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segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Resenha nº 128 - O Velho e O Mar, de Ernest Hemingway


Imagem relacionadaTítulo original: The Old Man and The Sea
Título em português: O Velho e O Mar
Autor: Ernest Hemingway
Tradutor: Fernando de Castro Ferro
Ilustrações: Ênio Squeff
Editora: Círculo do Livro
Copyright: 1980
Páginas: 116
Gênero: Novela
Literatura Americana
Bibliografia do autor: Romances – The Torrents of Spring (As Torrentes da Primavera) 1925; The Sun Also Rises (O Sol Também Se Levanta), 1926; A Farewell to Arms. (Adeus às Armas), 1929; To Have and Have Not (Ter e Não Ter), 1937; For Whom the Bell Tolls (Por Quem os Sinos Dobram), 1940; Across the River and Into the Trees (Do Outro Lado do Rio e Entre as Árvores), 1950; The Old Man and the Sea (O Velho e o Mar), 1952; Adventures of a Young Man (Aventuras de um Homem Jovem), 1962; Islands in the Stream (As Ilhas da Corrente), 1970; The Garden of Eden (O Jardim do Éden), 1986. Não ficção – Death in the Afternoon (Morte à tarde), 1932; Green Hills of Africa (As Verdes Colinas de África), 1935; The Dangerous Summer (O Verão Perigoso), 1960; A Moveable Feast (Paris é uma Festa), 1964; True at First Light (Verdade ao Amanhecer), 1999; Ernest Hemingway Selected Letters 1917-1961, 2003; Under Kilimanjaro (As Neves do Kilimanjaro), 2005. Contos e pequenas estórias – Three Stories and Ten Poems, 1923;  In Our Time, 1925 ; Men Without Women, 1927; The Snows of Kilimanjaro, 1932 ; Winner Take Nothing, 1933; The Fifth Column and the First Forty-Nine Stories, 1938; The Essential Hemingway, 1947; The Hemingway Reader, 1953; The Nick Adams Stories, 1972 ;The Complete Short Stories of Ernest Hemingway, 1976; Collected Stories, 1995.

Reler um livro, ainda mais reler um após muito tempo, ainda mais um clássico, é uma experiência fascinante. A leitura de O Velho e O Mar é triplamente gratificante: reler um clássico, reler uma edição do antigo Círculo do Livro (tão boas memórias) e reler um livro que, decididamente, fez minha cabeça. De fato, quando comecei a escrever, este era um dos textos de que me lembrava com mais frequência: sobriedade, economia de adjetivos, descrições objetivas. Ernest Hemingway é indiscutivelmente um autor e tanto.

