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terça-feira, 2 de outubro de 2018

Resenha nº 129 - Em Busca de Sentido, de Viktor E. Frankl


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Título original: Trotzdem Ja zum Leben sagen

Título em português: Em Busca de Sentido
Autor: Viktor E. Frankl
Editoras: Sinodal/Vozes
Tradutores: Walter O. Schlupp/Carlos C. Aveline
Edição: 43ª (revista)
Copyright: 1977 (parte 1); 1984 (partes 2 e 3)
ISBN: Sinodal 978-85-233-0886-5; Vozes 978-85-326-0626-6
Gênero: Ensaios
Páginas: 184
Bibliografia do autor (incompleta): Em Busca de Sentido, 1946; A Vontade de Sentido, 1969; A Presença Ignorada de Deus, 1943; Psycotherapy And Existentialism, 1967; Um Sentido Para A Vida, 1978; O Sofrimento de Uma Vida Sem Sentido, 1977; O Que Não Está Escrito Nos Meus Livros; O Homem Incondicionado, 1968.

Ao longo da leitura deste Em Busca de Sentido, fui passando por emoções insuspeitadas. Sim, porque, de propósito, evitei qualquer informação sobre o autor, sobre sua logoterapia, sua biografia. Parti, portanto, do solo mais ignorante possível. Das primeiras páginas, a impressão que me assaltou foi a de estar diante de um livro bem escrito, mas de autoajuda, gênero ao qual não me ajusto bem. Insisti. Foi a melhor atitude. Paulatinamente, a narrativa da primeira parte, Em Busca de Sentido, me fez inquieto e, em alguns momentos, triste. Ali, o doutor Frankl falava sobre sua experiência como prisioneiro de campo de concentração. Auschwitz sempre pesa sobre minha memória construída por alguns livros lidos como a sucursal do inferno. Não era, entretanto, um relato qualquer. Viktor Frankl era já um médico, especialista em neurologia e deste ponto de vista ele estabelecia suas observações. Passei da admiração àquele respeito silencioso, reverente – algo perigoso, eu sei, pois ele facilmente nos leva a estabelecer gurus – em relação ao autor. A profunda humanidade, a compreensão deste espírito livre sobre a realidade terrível, que nem os horrores de Auschwitz conseguiram domar, entretanto, fizeram desta leitura uma emocionada constatação de que este livro – Em Busca de Sentido – faz e fará todo o sentido para a minha vida. É daqueles livros-referência. Não me importo, se me criticarem por acharem a filosofia-psicoterapia do doutor Viktor Frankl autoajuda.

Viktor Emil Frankl nasceu em Viena, Áustria, a 26/03/1905 e faleceu em Viena, a 02/07/1997. Foi médico psiquiatra. Em sua juventude, manteve correspondência com o pai da psicanálise, Sigmund Freud. Já em 1921, Frankl deu sua primeira conferência sobre o tema A respeito do sentido da vida. Em 1925, já como estudante de medicina, encontrou-se com Freud e se aproximou de Alfred Adler. Um ano mais tarde, foi expulso da Association de Psycologie Individuelle, por discordâncias com Adler.
Em setembro de 1942, Viktor Frankl, sua esposa e família são presos, por serem judeus, e mandados para campos de concentração. Só foi libertado ao final da guerra e toma, então, conhecimento de que perdera sua família e sua esposa para o Holocausto nazista. Torna-se diretor da policlínica de neurologia de Viena. Em 1948 doutora-se em filosofia, defendendo a tese “O Deus Inconsciente”. Em 1955, torna-se professor de neurologia na Universidade de Viena. Elabora, em grande parte usando suas anotações e observações nos campos de concentração, a chamada logoterapia; em 1970, ele passa a lecionar numa universidade dos Estados Unidos e funda o primeiro Instituto de Logoterapia do mundo. Recebeu o título de doutor honoris causa de diversas universidades ao redor do globo, inclusive pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Como conferencista, deu palestras em vários lugares, tendo passado pelo Brasil em 1984 (Porto Alegre), 1986 (Rio de Janeiro) e 1987 (Brasília).
