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segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Resenha nº 61 - A Biblioteca À Noite, de Alberto Manguel



Alberto Manguel nasceu em Buenos Aires, no ano de 1948 e obteve cidadania canadense. Cidadão do mundo, passou a infância em Israel, estudou na Argentina e vive atualmente no interior da França. Suas múltiplas atividades espraiam-se pelo ensaio, organização de antologias, tradução, edição e escritor de romances. Manguel é respeitado internacionalmente em qualquer dessas áreas de atuação. Escreveu Todos os homens são mentirosos, Uma história da leitura, Stevenson sob as palmeiras, O amante detalhista, À mesa com o chapeleiro maluco.

Um livro sobre livros e as bibliotecas ao redor do mundo. Entretanto, este A biblioteca à noite não é um livro descritivo, ou cansativo, como poderiam pensar alguns. Alberto Manguel é dono de uma escrita fluente, às vezes irônica; sobretudo, torna-se claro que ele gosta de falar da sua paixão. E tempera sua obra com deliciosas histórias sobre leitores apaixonados.

O autor comprou

            “...um celeiro, encarapitado sobre uma pequena colina ao sul do Rio Loire. Aqui, nos últimos anos antes da era cristã, os romanos erigiram um templo a Dionísio, para louvar o deus desta região vinícola. ” (página 15)

É esse celeiro o lugar onde ele reúne todos os seus livros, que antes encontravam-se espalhados pelos muitos lugares. E, em meio as suas reflexões, já procura, às páginas 24, distinguir entre um homem erudito de um homem que ama a leitura. Para isso, socorre-se das palavras de Virginia Woolf:

            “Um homem erudito é um entusiasta sedentário e concentrado, que percorre os livros em busca de um certo grão de verdade, almejado de coração. Mas se a paixão pela leitura leva a melhor sobre ele, suas conquistas vacilarão e desaparecerão entre seus dedos. Um leitor, por sua vez, deve dominar o desejo de erudição desde o começo; se algum conhecimento aderir a ele, muito bem, mas sair à procura, ler sistematicamente com o objetivo de tornar-se um especialista ou autoridade é coisa bem capaz de matar aquilo que preferimos considerar a paixão mais humana pela leitura pura e desinteressada. ”

Aqui e ali, vão aparecendo referências à Biblioteca de Alexandria, mas não por desejo de erudição, como diria Woolf, mas porque essa biblioteca é uma referência obrigatória, quando se vai falar de acervos, livros e o lugar onde dispô-los.

Alberto Manguel nos conta histórias pitorescas. Como no caso de um leitor que havia reunido muito material por quatro décadas seguidas, em seu apartamento. Certa feita, os vizinhos não o viam mais e começaram a perceber uns gemidos estranhos, vindos de da morada dele. Chamaram-no e nada. Apelaram, então, para a polícia. Ao arrombarem a porta, todos os livros das estantes haviam caído sobre o leitor fiel, imobilizado sob tantos volumes. Foi necessário retirarem cinquenta sacos para libertarem-no.

Um outro caso: encomendado o projeto de uma biblioteca, tratou-se logo de sua construção. Quando a obra ficou pronta, percebeu-se que não haveria lugar para se colocarem todos os livros e a biblioteca teve de eleger um critério para a redução do acervo. Esse critério foi pelos livros menos solicitados por leitores. Iriam para um galpão, para serem posteriormente incinerados. Supreendentemente, os funcionários, durante a noite, entravam na instituição e, em grupo, punham-se a carimbar a ficha de empréstimo que acompanhava cada exemplar. Literalmente, salvaram muitos livros de irem para a fogueira do extermínio.

Selecionei alguns trechos, mais para o final do livro, para a degustação dos meus leitores e, sobretudo, para a minha própria:

“Se a Biblioteca de Alexandria foi o emblema de nossa sede de onisciência, a Web é o emblema de nossa sede de onipresença; a biblioteca que guardava tudo transformou-se na biblioteca que guarda qualquer coisa. Alexandria enxergava-se modestamente como centro de um círculo limitado pelo mundo conhecido; a Web, como uma definição de Deus imaginada pela primeira vez no século XII, entende-se como um círculo cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não está em nenhuma. ” (página 264)

“Bibliotecas sólidas de madeira e papel, ou bibliotecas de telas brilhantes e espectrais são prova de nossa crença duradoura numa ordem vasta e atemporal que intuímos ou percebemos vagamente. ” (página 264)

“Em seu romance A flor azul, Penélope Fitzgerald diz: ‘Se a história começa num encontro, ela tem que acabar numa busca.’ A história de minha biblioteca certamente começou com um encontro: com meus livros, com o lugar aonde leva-los, com a quietude num espaço iluminado em meio à escuridão. Mas se a história precisa acabar numa busca, a pergunta não pode deixar de ser: busca de quê? Certa vez, Northrop Frye observou que, se tivesse presenciado o nascimento de Cristo, provavelmente não teria escutado o cântico dos anjos. “Digo isso porque não os ouço agora, e não tenho porque pensar que pararam de cantar. ” Sendo assim, não estou buscando nenhuma espécie de revelação, pois tudo o que me disserem será restringido pelo que posso ouvir e entender. Não busco um conhecimento além daquilo que, de algum modo secreto, já sei. Tampouco iluminação, à qual não posso sensatamente aspirar. Nem experiência, pois em última instância só posso me dar conta do que já está em mim. O que, então eu busco, ao final da história de minha biblioteca?
Consolação, quem sabe. Quem sabe, consolação. ” (página 266)

Esse último trecho, retirado da página 266, é um dos mais belos que já li sobre o amor aos livros.

Tenho consciência de uma obra como essa não ser para qualquer tipo de leitor. Não é para aquele, que só de quando em vez pega um volume ao acaso; não é para aquele que boceja diante da obrigatoriedade de uma leitura; não é para aquele leitor de superfície, quer pela inexperiência do ofício, quer pela leitura de um livro só para parecer alguém culto. É uma leitura para aqueles que – como poucos há, amam profundamente a leitura, o mergulho solitário e silencioso no diálogo com um texto. 

MANGUEL, Alberto. A biblioteca à noite. Companhia das Letras. São Paulo, SP: 2010

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