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domingo, 29 de julho de 2018

Resenha nº 123 - Voragem, de Jun'ichiro Tanizaki


Resultado de imagem para livro voragemTítulo original: Manji
Título em português: Voragem
Autor: Jun’ichirō Tanizaki
Tradutor: Leiko Gotoda
Editora: TAG/Cia. das Letras
ISBN: 978-85-359-3112-9
Copyright: 1931
Gênero: Romance
Literatura Japonesa
Bibliografia do autor (incompleta): The Tattooer, 1911; Há que prefira urtigas, 1929; Naomi, 1947; Elogio da sombra, 1933; As irmãs Makioka, 1936; Uma gata, um homem, 1940; Diário de um velho louco, 1961; Um amor insensato, 1924; Voragem, 1928.

Jun’ichirō Tanizaki nasceu em Tóquio, em 24 de julho de 1986 e faleceu em 30 de julho de 1965. É considerado um dos maiores escritores japoneses, autor de pelo menos três obras-primas: Há quem prefira as urtigas, Voragem e As irmãs Makioka. Tanizaki era membro de uma família de mercadores e, em sua juventude, deixou-se encantar pelo mundo ocidental, numa adoração meio ingênua, e pelas conquistas da modernidade. Entretanto, seus valores mudaram posteriormente e ele passou a enaltecer a preservação da língua e da cultura japonesas. Em 1923, foi obrigado a mudar-se para Ashiya, perto de Ozaka e Kyoto. Esta região forneceu-lhe cenários que vão compor o seu romance As Irmãs Makioka. Para compor as personagens centrais deste calhamaço (as quatro irmãs), Tanizaki baseou-se na figura de sua terceira esposa, Matsuko. Esta obra é das poucas do autor nas quais ele não aborda a infidelidade, fetichismo ou sadismo. A maior parte da bibliografia de Jun’ichirō tem presente a questão do erotismo, da paixão e suas loucuras. Para uma parte da crítica, seu trabalho é perpassado por uma edipiana busca pelo “eterno feminino”.
As 240 páginas de Voragem foram lidas em apenas um dia – 28/07/2018, em regime de maratona. A obra nos conta a história do relacionamento de quatro personagens: a bela jovem Mitsuko Tokumistu, a Sra. Sonoko Kakiuchi, o marido desta, Koutaro Kakiuchi e Eijiro Watanuki. Antes de prosseguir com os comentários, devo ressaltar que esta é minha primeira incursão pela literatura japonesa, tão rica, mas ainda desconhecida da maioria dos leitores brasileiros, entre os quais me incluía.
Voragem é um romance soberbo. Aborda o amor homossexual entre Mitsuko e Sonoko; entretanto, não há descrição de quaisquer cenas explícitas de sexo. Elas dão lugar a uma tensão erótica, a uma paixão fulminante – quase uma possessão. Sonoko conhece a bela Mitsuko, mas inicialmente não se aproxima dela. As duas mulheres frequentam uma escola de segunda classe para público feminino e Sonoko faz, ali, o curso de pintura. Ela não é talentosa, mas ao reproduzir a figura de uma deusa japonesa, Sonoko reproduz inconscientemente o rosto de Mitsuko. O falatório começa e em breve, Mitsuko se aproxima de Sonoko. Isto basta para detonar a paixão voraz (daí o título do romance) desta por Mitsuko.
O livro é narrado em primeira pessoa, pela própria protagonista, Sonoko. Ela faz um relato oral a um personagem nominado apenas por sensei (conselheiro, alguém respeitável e experimentado pela vida). Tal opção do autor não é gratuita. Como toda a história é narrada pela própria personagem, não conseguimos outro ponto de vista para compararmos se tudo que é dito é verdade. Técnica também usada pelo nosso Machado de Assis, constitui um “narrador não confiável”.
O Sr. Koutaro Kakiuchi é um homem bom, correto até demais, mas desinteressante e tedioso para sua mulher. Ele é dependente dela. A verdade é que, quando a paixão avassaladora envolve os quatro personagens já enunciados, ninguém escapa: todos manipulam todos, na desesperada tentativa da manutenção da posse do objeto da paixão. São todos capazes das piores mentiras, das vilanias. Adeus à ética, ao respeito.
O texto de fácil leitura de Tanizaki nos vai levando, como verdadeiros voyeurs destes amantes enlouquecidos, pelos despenhadeiros humanos. E o incrível, Jun’ichirō escreveu este livro em 1928, numa época em que o tema das relações homossexuais eram tabu.
Temos de explicitar, a cultura japonesa teve um período, chamado Era Meiji, no qual as xilogravuras (gravuras feitas pela aposição de altos-relevos em madeira, como um carimbo) de sexo explícito eram frequentes. É que a cultura japonesa, antes de seu contato com o cristianismo ocidental, não via o sexo como algo proibido ou pecaminoso. A fruição do prazer sexual era legítima. Mesmo nesta Era, o amor homossexual, conquanto fosse representado, não era tão frequente como o eram as representações do amor heterossexual.
Magistralmente, o autor nipônico nos enlaça numa história cheia de reviravoltas, arrependimentos e reatamentos. O personagem Koutaro nos parece um tanto solto na narrativa, nos dando a ideia de ser sem função. E sabemos que uma das regras mais respeitadas dentro de uma narrativa é exatamente esta: não criar personagens que não tenham uma função. Diferentemente da vida, em que há pessoas com as quais cruzamos apenas uma vez na vida, a narrativa deve obedecer ao princípio da economia de personagens. Seria, portanto, uma deficiência de Tanizaki? Longe disto, é mais uma das artimanhas do bruxo japonês. O Sr. Koutaro terá sua participação revelada a partir de um ponto tardio no texto.
