Título original: Bartleby, The
Scribner
Título em
português: Bartleby, O Escriturário
Autor:
Herman Melville
Tradutor:
Luís de Lima
Editora:
Rocco
Copyright:
1986
ISBN:
978-85-7980-001-6
Gênero:
Novela
Origem:
Literatura americana
Páginas: 68
Coleção
Novelas Imortais, dirigida por Fernando Sabino
Bibliografia
do autor: Typee: A Peep at Polynesian Life (Typee: Um Olhar Sobre A Vida na
Polinésia, 1846; Omoo (Omoo: Uma Narrativa de Aventuras nos Mares do Sul, 1847;
Mardi (Mardi), 1849; Redburn, 1849; White-Jacket, 1850; Moby-Dick, A Baleia
Branca, 1851; Pierre, 1852; Isle of The Cross, 1853; Israel Potter, 1856; The
Confidence-man (O Homem de Confiança), 1857; Billy Budd, 1924. Contos: The
Piazza Tales (contendo Bartleby, O Escrivão, The Piazza, Benito Cereno, The
ligghtining-Rod Man, The Encantadas, or Enchanted Isles e The Bell-Tower),
1856.
Bartleby, O Escriturário, ou Bartleby, O Escrivão em algumas edições em português, é daqueles
livros que a gente ouve falar ou dá com ele em certas pesquisas sobre outros
livros. Lê-lo, portanto, é quase uma releitura. Bartleby é um personagem
icônico, bem como sua resposta “prefiro não” a tudo o que lhe pedem. É uma
leitura breve e inquietante; realmente, como dizem, há qualquer coisa de
kafkiano nesta novela incrível. Fico pensando como deve ter sido a recepção
desta obra, escrita em duas partes, a primeira delas publicada em uma revista nova
iorquina em 1853. À época, Herman Melville já não gozava de muita popularidade,
produzindo obras desiguais e vendo sua situação financeira declinar de maneira
definitiva. Morreu na obscuridade.
Herman Melville nasceu em Nova
Iorque, em 01/08/1819 e faleceu na mesma cidade, em 28/09/1891, aos 72 anos de
idade. Era o terceiro filho do casal Allan e Maria Gansevoort Melvill (o autor,
posteriormente, acrescentaria a letra “e” ao seu nome, assinando Melville). Possuía
limitações de visão, herança de uma escarlatina sofrida em infância. A família
se mudou para Albany em 1830, onde Herman frequentou a Albany Academy. Após a
morte do pai, ele se tornou arrimo de família (tinha oito irmãos) e trabalhou
como professor, bancário e agricultor. Em 1841, navegou por quase todo o Oceano
Pacífico, a bordo de uma baleeira. Teve uma experiência nas Ilha Marquesas, da polinésia
francesa, convivendo com uma tribo de canibais; tais experiências serviriam de
base para o seu livro Typee (1846). Além
disso, Herman Melville embarcou no baleeiro Lucy
Ann, de origem austríaca. Participou de
um motim, contra o capitão autoritário, despótico e terminou sendo abandonado
na ilha de Tahiti, da qual fugiu. Serviu também como arpoador no Charles & Henry e retornou a Boston como marinheiro. Estas últimas
peripécias lhe forneceram o material para o livro Omoo: Uma narrativa de aventuras nos mares do sul e Typee: Um olhar para a vida polinésia, que lhe deram fama e algum conforto
financeiro.
Casou-se com Elizabeth Shaw em 1847
e publicou seu terceiro livro, Mardi,
em 1849. Com a publicação deste livro, escrito em tom melancólico e
introspectivo, Herman começa a perder seu público, que não se identifica com o tom
dado por ele a suas obras. Mas, a pá de cal sobre este escritor tão sofrido foi
Moby Dick: um fracasso de público e
de crítica. Ironicamente, é hoje alçado à categoria de clássico; Herman
Melville é mundialmente conhecido como o autor de Moby Dick, relatando as aventuras do icônico Capitão Ahab (ou Acab,
de acordo com algumas grafias) contra uma monstruosa e indomável baleia branca,
batizada de Moby Dick. A própria série de filmes Jornada nas Estrelas: A Nova Geração tem, na figura do Capitão
Jean-Luc Picard um atencioso leitor daquela obra de Melville. A biografia de
alguns escritores não pode ser feita em poucas linhas, pois como verá o leitor,
nesses casos, como o de Herman Melville, ela lança luz sobre suas obras.