A logoterapia é frequentemente chamada de a terceira escola de terapia vienense. A primeira, a de Freud, centrada nos desejos reprimidos do inconsciente; a segunda, a de Alfred Adler, para quem as neuroses se originam das nossas ânsias pelo poder. A de Viktor parte de uma outra premissa, a da vontade de sentido. Explicando, se alguém não vê sentido em sua vida, isto lhe trará uma série de problemas, podendo levá-lo ao suicídio. Para Frankl, se não se vê sentido para a vida, não se verá, igualmente, um sentido para o sofrimento. Sob este ângulo, toda a terapia deste psiquiatra se orienta para levar o paciente a descobrir ou construir um sentido e sublimar o sofrimento. Esta explicação faz-se necessária para se entender o livro.
Em Busca de Sentido – Um psicólogo no campo de concentração nos relata os três sofridos anos passados pelo doutor Viktor, principalmente em Auschwitz:
“Este livro não trata de fatos e acontecimentos externos, mas de experiências pessoais que milhares de prisioneiros viveram de muitas formas. É a história de um campo de concentração visto de dentro, contada por um de seus sobreviventes. Não vamos descrever os grandes horrores (já bastante denunciados, embora nem sempre se acredite neles), mas sim as inúmeras pequenas torturas. Em outras palavras, tentarei responder à seguinte pergunta: “De que modo se refletia na mente do prisioneiro médio a vida cotidiana do campo de concentração?” (página 15)
Sempre deste ponto de vista, o autor vai pontuando a rotina horrorosa do campo. Desde o momento em que os prisioneiros chegam e são selecionados, uns para a direita, outros para a esquerda. Depois se sabe, aqueles que foram selecionados à direita são os que tiveram sorte (?), serão mantidos vivos, para trabalhos forçados. Os outros, muito doentes ou com deficiências graves, irão para a morte direta. Os que permanecem são despojados de suas roupas, seus pertences, sua identidade e são tatuados com um número. Daí para frente, nem a um nome terão direito; serão apenas um número.
“Os sapatos, com os quais em princípio podíamos ficar, foram um capítulo à parte. Calçados de relativa qualidade acabavam sendo tirados da gente, recebendo-se em troca um par que não servia. Deram-se mal aqueles que seguiram o conselho, aparentemente bem-intencionado, dos prisioneiros veteranos da guarda na antessala de cortar o cano alto de suas elegantes botas e disfarçar esse “ato de sabotagem” passando sabão no corte. A SS parecia estar esperando justamente por isso e mandou que todos se apresentassem para a vistoria dos sapatos. Quem entrasse em suspeita de ter cortado o cano de sua bota era obrigado a entrar num pequeno quarto contíguo. Pouco depois se ouviam os estalos do açoite e os berros dos torturados.” (página 30)
O sofrimento constante, as pequenas torturas de todos os dias, executadas pelos capos, os vigilantes diretos, acabam por levar uma boa parte dos prisioneiros a um estado de apatia. 
“Na maioria dos prisioneiros, a preponderância dos instintos primitivos e a peremptória necessidade de se concentrar sobre a pura e simples preservação da vida constantemente ameaçada suscitam uma depreciação radical de tudo aquilo que não serve a esse interesse exclusivo. Assim se explica a ausência absoluta de sentimentos por parte do prisioneiro quando avalia os acontecimentos.” (página 49)
Frankl anota que os impulsos sexuais exaltados, tão comuns em prisioneiros comuns, não se manifestam num campo de concentração. O doutor está entre aqueles que, de algum modo, têm uma esperança no futuro, construída dia a dia – encontram um sentido para suas miseráveis vidas. Sob o subtítulo Quando nada mais resta, ele nos relata:
“Enquanto avançamos aos tropeços, quilômetros a fio, vadeando pela neve ou resvalando no gelo, constantemente nos apoiamos um no outro, erguendo-nos e arrastando-nos mutuamente. Nenhum de nós pronuncia uma palavra mais, mas sabemos neste momento que cada um só pensa em sua mulher. Vez por outra olho para o céu onde vão empalidecendo as estrelas, ou para aquela região no horizonte em que assoma a alvorada por trás de um lúgubre grupo de nuvens. Mas agora meu espírito está tomado daquela figura à qual ele se agarra com uma fantasia incrivelmente viva, que eu jamais conhecera antes na vida normal. Converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a sorrindo, vejo seu olhar como que a exigir e animar ao mesmo tempo; e – tanto faz se é real ou não a sua presença – seu olhar agora brilha com mais intensidade que o sol que está nascendo.” (página 55)
E segue, na mesma página, um pouco abaixo:
“Compreendo agora o sentido das coisas últimas e extremas que podem ser expressas em pensamento, poesia – e em fé humana: a redenção pelo amor e no amor!”
