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sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Resenha nº 133 - Bartleby, O Escriturário, de Herman Melville


Bartleby, o escriturário (Novelas Imortais) por [Melville, Herman]
Título original: Bartleby, The Scribner
Título em português: Bartleby, O Escriturário
Autor: Herman Melville
Tradutor: Luís de Lima
Editora: Rocco
Copyright: 1986
ISBN: 978-85-7980-001-6
Gênero: Novela
Origem: Literatura americana
Páginas: 68
Coleção Novelas Imortais, dirigida por Fernando Sabino
Bibliografia do autor: Typee: A Peep at Polynesian Life (Typee: Um Olhar Sobre A Vida na Polinésia, 1846; Omoo (Omoo: Uma Narrativa de Aventuras nos Mares do Sul, 1847; Mardi (Mardi), 1849; Redburn, 1849; White-Jacket, 1850; Moby-Dick, A Baleia Branca, 1851; Pierre, 1852; Isle of The Cross, 1853; Israel Potter, 1856; The Confidence-man (O Homem de Confiança), 1857; Billy Budd, 1924. Contos: The Piazza Tales (contendo Bartleby, O Escrivão, The Piazza, Benito Cereno, The ligghtining-Rod Man, The Encantadas, or Enchanted Isles e The Bell-Tower), 1856.


Bartleby, O Escriturário, ou Bartleby, O Escrivão em algumas edições em português, é daqueles livros que a gente ouve falar ou dá com ele em certas pesquisas sobre outros livros. Lê-lo, portanto, é quase uma releitura. Bartleby é um personagem icônico, bem como sua resposta “prefiro não” a tudo o que lhe pedem. É uma leitura breve e inquietante; realmente, como dizem, há qualquer coisa de kafkiano nesta novela incrível. Fico pensando como deve ter sido a recepção desta obra, escrita em duas partes, a primeira delas publicada em uma revista nova iorquina em 1853. À época, Herman Melville já não gozava de muita popularidade, produzindo obras desiguais e vendo sua situação financeira declinar de maneira definitiva. Morreu na obscuridade.

Herman Melville nasceu em Nova Iorque, em 01/08/1819 e faleceu na mesma cidade, em 28/09/1891, aos 72 anos de idade. Era o terceiro filho do casal Allan e Maria Gansevoort Melvill (o autor, posteriormente, acrescentaria a letra “e” ao seu nome, assinando Melville). Possuía limitações de visão, herança de uma escarlatina sofrida em infância. A família se mudou para Albany em 1830, onde Herman frequentou a Albany Academy. Após a morte do pai, ele se tornou arrimo de família (tinha oito irmãos) e trabalhou como professor, bancário e agricultor. Em 1841, navegou por quase todo o Oceano Pacífico, a bordo de uma baleeira. Teve uma experiência nas Ilha Marquesas, da polinésia francesa, convivendo com uma tribo de canibais; tais experiências serviriam de base para o seu livro Typee (1846). Além disso, Herman Melville embarcou no baleeiro Lucy Ann, de origem austríaca. Participou de um motim, contra o capitão autoritário, despótico e terminou sendo abandonado na ilha de Tahiti, da qual fugiu. Serviu também como arpoador no Charles & Henry e retornou a Boston como marinheiro. Estas últimas peripécias lhe forneceram o material para o livro Omoo: Uma narrativa de aventuras nos mares do sul e Typee: Um olhar para a vida polinésia, que lhe deram fama e algum conforto financeiro.

Casou-se com Elizabeth Shaw em 1847 e publicou seu terceiro livro, Mardi, em 1849. Com a publicação deste livro, escrito em tom melancólico e introspectivo, Herman começa a perder seu público, que não se identifica com o tom dado por ele a suas obras. Mas, a pá de cal sobre este escritor tão sofrido foi Moby Dick: um fracasso de público e de crítica. Ironicamente, é hoje alçado à categoria de clássico; Herman Melville é mundialmente conhecido como o autor de Moby Dick, relatando as aventuras do icônico Capitão Ahab (ou Acab, de acordo com algumas grafias) contra uma monstruosa e indomável baleia branca, batizada de Moby Dick. A própria série de filmes Jornada nas Estrelas: A Nova Geração tem, na figura do Capitão Jean-Luc Picard um atencioso leitor daquela obra de Melville. A biografia de alguns escritores não pode ser feita em poucas linhas, pois como verá o leitor, nesses casos, como o de Herman Melville, ela lança luz sobre suas obras.

