Título em português:
Hiroshima
Autor: John Hersey
Tradutor: Hildegard Feist
Edição: 1ª
Reimpressão: 8ª
Editora: Cia. das Letras
Copyright: 1973
ISBN: 978-85-359-0279-2
Páginas: 172
Gênero: Literatura de não
ficção
Bibliografia do autor: Men on Bataan, 1942; Into the Valley, 1943;
A Bell for Adano , 1944; Hiroshima, 1946; The Wall, 1950; The
Marmot Drive, 1953; A Single Pebble, 1956; The War Lover,
1959; O comprador de crianças - no original The Child Buyer,
1960; Here to Stay, 1963; White Lotus, 1965; Too Far To Walk, 1966; Under the Eye of the Storm, 1967 ;
The Algiers Motel Incident, 1968; Letter to the Alumni,
1970; The Conspiracy, 1972; My Petition for More Space, 1974 ;
The Walnut Door, 1977; Aspects of the Presidency, 1980; The
Call, 1985; Blues, 1987; Life Sketches, 1989; Fling and
Other Stories, 1990; Antonietta, 1991; Key West Tales, 1994.
06 de agosto de 1945.
08:15. A cidade japonesa de Hiroshima iniciava mais um dia sem novidades em sua
rotina. Com o formato de um leque, o local é cortado pelo rio Ota; ele o divide em canais,
formando ilhas. Hiroshima crescera em torno de um castelo feudal do século XVI
e recebeu o estatuto de cidade em 1589. De um momento para o outro, sem que as
pessoas pudessem conceber o perigo mortal – muitas ainda dentro de suas casas –
um clarão mais forte do que o sol invadiu o espaço da cidade. Uma onda
misteriosa, potente, chegou, literalmente reduzindo as habitações a escombros. O
ruído de uma explosão sem igual chegou depois. A Humanidade tinha assim a
notícia de que o mundo entrara na Era Atômica. Os dados oficiais dão conta de
250.000 mortos e feridos. Corpos crestados, derretidos pelo então
incompreensível poder de uma única bomba. Little boy, como fora apelidada, era uma bomba atômica de fissão nuclear. A triste
familiaridade da população de outras cidades com os voos dos B-29 americanos cobrou
um alto preço. Hiroshima ainda não sofrera incursões aéreas. As sirenes,
naquele dia, não tocaram. Por que tocariam? Um único avião, ainda que uma
fortaleza aérea, poderia representar tão grande perigo?
John Hersey nasceu na China, em
17/06/1914 e morreu em 24/03/1993, na cidade americana de Key West, Florida. Era
filho dos missionários Roscoe e Grace Baird Hersey. Sua família retornou aos
Estados Unidos quando John tinha dez anos de idade. Formou-se pela Universidade
Yale, fez pós-graduação em Cambridge. Trabalhou com jornalista, cobrindo as
guerras na Europa (Sicília) e na Ásia (Guadalcanal), produzindo artigos para as
revistas Time, Life e New Yorker. Sempre
escreveu bons artigos, mas tornou-se mundialmente famoso pela sua reportagem sobre
Hiroshima. Esta foi publicada apenas um ano depois da explosão da bomba atômica
e ocupou inteiramente a edição da New
Yorker. Consta que o sucesso foi
espetacular. A tiragem da publicação se esgotou. Albert Einstein tentou
encomendar mil exemplares, mas não foi possível atendê-lo.
No posfácio Jornalismo com H, Matinas Suzuki Jr. nos diz que
“Hiroshima é uma espécie de Cidadão Kane do jornalismo. Como o filme de Orson Welles, esse texto lidera todas as listas de “melhor reportagem” já escrita. O autor John Hersey precisou de 31.347 palavras para explicar como uma única explosão matou 100 mil pessoas, feriu seriamente o corpo de mais 100 mil e machucou a alma da humanidade.” (página 161)
Hiroshima,
posteriormente, foi publicado em forma de livro e esta edição da Cia. das Letras,
que tenho em mãos, inclui a complementação da reportagem inicial, feita
quarenta anos depois. Há um posfácio, como dito acima, que acrescenta
importantes informações à edição.
Uma grande parte do impacto causado
pelo texto de John Hersey se deve à instauração de um narrador-observador
rigoroso ao tratar os fatos, mas que não emite, na maioria das vezes, juízos de
valor. Como se fosse uma câmara de cinema, que apenas grava o que detecta. Outra
parte se deve ao ponto de vista narrativo que o autor escolheu: o depoimento de
seis pessoas, seis hibakusha – termo japonês
aproximadamente traduzido como “sobreviventes”. Tal técnica narrativa confere
ao trabalho, ao mesmo tempo, um forte viés de humanidade (são depoimentos de
quem sofreu na carne e na alma os efeitos da explosão nuclear) e veracidade (as
informações são cruzadas e apontam, em essência, para o mesmo ponto). Ainda,
John Hersey foi extremamente feliz em escolher o gênero híbrido de
reportagem-literatura. Não tornou os fatos mais palatáveis, mas seu texto é
fluente. Tanto assim que o li quase que de uma sentada, não consegui largá-lo.