Enfatizando sempre a vivência interior, única ênfase que pode manter a pessoa em relativo estado de sanidade neste parque de horrores, Frankl vai fazendo suas observações e construindo as premissas do que mais tarde, já fora do campo de concentração, se transformará num corpo teórico consistente e coeso, a logoterapia.
Em dado momento, ele cita Dostoiévski, o grande escritor russo (sempre ele!), depoimento, aliás, que está transcrito para a quarta capa do livro: “Temo somente uma coisa: não ser digno do meu tormento.” E Frankl conclui,
“A liberdade espiritual do ser humano, a qual não se lhe pode tirar, permite-lhe, até o último suspiro, configurar a sua vida de modo que tenha sentido. Pois não somente uma vida ativa tem sentido (...) Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá.”
Dois pequenos ensaios vão completar o volume Em Busca de Sentido. O primeiro deles, Conceitos Fundamentais de Logoterapia, como se depreende, vai nos explicar as bases de funcionamento desta terapia calcada na construção de sentido para a vida do paciente. Não cabe aqui resenhar este ensaio, mas apenas para o leitor ter uma ideia, o terapeuta fala, por exemplo, da vontade de sentido. Este conceito vai se contrapor, dentro da psicanálise freudiana, ao impulso da libido, do prazer; dentro da psicoterapia individual de Adler, à vontade de poder. Ou seja, nos limites da logoterapia, buscamos um sentido para nossa vida e este sentido é individual, mutável e intransferível. Ele se torna possível de alcançar quando temos uma vontade de sentido. E o sentido da vida pode ser amar alguém, manter-se no trabalho, realizar um trabalho intelectual (como aconteceu com Viktor, que escrevia suas observações em qualquer pedacinho de papel no campo de concentração).
O doutor Frankl aborda a frustração existencial. Discorda de Freud neste e em outros tantos pontos. Enquanto o pai da psicanálise afirma que, aquele que questiona a própria existência é um neurótico, o logoterapeuta diz que este questionamento é essencialmente humano, de alguém que busca para si um sentido para a vida. Frankl cunha o termo neuroses noogênicas – do termo grego noos, mente – para designar qualquer coisa pertinente à dimensão especificamente humana. É um pouco longo, mas acho que vale a pena transcrever o trecho inteiro da exemplificação de um caso tratado pelo doutor:
“Um diplomata americano de alto escalão dirigiu-se a meu consultório em Viena a fim de continuar o tratamento psicanalítico iniciado cinco anos antes com um analista em Nova Iorque. Logo de início, perguntei-lhe por que ele pensava que deveria ser analisado, por que, em si, começara com a análise. Revelou-se que o paciente estava descontente com sua carreira e tinha extrema dificuldade em concordar com a política exterior dos Estados Unidos. Seu analista, no entanto, lhe havia dito repetidamente que ele devia tentar reconciliar-se com seu pai, porque o governo dos Estados Unidos bem como seus superiores eram “nada mais” que imagens paternas, e, consequentemente, a insatisfação com seu emprego se devia ao ódio inconsciente contra o pai. Uma análise que já vinha durando cinco anos induzira o paciente a aceitar cada vez mais as interpretações de seu analista, até que, de tantas árvores de símbolos e imagens, ele não mais conseguiu ver a floresta da realidade. Após algumas poucas entrevistas, ficou claro que sua vontade de sentido estava sendo frustrada por sua profissão e que ele na realidade ansiava engajar-se em outra espécie de trabalho. Como não tinha motivo para ele não largar sua profissão e abraçar outra, assim o fez, com os mais gratificantes resultados.” (página 127)
A última divisão do livro é outro ensaio, desta vez sobre o que em logoterapia se entende por A Tese do Otimismo Trágico:
“Vamos começar perguntando-nos o que se deve entender por “otimismo trágico”. Em resumo, significa que a pessoa é e permanece otimista apesar da “tríade trágica”, como é chamada em logoterapia a tríade daqueles aspectos da existência humana que podem ser circunscritos por: 1) dor; 2) culpa; 3) morte.” (página 161)
No primeiro caso, o da dor, recomenda Viktor, temos de considerá-la (a dor, o sofrimento) como evitável e inevitável. Se for inevitável, há que se encontrar um sentido para ela; se for evitável, há que se removê-la.