Ernest Miller Hemingway nasceu em Oak Park, Illinois, EUA, em 21/07/1899. Morreu em Ketchum, Idaho, EUA, em 02/07/1961. 61 anos de idade, portanto. Escritor americano, foi correspondente de guerra em Madrid, Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola. Viveu também em Paris por um tempo, ao se casar com Elizabeth Hardley Richardson, sua primeira mulher. Nesta época, aproximou-se dos escritores Ezra Pound, Gertude Stein, Scott Fitzgerald. Ele fez parte da batizada “Geração Perdida”, por Gertrude Stein. Era uma comunidade de escritores expatriados, como se pode deduzir.
Na década de 1930, resolveu partir com um amigo para uma pescaria em alto mar, perto de Cuba. Voltou amiúde, entre os meses de maio e julho, quando acontecia a pesca ao marlim. Bastante instável em assuntos amorosos, Hemingway teve relacionamentos com várias mulheres: só de casamentos oficiais, foram quatro.
Viveu também na Espanha, por quatro anos. Em Pamplona, Ernest fascinou-se pelas tauromaquias, isto é, as touradas, tendo chegado a participar de algumas delas, como toureiro amador. Esta experiência vai ser muito bem utilizada em O Sol Também Se Levanta. Neste país, em 1946, o escritor se casa pela quarta vez e alistou-se no conflito civil espanhol, ao lado das forças que combatiam o fascismo. Este material vai compor sua considerada obra-prima, Por Quem Os Sinos Dobram.
Retornando a Cuba com a sua quarta esposa, Ernest Hemingway escreve seu livro O Velho e O Mar, que lhe rendeu o Prêmio Pulitzer de Ficção. Recebeu ainda o Prêmio Nobel de 1954 pela excelência de sua narrativa. Cada vez mais instável emocionalmente, e muito doente (tinha diabetes, hemocromatose, hipertensão, depressão, perda de memória), põe fim à sua vida, em Idaho, repetindo o ato desatinado do pai, que havia se suicidado com um tiro de pistola e, por sua vez, suicida-se com um tiro de fuzil de caça, em julho de 1961.
Uma biografia tumultuada. Homem inquieto, escritor magnífico e bastante produtivo, Ernest Hemingway realmente não é para fracos.
O Velho e O Mar é um livro absolutamente fantástico. Curto, ouso classificá-lo como uma novela. Identifiquei alguns temas que perpassam a obra: a solidão do homem, o valor da amizade pura, a dedicação a um propósito, a inevitabilidade da luta humana diante dos sacrifícios da vida. E é admirável como ele consegue colocar tanta coisa em um livro de apenas 116 páginas, na edição do Círculo. Vejamos a introdução desta história de pescaria, que não é somente uma narrativa sobre a captura de peixes:
“O velho chamava-se Santiago. Dia após dia, tripulando sua pequena canoa, ia pescar na corrente do Golfo. Mas nos últimos oitenta e quatro dias não apanhara um só peixe. Nos primeiros quarenta dias levara em sua companhia um rapazinho para auxiliá-lo. Depois disso, os pais do rapaz, convencidos de que o velho se tornara salao, isto é, um azarento da pior espécie. Resolveram que o filho fosse trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes em apenas uma semana. O rapaz ficava triste ao ver o velho regressar todos os dias com a canoa vazia e ia sempre ajudá-lo a carregar os rolos de linha, ou o gancho do arpão, ou ainda a vela que estava enrolada à volta do mastro. A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente.” (página 9)
Creio não exagerar ao eleger este primeiro parágrafo da obra como um dos melhores que tenho lido. Um exemplo de concisão, em curto espaço temos informações valiosas para entender a história que se seguirá. Aí já fica patente o valor da amizade pura, entre o velho e o rapazinho, a pobreza de Santiago, as forças sociais que o discriminam como velho e azarento, a impotência do personagem diante do “destino” (forças da vida).
Mas um dia, Santiago parte com sua frágil embarcação determinado a trazer um peixe – e dos grandes, se possível. Para tanto, arrisca-se a ir muito além dos outros barcos, onde julga ter melhor sorte. Consegue fisgar um marlim ou espadarte, um daqueles peixes que têm uma espécie de espada aguda na frente da cabeça.
“Podia ficar à deriva”, pensou ele, “e dormir um pouco com a ponta da linha atada no pé, para me acordar se algum peixe mordesse. Mas hoje é o octogésimo quinto dia, e devo pescar o melhor possível.”
