saga da
seguinte forma: O Físico seria
excelente, Xamã está um pouco abaixo
e A Escolha da Dra. Cole é um romance
fraco. Não concordo e vou dar razões.
Noah Gordon é um autor maduro e
domina perfeitamente sua arte de escritor. Constrói personagens muito bons,
ricos, complexos. Se a estrutura dos romances é boa, se os personagens são bem-criados,
qual seria o problema que levaria as pessoas a opiniões tão desabonadoras ao
último volume?
Arrisco-me a dizer que isto se
deve à relação personagem-contextualização. Explicando-me: em O Físico, Robert Jeremy Cole atua no
século XI – tudo muito difícil, condições anti-higiênicas de uma Europa
precária; o protagonista tem de viajar para a Pérsia, para aprender medicina
com o sábio Avicena, um ícone do conhecimento, à época. Esta procura
incessante, localizada numa época em que tudo parece conspirar contra os
anseios do então jovem Robert conferem à obra um caráter quase épico – ele é o
herói das aventuras.
Em Xamã, o contexto já é outro, a formação dos Estados Unidos. Rob J.
Cole tem de lidar com situação adversa também, mas as dificuldades enfrentadas
são mais amenas do que aquelas da Idade Média. A medicina já está mais
avançada; a participação do protagonista na Guerra de Secessão Americana é
momentânea, pois Rob é pacifista de carteirinha.
A Escolha da Dra. Cole, embora seja enquadrado num outro conflito
grande – o do embate entre os pró-aborto e os contra ele, não tem a mesma
amplitude dramática em comparação com os cenários dos volumes anteriores. É,
sim, uma questão de escolha do autor, mas é também uma coerência ao seu próprio
projeto literário.
Noah Gordon não se propõe a
livros de aventuras. Ele manipula bem o enredo, disto não tenho dúvidas.
Entretanto, para contar a história da medicina, começando pela idade média,
passando pelos EUA em formação e terminando no mesmo Estados Unidos dos finais
do século XX, e pretendendo não se afastar muito dos fatos históricos de base –
o que se pode deduzir da intensa pesquisa histórica feita pelo autor – temos como
resultado intensidades diferentes. Indiscutivelmente, a medicina do século XX é
mais fácil de exercer do que na idade média.
Recomendo, portanto, a trilogia
toda. São todos ótimos livros e nos dão um panorama bom do que ela se propõe
traçar. A nota para este último volume, claramente influenciada pela questão
subjetiva de me afinar mais com O Físico
(gosto se discute, sim), é igual à dada ao Xamã:
9,7.
2 comentários:
Olá, Cleuber. Parabéns pelo Blog. Acabei de ler Xamã e dra. Cole. Há pouco li O Último Judeu. Excelentes
Grande abraço. Dr. Túlio Vargas, Passos MG.
Obrigado, Túlio. Também gostei muito de Xamã, Dra. Cole e O Físico. Ainda não li O Último Judeu. Um abraço!
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