O segundo caso, o da culpa. Vale a pena a transcrição das palavras do doutor Frankl a um conjunto de criminosos presos:
“Vocês são seres humanos como eu, e como tais tiveram a liberdade de cometer um crime, de tornar-se culpados. Agora, no entanto, vocês têm a responsabilidade de superar a culpa erguendo-se acima dela, crescendo para além de vocês mesmos e mudando pessoalmente para melhor.” (página 171)
O terceiro caso, a morte, o terapeuta nos diz que, se ele fala de morte, também fala de vida, pois nos instantes de que a vida é feita estamos morrendo, igualmente:
“Mas porventura não é essa transitoriedade algo que nos estimula e desafia a fazer o melhor uso possível de cada momento de nossas vidas? Certamente sim, e daí surge meu imperativo: Viva como se você estivesse vivendo pela segunda vez e como se tivesse agido tão erradamente na primeira vez como está por agir agora.” (página 172)
Para concluir, Viktor Frankl não aceita a culpa coletiva. Ele nos diz que as responsabilidades são individuais.
Em Busca de Sentido, um livro simplesmente maravilhoso. A logoterapia é contestada pelos freudianos, junguianos e adlerianos por muitas colocações de Frankl, entre as quais a valorização da dimensão espiritual do homem. Ele não condena a religião, nem combate a ideia de Deus.
Nada sei de psicologia, leitor, nem sou sequer um estudioso da matéria. Entretanto, este livro, em particular, lançou luzes sobre algumas decisões de minha vida e sou grato ao autor por isto. Adquiri um profundo respeito por este doutor Viktor Emil Frankl. Afinal, alguém que sofreu o que ele sofreu em um campo de concentração, por três anos sem trégua, tendo perdido toda sua família, esposa e mesmo assim, nunca ter-se posto como vítima da Maldade Humana (assim mesmo, com maiúsculas, como se fosse uma entidade supra-humana) dá autoridade e coerência ao seu método psicoterápico.
E, respondendo porque este livro, que vendeu milhões de exemplares no mundo todo, não figura sequer no segundo lugar entre as preferências dos sobreviventes do holocausto (o primeiro lugar é O Diário de Anne Frank), Frankl responde que pode ser porque em seu livro, nenhuma vez figura a palavra judeu. Em nenhum trecho ele vocifera contra os alemães. Ele compreende o humano, com suas oscilações entre o mal e o bem, entre o acerto e o erro.
Em Busca de Sentido é, por tudo o que se disse acima, uma destas obras preciosas. A leitura dela me fez sentir quase um privilegiado por ter investido tanto esforço, tanto tempo em me tornar um leitor razoavelmente maduro. E digo razoavelmente porque este é um processo sem fim. Enquanto eu ler, estarei em maturação. E isto está para mim, após a leitura deste volume, mais claro que antes.


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