Bartleby,
O Escriturário é destes livros que, depois de lidos, deixa uma espécie de
inquietação no leitor. Pelo menos, foi o que senti ao terminá-lo. O enredo é
dos mais simples. Num escritório de
advocacia, trabalham, além do dono, mais três empregados: Turkey, Nippers e
Ginger Nut. O patrão contrata outro, Bartleby como copista. Naquele tempo, as reproduções
de documentos eram feitas à mão mesmo. Esta seria a função deste novo
contratado. Só que não. Aos poucos, Bartleby vai se tornando um problema sério
para aquele pequeno escritório. A cada serviço que lhe é destinado, ele
responde com um polido, mas firme “prefiro não fazer”.
A relação que se estabelece entre o
advogado-narrador e este empregado estranho é incompreensível. Apesar de o
escriturário se negar terminantemente a fazer suas atribuições, o patrão não o
manda embora. tenta entender seu comportamento e não o consegue:
“Sou um homem de certa idade. A natureza das minhas ocupações, nestes últimos trinta anos, me levou a entrar permanentemente em contato com uma espécie de homens interessantes e um tanto singulares, da qual, que eu saiba, nada até agora se tem escrito: refiro-me aos copistas, escriturários ou escreventes a serviço de homens de leis. Conheci muitos, quer profissional que particularmente, e poderia, se quisesse, contar sobre eles inúmeras histórias que fariam sorrir afáveis cavalheiros e levariam às lágrimas as almas sentimentais. Mas renuncio às biografias de todos os demais escriturários para relatar algumas passagens da vida de Bartleby, o mais estranho de todos que jamais vi e de quanto tive notícias.” (página 13)
Não é, como se pode depreender, um
narrador neutro; muito antes, é parcial, ao tomar partido do empregado, no seu
afã de compreendê-lo e desculpá-lo por o considerar um desajustado ou doente.
Bartleby começa muito bem, desentulha
várias cópias que precisavam ser feitas, mas, progressivamente, vai se
recusando a receber ordens, para a ira dos outros empregados do escritório, que
são obrigados a assumir suas tarefas.
“Nesta atitude me encontrava quando o chamei, explicando rapidamente o que queria que ele fizesse: conferir comigo aquele pequeno documento. Imaginem então a minha consternação, quando, sem sair do seu recanto, Bartleby, numa voz singularmente moderada e firme, respondeu:
— Prefiro não fazer.
Continuei sentado durante alguns momentos, em perfeito silêncio, tentando sair da minha perplexidade. Mas logo me ocorreu tratar-se de um engano dos meus ouvidos ou então que Bartleby não compreendera bem a minha ordem. Renovei pois o chamado de forma bem clara, mas ouvi a mesma resposta com idêntica clareza:
— Prefiro não fazer.” (página 32)
Bartleby é descrito como um homem
cadavérico, taciturno, pálido. Os outros empregados também têm suas
esquisitices, mas este escriturário excede tudo o que se possa imaginar. Apesar
de suas constantes recusas, o patrão tem, para com ele, uma atitude de
compaixão e busca mesmo estabelecer algumas explicações (para consumo próprio)
para tal obstinação.
Quanto mais Bartleby se recolhe ao
seu mundo, mais compassivo se torna o advogado; não consegue mandá-lo embora,
dá-lhe dinheiro porque pensa que o empregado está doente, ou com algum problema
particular. Nada. Bartleby permanece um enigma.
Bartleby,
O Escriturário não prima por um enredo complexo, na superfície. É até bem
simples, em parte por causa da extensão do texto. É impressionante como
Melville consegue, em uma obra tão curta, dotar seus personagens de tanta
complexidade psicológica; não há explicação única, nem para a inação de
Bartleby, nem para a conivência do patrão.
“Alguns dias se passaram, durante os quais o escriturário se absorveu de novo em mais uma extensa cópia. A maneira notável como ele se conduzia pela segunda vez levou-me a observar de perto a sua atividade. Constatei que nunca saía para jantar; que, aliás, nunca ia a parte alguma. Nem me lembro de jamais o ter encontrado fora do meu escritório. Era verdadeiramente uma perpétua sentinela naquele canto. Todavia, cerca das onze horas da manhã, notei que Ginger Nut aproximava-se da abertura do biombo de Bartleby, como se houvesse sido chamado silenciosamente ali por gesto, invisível para mim do lugar onde me sentava.” (página 38)
O escritor espanhol Enrique Vila-Matas
escreveu um livro em que se refere à “Síndrome de Bartleby”, pela qual
escritores optam pelo “não” e deixam de escrever (veja-se o caso famoso de
Salinger, que nada mais escreveu depois de O
Apanhador No Campo de Centeio, ou no caso brasileiro, do nosso Raduan Nassar).
Resenhei o livro de Enrique Vila-Matas, Bartleby
e Companhia, aqui neste blogue.