“Neste momento, quando examinava as linhas, viu uma das varas verdes dobrar-se violentamente.
— Pronto. – E arrumou os remos, tentando não balançar o barco. Pegou a linha e segurou-a suavemente entre o polegar e o indicador da mão direita. Não sentiu nenhuma força nem peso e continuou a segurar a linha com suavidade. Depois, sentiu outro puxão. Dessa vez era um puxão ligeiro, quase suave, e ele sabia exatamente o que era. A uns cento e cinquenta metros de profundidade, um espadarte estava comendo as sardinhas que cobriam a ponta do anzol que se projetava da cabeça do atum que servia de isca.” (página 37)
A quase totalidade da história, daí para frente, se resumirá à luta do velho Santiago contra o peixe que lhe resiste. Vem-nos à tela da memória a dantesca luta entre o capitão Ahab e a enorme baleia branca, Moby Dick, da obra do americano Herman Melville. Mas esta não será uma luta dantesca, ao contrário, é discreta: sem testemunhas que não sejam uma ou outra ave passando à procura do que comer, é o enfrentamento de um velho alquebrado pela idade, com os olhos prejudicados pela exposição excessiva ao sol e um espadarte não tão épico como uma baleia. Será a luta particular, íntima, de um homem contra as forças da natureza, representadas aqui pelo peixe que não se deixa pescar.
Durante o livro todo, notamos três níveis diferentes de – digamos assim, diálogos – em diferentes ocasiões: o diálogo explícito mesmo, marcado por travessões e retomadas de fala de um interlocutor, como os que o velho mantém com Manolín, o rapazinho do começo da história; o solilóquio, quando o velho conversa em voz alta consigo mesmo e, por fim, o diálogo interno, em forma de pensamento, silencioso: vejamos.
“— Se os outros me ouvissem falando sozinho, julgariam que estou louco – disse em voz alta. – Mas, como não estou louco, não me importo. Os ricos têm aparelhos de rádio em seus barcos, para ouvirem música e notícias de beisebol.
“Mas agora não é o momento próprio para pensar em beisebol. Agora só devo pensar numa coisa, aquela coisa para a qual nasci. É capaz de haver um dos grandes, naquele cardume. Até agora só consegui apanhar um peixe extraviado, uma albacora que esta se alimentando. O cardume está se afastando muito depressa. Tudo o que vem hoje à superfície viaja com uma grande rapidez e sempre para noroeste. Será por causa da hora? Ou será qualquer indicação de mudança de tempo, que eu desconheça?” (página 16)
Neste trecho acima transcrito, aparece também um outro tema, a conformação diante do próprio destino, o velho crê que ele é pescador porque nasceu para sê-lo e nada poderá modificar tal condição.
Santiago é um pescador experimentado, conhecedor dos segredos de seu ofício, como fica muito claro no trecho que se segue:
“Durante a noite dois porcos-marinhos aproximaram-se do barco, e o velho ouviu-os rolando na água e soprando. Notou a diferença entre o soprar do macho e o da fêmea.
— São bons – murmurou o velho. – Brincam e se divertem um com o outro e amam-se. São nossos irmãos, tal como os peixes-voadores.” (página 44)
Neste trecho não só transparece o profundo conhecimento do pescador sobre criaturas do mar, mas também o respeito, o carinho para com essas criaturas, quando ele as compara aos humanos. E, também, ressalta aí um tom de melancolia difusa. Sou partidário de que não devemos utilizar dados da vida do autor, ou de suas características, para explicar passagens da obra, mas igualmente reconheço que neste caso, o de Ernest Hemingway, essa questão da “melancolia difusa” era bastante frequente em sua vida, como vimos em sua biografia, para que não transpareça em pelo menos algumas de suas obras. O Velho e O Mar é obra do final de sua vida, quando estava já sofrendo de muitos problemas, incluindo a depressão.
A longa luta entre o velho e o espadarte vai depauperando as forças de um e de outro. Mais depressa as do nosso personagem humano, porque as tem poucas. A linha lhe fere as palmas das mãos, ele as desloca para os grossos calos. O peixe puxa a linha, ele curva o corpo para trás, a lhe opor resistência. A fome o contempla e ele consegue, habilmente, com uma das mãos, retalhar em postas um peixe que conseguira apanhar, dentro do barco, e comê-lo cru. Mastiga-as lentamente, sabendo que precisará tirar forças quando já não as tem muitas. O barco singra pelo mar, dentro da noite escura, e o velho teme que o peixe resolva, de uma hora para outra, afundar cada vez mais no mar, ao invés de ir para frente. Se isto acontecer, ele sabe, terá perdido a presa.