Voragem não poderia ser melhor achado como título deste livro. Voragem é algo que não se controla, que se mostra em toda a sua força, que subjuga. Os personagens desta magnífica história são tragados por suas paixões, são destruídos por elas. Não posso adiantar mais nada sem cometer spoilers.
A protagonista adianta, já no capítulo introdutório, o tom intimista da narrativa:
“Vim hoje à sua casa com a intenção de lhe contar todo o incidente, sensei, mas ... noto que interrompi seu trabalho.  Tem certeza de que não se importa? Narrada em detalhes, a história é longa e tomará um bocado do seu tempo... Eu podia até registrar os acontecimentos no papel em forma de romance e submetê-lo em seguida à sua apreciação, soubesse eu ao menos redigir melhor. Falando a verdade, eu me pus realmente a escrever há alguns dias num repente, mas o fato é que as ocorrências se embaralhavam em minha cabeça e, despreparada com sou, não consegui nem sequer descobrir por onde ou de que jeito começar. Logo vi que só me restava realmente esta alternativa: pedir-lhe a atenção.” (página 7)
Este interlocutor instituído pela personagem, presumivelmente, é o próprio autor. Ele não diz nada, a não ser em alguns poucos momentos, em que apõe ao texto sua observação:
“(Nota do Autor: Tanto quanto a foto me permitia adivinhar, os referidos quimonos idênticos eram de cores espalhafatosas, tão ao gosto das mulheres de Kansai. A viúva Kakiuchi tinha o cabelo puxado para trás e preso em coque na nuca, em estilo sakuhatsu, enquanto Mitsuko trazia o dela em tradicional estilo japonês shimada. Os olhos de Mitsuko – uma típica jovem urbana da região de Osaka – brilhavam expressivos, transbordantes de sedução. Resumindo, olhar de uma especialista na arte de amar, repleto de energia e de poderoso fascínio. Realmente, a jovem era dona de uma beleza rara, e a viúva Kakiuchi não estava sendo apenas modesta ao definir-se como simples elemento destinado a realçá-la. Ainda assim, eu duvidava que Mitsuko fosse modelo de rosto adequado às feições benignas de Yoryu-Kannon.)” (página 19)
Aparentemente, aquele Eijiro Watanuki seria o antagonista, o vilão da história. Entretanto, neste Voragem não temos um vilão caracterizado por um personagem. Na verdade, esta função cabe à paixão sentida pelos seres por ela possuídos:
“Devo realmente ter perdido o controle naquele instante. Mais tarde, Misuko me disse que o rosto pálido e o olhar feroz que eu, trêmula, voltara para ela pareciam realmente ensandecidos. A própria Mitsuko tremia enquanto me encarava de volta em silêncio, intensamente. A pose altiva de Yoryu-Kannon que mantivera até então tinha-se desfeito: tímida, braços cruzados sobre os seios e mãos em torno dos próprios ombros, um joelho ligeiramente flexionado e um pé pousado no outro, ela me parecia agora extremamente bela e tocante. Cheguei a ter pena dela, mas quando vi a pele branca do ombro roliço surgindo entre as tiras do lençol não consegui conte um ímpeto cruel de estraçalhar tudo. Excitada, saltei sobre ela e arranquei o lençol.” (página 40)
Elementos narcísicos também estão presente nesta relação entre as duas mulheres:
“... Sim, é verdade. Mitsuko comentou certa vez a esse respeito: ‘Receber elogios de uma pessoa do meu sexo me deixa muito mais orgulhosa do que recebê-los de gente do sexo oposto. É natural que um homem considere uma mulher bonita. Mas, quando percebo que sou capaz de atrair alguém do meu próprio sexo, aí sim, sinto-me realmente bela e feliz.” (página 115)
Realmente, a bela Mitsuko tem consciência de que sua beleza é uma arma de sedução e não tem escrúpulos em usá-la na conquista de seus objetivos. Tenho lido algumas opiniões de leitores, apontando a mimada Mitsuko como algoz e a “pobre” Sonoko como vítima. Não concordo. Se, inicialmente, podemos até entender a bela personagem como manipuladora – e, de fato, ela o é – e a insatisfeita Sonoko como ingênua, as duas mentem, chantageiam, manipulam conforme a narrativa avança. O problema é que, como só podemos seguir o desenvolvimento narrativo pelas interpretações de Sonoko, ela pode exercer e exerce livremente seu poder de sedução como uma Sherazade saída de As Mil e Uma Noites, desta vez enredando o leitor com sua capacidade de contar histórias.
O livro não tem mais do que duzentas e quarenta páginas. Voragem é admirável também por isso: o texto é enxuto, mais mostrando do que dizendo; o autor é um extraordinário contador de histórias. Apesar de denso, possuidor de uma tensão erótica que não descamba para o mais fácil (descrever cenas de sexo explícito), fornece aqui e ali insinuações do que acontece, seja por uma rápida descrição, seja pelas argumentações de Sonoko ao perceber as manipulações de que é vítima ou as outras, das quais é autora.
Voragem é um livro absolutamente sensacional, obra-prima da literatura mundial. Degustei-a em uma leitura de várias horas, mas que não se revelou, em nenhum momento, cansativa. Mais que recomendo sua leitura. Pelo menos para mim, é daqueles livros para muitas incursões; para o aprendente da escrita, é uma aula de como elaborar um livro que prende, mais do que prende, enfeitiça. Nota máxima, portanto: 10.

Texto de apoio: Revista TAG Livros, junho/2018.

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