Bartleby, O Escriturário é destes livros que, depois de lidos, deixa uma espécie de inquietação no leitor. Pelo menos, foi o que senti ao terminá-lo. O enredo é dos mais simples.  Num escritório de advocacia, trabalham, além do dono, mais três empregados: Turkey, Nippers e Ginger Nut. O patrão contrata outro, Bartleby como copista. Naquele tempo, as reproduções de documentos eram feitas à mão mesmo. Esta seria a função deste novo contratado. Só que não. Aos poucos, Bartleby vai se tornando um problema sério para aquele pequeno escritório. A cada serviço que lhe é destinado, ele responde com um polido, mas firme “prefiro não fazer”.

A relação que se estabelece entre o advogado-narrador e este empregado estranho é incompreensível. Apesar de o escriturário se negar terminantemente a fazer suas atribuições, o patrão não o manda embora. tenta entender seu comportamento e não o consegue:
“Sou um homem de certa idade. A natureza das minhas ocupações, nestes últimos trinta anos, me levou a entrar permanentemente em contato com uma espécie de homens interessantes e um tanto singulares, da qual, que eu saiba, nada até agora se tem escrito: refiro-me aos copistas, escriturários ou escreventes a serviço de homens de leis. Conheci muitos, quer profissional que particularmente, e poderia, se quisesse, contar sobre eles inúmeras histórias que fariam sorrir afáveis cavalheiros e levariam às lágrimas as almas sentimentais. Mas renuncio às biografias de todos os demais escriturários para relatar algumas passagens da vida de Bartleby, o mais estranho de todos que jamais vi e de quanto tive notícias.” (página 13)
Não é, como se pode depreender, um narrador neutro; muito antes, é parcial, ao tomar partido do empregado, no seu afã de compreendê-lo e desculpá-lo por o considerar um desajustado ou doente.

Bartleby começa muito bem, desentulha várias cópias que precisavam ser feitas, mas, progressivamente, vai se recusando a receber ordens, para a ira dos outros empregados do escritório, que são obrigados a assumir suas tarefas.
“Nesta atitude me encontrava quando o chamei, explicando rapidamente o que queria que ele fizesse: conferir comigo aquele pequeno documento. Imaginem então a minha consternação, quando, sem sair do seu recanto, Bartleby, numa voz singularmente moderada e firme, respondeu:
— Prefiro não fazer.
Continuei sentado durante alguns momentos, em perfeito silêncio, tentando sair da minha perplexidade. Mas logo me ocorreu tratar-se de um engano dos meus ouvidos ou então que Bartleby não compreendera bem a minha ordem. Renovei pois o chamado de forma bem clara, mas ouvi a mesma resposta com idêntica clareza:
— Prefiro não fazer.” (página 32)
Bartleby é descrito como um homem cadavérico, taciturno, pálido. Os outros empregados também têm suas esquisitices, mas este escriturário excede tudo o que se possa imaginar. Apesar de suas constantes recusas, o patrão tem, para com ele, uma atitude de compaixão e busca mesmo estabelecer algumas explicações (para consumo próprio) para tal obstinação.

Quanto mais Bartleby se recolhe ao seu mundo, mais compassivo se torna o advogado; não consegue mandá-lo embora, dá-lhe dinheiro porque pensa que o empregado está doente, ou com algum problema particular. Nada. Bartleby permanece um enigma.

Bartleby, O Escriturário não prima por um enredo complexo, na superfície. É até bem simples, em parte por causa da extensão do texto. É impressionante como Melville consegue, em uma obra tão curta, dotar seus personagens de tanta complexidade psicológica; não há explicação única, nem para a inação de Bartleby, nem para a conivência do patrão.
“Alguns dias se passaram, durante os quais o escriturário se absorveu de novo em mais uma extensa cópia. A maneira notável como ele se conduzia pela segunda vez levou-me a observar de perto a sua atividade. Constatei que nunca saía para jantar; que, aliás, nunca ia a parte alguma. Nem me lembro de jamais o ter encontrado fora do meu escritório. Era verdadeiramente uma perpétua sentinela naquele canto. Todavia, cerca das onze horas da manhã, notei que Ginger Nut aproximava-se da abertura do biombo de Bartleby, como se houvesse sido chamado silenciosamente ali por gesto, invisível para mim do lugar onde me sentava.” (página 38)
O escritor espanhol Enrique Vila-Matas escreveu um livro em que se refere à “Síndrome de Bartleby”, pela qual escritores optam pelo “não” e deixam de escrever (veja-se o caso famoso de Salinger, que nada mais escreveu depois de O Apanhador No Campo de Centeio, ou no caso brasileiro, do nosso Raduan Nassar). Resenhei o livro de Enrique Vila-Matas, Bartleby e Companhia, aqui neste blogue.

