Um livro sobre livros e as bibliotecas ao redor do mundo. Entretanto, este A biblioteca à noite não é um livro descritivo, ou cansativo, como poderiam pensar alguns. Alberto Manguel é dono de uma escrita fluente, às vezes irônica; sobretudo, torna-se claro que ele gosta de falar da sua paixão. E tempera sua obra com deliciosas histórias sobre leitores apaixonados.
O autor comprou
“...um celeiro,
encarapitado sobre uma pequena colina ao sul do Rio Loire. Aqui, nos últimos
anos antes da era cristã, os romanos erigiram um templo a Dionísio, para louvar
o deus desta região vinícola. ” (página 15)
É esse celeiro
o lugar onde ele reúne todos os seus livros, que antes encontravam-se
espalhados pelos muitos lugares. E, em meio as suas reflexões, já procura, às
páginas 24, distinguir entre um homem erudito de um homem que ama a leitura.
Para isso, socorre-se das palavras de Virginia Woolf:
“Um homem erudito é um
entusiasta sedentário e concentrado, que percorre os livros em busca de um
certo grão de verdade, almejado de coração. Mas se a paixão pela leitura leva a
melhor sobre ele, suas conquistas vacilarão e desaparecerão entre seus dedos.
Um leitor, por sua vez, deve dominar o desejo de erudição desde o começo; se
algum conhecimento aderir a ele, muito bem, mas sair à procura, ler
sistematicamente com o objetivo de tornar-se um especialista ou autoridade é
coisa bem capaz de matar aquilo que preferimos considerar a paixão mais humana
pela leitura pura e desinteressada. ”
Aqui e ali, vão
aparecendo referências à Biblioteca de Alexandria, mas não por desejo de
erudição, como diria Woolf, mas porque essa biblioteca é uma referência
obrigatória, quando se vai falar de acervos, livros e o lugar onde dispô-los.
Alberto Manguel
nos conta histórias pitorescas. Como no caso de um leitor que havia reunido
muito material por quatro décadas seguidas, em seu apartamento. Certa feita, os
vizinhos não o viam mais e começaram a perceber uns gemidos estranhos, vindos
de da morada dele. Chamaram-no e nada. Apelaram, então, para a polícia. Ao
arrombarem a porta, todos os livros das estantes haviam caído sobre o leitor
fiel, imobilizado sob tantos volumes. Foi necessário retirarem cinquenta sacos
para libertarem-no.
Um outro caso:
encomendado o projeto de uma biblioteca, tratou-se logo de sua construção. Quando
a obra ficou pronta, percebeu-se que não haveria lugar para se colocarem todos
os livros e a biblioteca teve de eleger um critério para a redução do acervo. Esse
critério foi pelos livros menos solicitados por leitores. Iriam para um galpão,
para serem posteriormente incinerados. Supreendentemente, os funcionários,
durante a noite, entravam na instituição e, em grupo, punham-se a carimbar a
ficha de empréstimo que acompanhava cada exemplar. Literalmente, salvaram
muitos livros de irem para a fogueira do extermínio.
Selecionei
alguns trechos, mais para o final do livro, para a degustação dos meus leitores
e, sobretudo, para a minha própria:
“Se a Biblioteca de Alexandria foi o emblema de nossa sede de onisciência,
a Web é o emblema de nossa sede de onipresença; a biblioteca que guardava tudo
transformou-se na biblioteca que guarda qualquer coisa. Alexandria enxergava-se
modestamente como centro de um círculo limitado pelo mundo conhecido; a Web,
como uma definição de Deus imaginada pela primeira vez no século XII,
entende-se como um círculo cujo centro está em toda parte e cuja circunferência
não está em nenhuma. ” (página 264)
“Bibliotecas sólidas de madeira e papel, ou bibliotecas de telas
brilhantes e espectrais são prova de nossa crença duradoura numa ordem vasta e
atemporal que intuímos ou percebemos vagamente. ” (página 264)
“Em seu romance A flor azul, Penélope Fitzgerald diz: ‘Se a história
começa num encontro, ela tem que acabar numa busca.’ A história de minha
biblioteca certamente começou com um encontro: com meus livros, com o lugar
aonde leva-los, com a quietude num espaço iluminado em meio à escuridão. Mas se
a história precisa acabar numa busca, a pergunta não pode deixar de ser: busca
de quê? Certa vez, Northrop Frye observou que, se tivesse presenciado o
nascimento de Cristo, provavelmente não teria escutado o cântico dos anjos. “Digo
isso porque não os ouço agora, e não tenho porque pensar que pararam de cantar.
” Sendo assim, não estou buscando nenhuma espécie de revelação, pois tudo o que
me disserem será restringido pelo que posso ouvir e entender. Não busco um conhecimento
além daquilo que, de algum modo secreto, já sei. Tampouco iluminação, à qual
não posso sensatamente aspirar. Nem experiência, pois em última instância só
posso me dar conta do que já está em mim. O que, então eu busco, ao final da
história de minha biblioteca?
Consolação, quem sabe. Quem sabe, consolação. ” (página 266)
Esse último
trecho, retirado da página 266, é um dos mais belos que já li sobre o amor aos
livros.
Tenho
consciência de uma obra como essa não ser para qualquer tipo de leitor. Não é
para aquele, que só de quando em vez pega um volume ao acaso; não é para aquele
que boceja diante da obrigatoriedade de uma leitura; não é para aquele leitor
de superfície, quer pela inexperiência do ofício, quer pela leitura de um livro
só para parecer alguém culto. É uma leitura para aqueles que – como poucos há,
amam profundamente a leitura, o mergulho solitário e silencioso no diálogo com
um texto.
MANGUEL, Alberto. A biblioteca à noite. Companhia das Letras. São Paulo, SP: 2010
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