É quase sempre redutor usar dados
da biografia do autor para tentar explicar alguma de suas obras, e por isso tal
recurso não costuma ser usado em análises críticas de literatura. Mas um dado interessante da biografia de Herman
Melville é que ele se tornou um autor progressivamente desconhecido a partir da
publicação de Moby Dick, como já disse. Ele se torna cada vez mais
introspectivo, recolhido a si mesmo.
E aqui vou usar uma alusão direta a
Viktor Frankl (Em Busca de Sentido,
resenhado aqui no blogue) e dizer que, para Bartleby, a vida perdera o sentido.
E o mesmo, para Melville, assumindo o risco da comparação. De fato, Bartleby
chega ao cúmulo de se mudar para o escritório, fazendo dele a sua casa.
Como você, leitor que me acompanha,
o que muito me honra, já deve ter percebido, lá no blogue, na seção “O que
estou lendo”, acrescentei a O Vidiota
este Bartleby, O Escriturário. Não por
acaso. É que, durante a leitura de O
Vidiota, tantas coincidências (existem, mesmo, coincidências?) foram
acontecendo, tantas situações e construção similar de personagem pelo autor
Jerzy Kosinski, que resolvi antecipar Melville.
De uma maneira sub-reptícia, todas
as pessoas que trabalhavam naquele escritório vão incorporando o verbo preferir ao seu vocabulário:
“Enquanto Nippers, com um ar extremamente irritado, ia saindo, Turkey aproximou-se calmo e bonachão.
— Com o devido respeito, senhor – disse ele –, ontem estive aqui pensando sobre Bartleby, e acho que se ele preferisse tomar todos os dias uma boa cerveja, isso o poria em forma e contribuiria para nos ajudar na revisão das cópias.
— Então você também pegou essa palavra – disse eu, ligeiramente enervado.
— Desculpe, senhor, que palavra? – perguntou Turkey, delicadamente introduzindo-se no exíguo espaço por detrás do biombo, levando-me assim a esbarrar no escriturário. – Que palavra, senhor?
— Prefiro que me deixem sozinho aqui – disse Bartleby, como que ofendido por ver-se perturbado no seu retiro.
— Essa é a palavra. – É essa.” (página 59)
Bartleby,
O Escriturário pertence a uma linha literária que perpassa A Metamorfose, de Franz Kafka; O Vidiota, de Jerzy Kosinsky; A Fera Na Selva, de Henry James e até
mesmo Stoner, de John Williams –
todas elas com suas profundas diferenças de concepção e filosofia. O fio que
une tais obras é a inação, às vezes consciente, outras, inconsciente. Parece não
ser uma opção, mas uma derrocada do eu diante dos sonhos, da vida, em suma. Em A Metamorfose, Gregor Sansa se
transforma num inseto abjeto; em O
Vidiota, Chance Gardener se abstrai do mundo exterior; em A Fera Na Selva, John Marcher e May
Bartram esperam algo que não vem, e enquanto isso, são inativos; em Stoner, William Stoner tem uma vida
plana, contra a qual não se insurge. E todos me lembram uma peça que me causou
alto impacto, Esperando Godot, de
Samuel Beckett, sobre o absurdo de algumas pessoas passarem um longo tempo
esperando alguém que, afinal, não vem.
Bartleby configura um caso bastante
curioso. Ele é o personagem para quem a vida, diante do sistema, não tem mais
sentido; a falta de sentido torna-o inadequado para ser utilizado pelo sistema
a que deveria servir. Poderíamos, a
priori, pensar em resistência (ainda que inconsciente). Entretanto, a posteriori, descobrimos que não se
trata, efetivamente, de resistência, pela própria caracterização do personagem,
como se segue abaixo:
“Olhei atentamente para ele, e notei que seus olhos mostravam-se baços e vidrados. Instantaneamente me ocorreu a ideia de que aquela sua extraordinária aplicação em fazer cópias junto à sombria janela durante as primeiras semanas no meu escritório lhe tivesse afetado temporariamente a vista.” (página 61)
“Ele não retrucou sequer uma única palavra; tal como a derradeira coluna de um templo em ruínas, continuou de pé, mudo e solitário, no meio da sala deserta.” (página 65)
As descrições acima não podem ser
coladas a um personagem que se revolta contra o sistema. Ao contrário, é de alguém
que se submete a ele, e por se submeter tão profundamente, torna-se apático,
desinteressado e, portanto, descartável. O sistema precisa de nossa adesão
entusiástica, mas não crítica.
Por tudo isto, classifico este Bartleby, O Escriturário, como uma
pequena obra-prima. Pequena somente na extensão textual. Grande na
caracterização psicológica do seu protagonista e no texto subjacente, muito
mais complexo do que o texto aparente. Mais que o recomendo, ainda mais nestes
tempos em que vivemos todos.
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