É quase sempre redutor usar dados da biografia do autor para tentar explicar alguma de suas obras, e por isso tal recurso não costuma ser usado em análises críticas de literatura.  Mas um dado interessante da biografia de Herman Melville é que ele se tornou um autor progressivamente desconhecido a partir da publicação de Moby Dick, como já disse. Ele se torna cada vez mais introspectivo, recolhido a si mesmo. 

E aqui vou usar uma alusão direta a Viktor Frankl (Em Busca de Sentido, resenhado aqui no blogue) e dizer que, para Bartleby, a vida perdera o sentido. E o mesmo, para Melville, assumindo o risco da comparação. De fato, Bartleby chega ao cúmulo de se mudar para o escritório, fazendo dele a sua casa.

Como você, leitor que me acompanha, o que muito me honra, já deve ter percebido, lá no blogue, na seção “O que estou lendo”, acrescentei a O Vidiota este Bartleby, O Escriturário. Não por acaso. É que, durante a leitura de O Vidiota, tantas coincidências (existem, mesmo, coincidências?) foram acontecendo, tantas situações e construção similar de personagem pelo autor Jerzy Kosinski, que resolvi antecipar Melville.

De uma maneira sub-reptícia, todas as pessoas que trabalhavam naquele escritório vão incorporando o verbo preferir ao seu vocabulário:
“Enquanto Nippers, com um ar extremamente irritado, ia saindo, Turkey aproximou-se calmo e bonachão.
— Com o devido respeito, senhor – disse ele –, ontem estive aqui pensando sobre Bartleby, e acho que se ele preferisse tomar todos os dias uma boa cerveja, isso o poria em forma e contribuiria para nos ajudar na revisão das cópias.
— Então você também pegou essa palavra – disse eu, ligeiramente enervado.
— Desculpe, senhor, que palavra? – perguntou Turkey, delicadamente introduzindo-se no exíguo espaço por detrás do biombo, levando-me assim a esbarrar no escriturário. – Que palavra, senhor?
— Prefiro que me deixem sozinho aqui – disse Bartleby, como que ofendido por ver-se perturbado no seu retiro.
Essa é a palavra. – É essa.” (página 59)
Bartleby, O Escriturário pertence a uma linha literária que perpassa A Metamorfose, de Franz Kafka; O Vidiota, de Jerzy Kosinsky; A Fera Na Selva, de Henry James e até mesmo Stoner, de John Williams – todas elas com suas profundas diferenças de concepção e filosofia. O fio que une tais obras é a inação, às vezes consciente, outras, inconsciente. Parece não ser uma opção, mas uma derrocada do eu diante dos sonhos, da vida, em suma. Em A Metamorfose, Gregor Sansa se transforma num inseto abjeto; em O Vidiota, Chance Gardener se abstrai do mundo exterior; em A Fera Na Selva, John Marcher e May Bartram esperam algo que não vem, e enquanto isso, são inativos; em Stoner, William Stoner tem uma vida plana, contra a qual não se insurge. E todos me lembram uma peça que me causou alto impacto, Esperando Godot, de Samuel Beckett, sobre o absurdo de algumas pessoas passarem um longo tempo esperando alguém que, afinal, não vem.

Bartleby configura um caso bastante curioso. Ele é o personagem para quem a vida, diante do sistema, não tem mais sentido; a falta de sentido torna-o inadequado para ser utilizado pelo sistema a que deveria servir. Poderíamos, a priori, pensar em resistência (ainda que inconsciente). Entretanto, a posteriori, descobrimos que não se trata, efetivamente, de resistência, pela própria caracterização do personagem, como se segue abaixo:
“Olhei atentamente para ele, e notei que seus olhos mostravam-se baços e vidrados. Instantaneamente me ocorreu a ideia de que aquela sua extraordinária aplicação em fazer cópias junto à sombria janela durante as primeiras semanas no meu escritório lhe tivesse afetado temporariamente a vista.” (página 61)
“Ele não retrucou sequer uma única palavra; tal como a derradeira coluna de um templo em ruínas, continuou de pé, mudo e solitário, no meio da sala deserta.” (página 65)
As descrições acima não podem ser coladas a um personagem que se revolta contra o sistema. Ao contrário, é de alguém que se submete a ele, e por se submeter tão profundamente, torna-se apático, desinteressado e, portanto, descartável. O sistema precisa de nossa adesão entusiástica, mas não crítica.

Por tudo isto, classifico este Bartleby, O Escriturário, como uma pequena obra-prima. Pequena somente na extensão textual. Grande na caracterização psicológica do seu protagonista e no texto subjacente, muito mais complexo do que o texto aparente. Mais que o recomendo, ainda mais nestes tempos em que vivemos todos.

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