Como evidência da objetividade do
texto de Hersey – de propósito evitei a palavra neutralidade, pois tal não
existe em qualquer obra humana – transcrevemos parte do depoimento de uma das seis
pessoas envolvidas pela explosão, o reverendo Kiyoshi Tanimoto:
“Então um imenso clarão cortou o céu. O reverendo se lembraria nitidamente de que o clarão partiu do leste em direção ao oeste da cidade em direção às montanhas. Parecia um naco de sol. Os dois amigos reagiram, apavorados – e tiveram tempo para reagir (pois mais de três quilômetros os separavam do centro da explosão). O sr. Matsuo subiu os degraus da frene, entrou na casa e praticamente se enterrou entre as trouxas de roupa. O sr. Tanimoto deu três ou quatro passos e se jogou entre duas grandes pedras do jardim, agarrando-se firmemente a uma delas. Com o rosto encostado na pedra, não viu o que aconteceu. Sentiu uma pressão repentina, e estilhaços de madeira e de telhas choveram sobre ele. Não ouviu barulho nenhum. (Praticamente ninguém em Hiroshima se lembra de ter escutado qualquer barulho produzido pela bomba. Entretanto, um pescador que estava em sua sampana no mar Interior, perto de Tsuzu – o homem com que a sogra e a cunhada do pastor moravam –, viu o clarão e ouviu uma tremenda explosão, ele se encontrava a quase 32 quilômetros de Hiroshima, porém o estrondo foi maior do que quando os B-29 bombardearam Iwakuni, a apenas oito quilômetros de distância). (páginas 11/12)
Não há como transcrever para esta resenha
todos os outros cinco depoimentos, caro leitor, sob pena de me tornar
extremamente longo e cansativo. Cada relato tem sua própria característica,
cada um a sua carga de sofrimento. Os dramas foram muitos, e não se
restringiram à explosão e destruição de uma boa parte da cidade; nem se atrelou
“apenas” ao sofrimento advindo da perda inapelável de pessoas amadas. Não.
Os efeitos da bomba, melhor
dizendo, da radiação liberada pela fissura dos átomos fez ainda inúmeras
vítimas tempo depois. Queimaduras profundas, ferimentos que não fechavam, dores
de cabeça, enjoos e vômitos, diarreias constantes, queda de cabelo, anemia e
redução de glóbulos brancos (e com ela, a anomalia do sistema imunização das
pessoas), fraqueza generalizada ... uma lista de horrores.
Os outros personagens foram a Srta.
Toshiko Sasaki, o Dr. Masakazu Fujii, a Sra. Hatsuyo Nakamura, o Padre Wilhelm
Kleinsorge, o Dr. Terufumi Sasaki. Eis como nos relata John Hersey o estado
destas pessoas, um ano depois da explosão de Hiroshima:
“Um ano depois da explosão a srta. Sasaki era uma aleijada; a sra. Nakamura viva na pobreza; o padre Keinsorge estava novamente hospitalizado; o dr. Sasaki não dava conta do trabalho como antes; o dr. Fujii perdera o hospital de trinta quartos que levara muitos anos para construir e não planejava reconstruí-lo; o sr. Tanimoto continuava com sua igreja em ruínas e já não tinha sua excepcional vitalidade. A vida dessas seis pessoas, que estavam entre as mais afortunadas de Hiroshima, nunca voltaria a ser a mesma. Suas opiniões sobre as próprias experiências e sobre o uso da bomba atômica evidentemente não eram unânimes.” (página 93)
Os sobreviventes – há pouco citei o
termo hibakusha; literalmente, “pessoas
afetadas pela explosão” – não tiveram vida fácil. O vocábulo japonês, uma
perífrase para evitar exatamente um termo, pois, como nos informa Hersey, “os
japoneses tendiam a evitar o termo sobreviventes,
cuja ênfase no fato de estar vivo podia sugerir algum desrespeito para com os
mortos sagrados”. Este é outro ponto importantíssimo no texto de John: ele fala
de dentro da cultura japonesa, evitando o olhar do estrangeiro.
Continuando, eis o quadro da
situação dos hibakusha, tempos
depois:
“Por mais de uma década os hibakushas viveram num limbo econômico, aparentemente porque o governo japonês se recusou a arcar com qualquer responsabilidade moral pelos atos hediondos dos americanos vitoriosos. Embora logo se evidenciasse que muitos hibakushas sofriam consequências de sua exposição às bombas bem diferentes em natureza e grau daqueles de sobreviventes dos horripilantes bombardeios incendiários de Tóquio e outros lugares, o governo não tomou nenhuma providência especial para socorrê-los – até que, ironicamente, uma onde de fúria varreu o Japão quando os 23 tripulantes e a carga de atum de um navio pesqueiro, o Dragão Afortunado nº 5, foram afetados pela radiação da bomba de hidrogênio que os americanos testaram no atol de Bikini, em 1954.” (página 99)
Eis aqui, amigo leitor, duas
evidências muito claras de que não se pode crer na possibilidade de um texto cem
por centro neutro: no trecho acima transcrito, o narrador objetivo de Hersey se
trai exatamente nos adjetivos, essa classe de palavras vinculada à transmissão
de afetividade e emoção: “hediondos” e “horripilantes”. Não é, neste caso, a
transcrição de depoimento, mas um comentário do narrador... não absolutamente
objetivo.