Há um momento de estranha magia, em que o velho decide por dormir alguns minutos para recompor suas energias, enquanto o peixe lá embaixo lhe dá uma trégua:
“Mais tarde começou a sonhar com as longas praias amarelas e viu o primeiro leão sair da floresta na escuridão da noite; depois apareceram os outros leões e o velho apoiou o queixo na madeira da proa do navio que estava ancorado ao largo, na brisa da noite, e ali ficou à espera de ver mais leões, sentindo-se feliz e confortado.” (página 73)
Leões são símbolos de força, de majestade; eram levados pelos romanos para serem combatidos por lutadores nas areias do famoso Coliseu. Aqui também representam a juventude, a força física que Santiago já não tem.
Há claramente, além da luta do velho contra o peixe, uma outra luta silenciosa, extraordinária, do seu espírito pertinaz contra seu frágil corpo de velho. É bem uma luta que merece ser lutada: a da determinação contra a fragilidade.
Santiago avalia seu adversário e sente admiração por ele, pela sua força, pela luta pela própria vida:
“Você está me matando, peixe”, pensou o velho pescador. “Mas tem o direito de fazê-lo. Nunca vi nada mais bonito, mais calmo ou mais nobre do que você, meu irmão. Venha daí e mate-me. Eu não me importo que qualquer outro o mate.” (página 81)
Dá vontade de antecipar o final, ainda mais se pensando que esta é uma obra conhecida, todo mundo sabe o final da história. Mas, não. Não é verdade que todos já saibam do final, mesmo em sendo uma obra clássica. Ao realizar um spoiler, eu trairia o objetivo destes meus trabalhos aqui no blogue: convidar as pessoas ao encantamento pela leitura.
Li, certa vez, uma definição bem-humorada de um clássico: “clássicos são aqueles livros que alguém está sempre relendo”. Ou seja, esta frase algo sarcástica nos diz que os tais clássicos que andam nas mãos de poucos, que os releem. Prefiro entender esta assertiva de outra forma: clássicos são tão bons que os leitores nunca se contentam com apenas uma leitura.
O Velho e O Mar. A primeira vez que o li foi há muito tempo; de lá para cá, vivi, li muita coisa, meu mundo de referências se enriqueceu. Que mistério haverá nos textos literários, que bruxarias, que sortilégios lançarão estes autores sobre suas obras? Quantos sub-textos haverão?
Leitor amigo, considere a possibilidade de ler este O Velho e O Mar. Não ligue para a narrativa lenta, pouco condizente com a velocidade vertiginosa do nosso tempo. Espraie-se num sofá, esteja sozinho e disposto a iniciar uma viagem aos valores humanos talvez meio esquecidos. Persistência, superação, dedicação – esta é uma obra como poucas. Deixe-se contagiar pela respiração do texto, sinta a imensidão das águas do mar, da fragilidade de uma pequena canoa que qualquer marola pode virar. Sinta suas mãos ensanguentadas pela fricção da linha. Então, puxe-a devagar, para que ela não se rompa, traga o peixe à superfície. A recompensa será enorme, uma espécie de epifania.
Nota 10.

2 comentários:

Godinho disse...

Cleuber, este parágrafo que você adorou não é do Hemingway. É uma maluquice absurda e criminosa do tradutor. Pegue original em inglês. Você vai ver que é totalmente diferente.
O americano não começa o livro dessa maneira. Ele sequer diz o nome do velho até o quarto parágrafo.
Na tradução absurda do tal de Fernando Ferro, é a primeira coisa que é dita. "O velho chamava-se Santiago". Que doideira.
Enfim, achei bom avisar.

Blog do Cleuber disse...

Muito obrigado pela sua participação, Godinho. Cotejado com o texto em inglês, há sim, certas modificações. A que você apontou, o texto original não começar citando o nome de Santiago, só o fazendo no quarto parágrafo, procede.
Todavia, é o mesmo tradutor utilizado pela edição da Bertrand Brasil, contendo nova redação, pelo menos no que tange o parágrafo em questão. Um abraço!