Como se não bastasse, os hibakushas sofreram preconceitos
sociais. Não conseguiam emprego, porque se divulgara que eles possuíam males
escondidos no corpo, que a qualquer momento lhes impediria de trabalhar. Eram francamente
segregados.
Uma das passagens que me
impressionaram muito, advindas da cultura japonesa, está na descrição abaixo,
sobre uma comunicação do fim da guerra, via rádio, do imperador (o Tenno):
“Havia um alto-falante nos destroços da estação. Muitos civis, todos com ataduras, alguns se apoiando no ombro das filhas, outros amparando-se com bengalas, escutaram a transmissão e, ao compreender que era o imperador que lhes falava, exclamaram, com os olhos cheios de lágrimas: ‘Que bênção maravilhosa o Tenno se dirigir a nós, em pessoa, e podermos ouvir sua voz! Estamos plenamente satisfeitos em meio a tamanho sacrifício.’ Quando souberam que a guerra terminara – quer dizer, que o Japão fora derrotado –, naturalmente ficaram decepcionados, mas, com o espírito tranquilo, obedeceram à ordem imperial de fazer um sacrifício sincero pela paz duradoura do mundo – e o Japão tomou seu novo caminho”. (página 71)
Estranha para nós, esta atitude é
plenamente explicável pela cultura japonesa, em que do imperador emanava um
poder absoluto sobre a vida e a morte de seus súditos. Então, temos a forte
hierarquia, o reconhecimento do poder imperial, a sagração dos antepassados
(culto aos mortos) e as diretrizes do budismo. Para o budista, pelo menos para
uma das vertentes, o sofrimento aqui e agora proporciona ao seguidor de Buda
uma reencarnação melhor, depurada. Este conjunto de crenças – não as estou
questionando, mas tentando explicar as reações daquelas pessoas, apoiado no que
me diz o livro – leva aquela gente a exercer o desapego, isto é, a se conformar
com os fatos acontecidos e suas consequências. Claro que muitos não tiveram
reações tão espiritualizadas, como vimos no contágio radioativo do pesqueiro Dragão Afortunado Nº 5. Mas, de resto,
compreendo melhor agora o que motivava os kamikazes, pilotos suicidas desta
segunda guerra, que pilotavam seus aviões diretamente sobre os navios inimigos,
em rota de colisão. Não se discutia ordens emanadas do imperador.
Podemos achar tanta coisa muito
estranha, deslocada assim do contexto cultural. Entretanto, no ocidente também temos
coisas como a infalibilidade papal, que vigorou para os católicos, pelo menos
até o Papa Francisco contestá-la. De novo, não estou fazendo juízo de valor,
apenas relacionando fatos e atitudes.
Temos estes casos de terroristas muçulmanos,
verdadeiros homens-bomba. Sabem que vão morrer e, ainda assim, morrem
satisfeitos por vislumbrarem algum tipo de recompensa num outro mundo.
Hiroshima
é, sem dúvida, um grande livro. John Hersey é, sem dúvida, um senhor jornalista.
Suas opções ao escrever esta que é considerada a melhor reportagem de todos os
tempos foram amplamente acertadas.
Não é que a leitura de Hiroshima dê prazer. Ao contrário, ela
incomoda. E incomoda porque, lá no fundinho de nossa alma, temos dois
sentimentos distintos, mas que correm para o mesmo estuário: primeiro,
pertencemos todos a uma humanidade (solidariedade básica), e embora possamos “amolecer”
nossa consciência, fatos de tais envergaduras não são possíveis de minorar (contundência);
segundo, sabemos que a maldade não está vencida totalmente por nós mesmos (quem
de nós não é capaz de alguma violência – às vezes, desarrazoada, vejam-se as
brigas de trânsito).
Não é, portanto, leitura que se
faça por prazer. É leitura que se faz pela importância do acontecido. Tais fatos
nunca mais devem ser perpetrados. Até porque, como diz a brilhante frase dita pelo
gênio Albert Einstein, “Não sei como será a terceira guerra mundial, mas sei
como será a quarta: com paus e pedras.” Evidentemente, uma frase de efeito, mas
verdadeira. Com a atual reserva atômica instalada para fins bélicos, se
acontecer uma terceira guerra mundial, não haverá vencedores. Seremos todos
perdedores, perderemos os avanços civilizatórios e retornaremos à era das cavernas.
Tal a importância de se ler Hiroshima, de John Hersey. Eu o
recomendo enfaticamente, caro leitor. Incomoda, dói, é amargo, mas é necessário.
Como alguns dos melhores remédios.
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