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domingo, 9 de dezembro de 2018

Resenha nº 141 - A Festa e Outros Contos, de Katherine Mansfield


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Título Original: The Garden Party
Título em português: A Festa e Outros Contos
Autora: Katherine Mansfield
Tradutora: Juliana Cupertino
Editora: Revan
Edição: 3ª edição
Copyright: 1974
ISBN: 978-85-7106-049-5
Gênero Literário: Contos
Origem: Literatura Inglesa
Bibliografia da autora: In a german pension (Numa pensão alemã), 1911; The garden party and other stories (A festa e outros contos), 1922; The dove’s nest and other stories Ninho de pomba e outros contos), 1923; Bliss and other stories (Felicidade e outros contos), 1923; Poems, 1923; Something childish, 1924; The journal of Katherine Mansfield, 1927; The letters of Katherine Mansfield (dois volumes), 1928/1929; The Aloe, 1930; Novels and novelists, 1930; The short stories of Katherine Mansfield, 1937; The scrapbook of Katherine Mansfield, 1939; The collected stories of Katherine Mansfield, 1945; Letters to John Middleton Murry, 1913-1922; The urewera  notebook, 1978; The critical writings of Katherine Mansfield, 1987; The collected letters of Katherine Mansfield, (4 volumes), 1984-1996.
(foto: Estante Virtual)

Incrível. O que esta escritora consegue fazer dentro do gênero literário conto é incrível. Parece fácil, mas escrever contos é dificílimo: talvez o principal deste tipo de narrativa curta seja a concisão. Katherine domina a técnica como poucas escritoras. Aqui, no Brasil, como se sabe, ela tem pelo menos uma discípula autodeclarada: Clarice Lispector. Este A Festa e Outros Contos é o segundo livro dela que resenho aqui no blogue (o primeiro foi Je Ne Parle Pas Français), e já deu para enxergar melhor sua escrita. A Festa, por exemplo é um conto com um fiapo de enredo. Sou já um entusiasta desta autora, tenho todos os outros livros dela já publicados em português e pretendo resenhá-los aqui, um a um. Fico imaginando o quanto de esforço, de tempo empenhado, de leitura de contos deve ter forjado esta contista. É mesmo um projeto de vida, com o qual me identifico. Também eu gostaria de escrever contos assim perfeitos. Madame Virginia Woolf tinha razão, ao sentir inveja da escrita dela: o excelente romance Mrs. Dalloway parece ter recebido influência direta do conto A Festa.

Katherine Mansfield nasceu Kathleen Mansfield Beauchamp, em 14/10/1888, em Wellington, Nova Zelândia Britânica – hoje Nova Zelândia. Nascida em família colonial, era filha de um banqueiro e prima da autora Condessa Elizabeth von Armim. Em criança teve uma infância solitária e alienada. Seus primeiros escritos apareceram no High School Journal e na revista do Colégio para Garotas de Wellington, em 1898 e 1899. No ano de 1902, Katherine mudou-se para Londres, frequentando o Queen’s College. O curioso é que ela não mostrava interesse, inicialmente, pela literatura; era violoncelista de talento. Somente a partir de sua volta para a Nova Zelândia, em 1906, que se interessou pela arte de escrever contos. Enfastiada pela vida naquele lugar, Mansfield retorna a Londres em 1908. Aí participa do famoso Grupo de Bloomsbury – um grupo formado por vários artistas com uma proposta nitidamente antivitoriana, conhecida por ter valores sociais muito rígidos e formais. Entrega-se, como era muito usual ao grupo contestatório, a relações bissexuais e à vida boêmia.

Em um período de apenas três semanas, conheceu seu primeiro marido, George Bowden, casou-se e separou-se dele. A escritora ficou grávida de uma relação com o violonista profissional e seu amigo, Garnet Trowell. Katherine perde o bebê em 1909. Ao retornar à Inglaterra, publica seu primeiro trabalho, In a german pension (Numa pensão alemã), sob o nome modificado de Katherine Mansfield. Neste período, ela acaba por contrair gonorreia, o que a faz sofrer de uma artrite pelo resto de sua curta vida, além de ela passar a se considerar “uma mulher suja”. Katherine Mansfield morre a 09/01/1923, aos 34 anos de idade (com provavelmente tuberculose).

Seis trabalhos compõem este volume da editora Revan: A Festa, Uma Xícara de Chá, O Desconhecido, A Vida de Mãe Parker, Srta. Brill e Prelúdio. Este último é uma novela; os outros cinco são contos.

É possível que Prelúdio, junto a outro trabalho, Na Praia (At the bay), fizessem ambos parte de um projeto maior, de um romance.

Para a resenha, vou adotar uma estratégia já usada, com sucesso: um pequeno resumo de enredo de cada um dos contos, com comentários gerais e, desta vez, com transcrição de alguns trechos, que degustei mais. Vamos lá, então.

A Festa
Este trabalho inicial tem, como já disse acima, um fiapo de enredo: é um dia de preparação de uma festa nos jardins de uma casa de burgueses. De perto dali vem uma notícia triste, um homem pobre, chefe de família, morreu. Era um carroceiro, o cavalo se assustara com um automóvel, desembestara e ele fora projetado ao chão, batendo com a cabeça. Laura é a única que apresenta sensibilidade para com a família enlutada.

Um pequeno trecho:
“Já os homens carregavam nos ombros as estacas e se dirigiam para o local. Apenas o compridão ficara para trás. Ele se curvou, apanhou um broto de lavanda que, seguro entre o polegar e o indicador, levou ao nariz, para aspirar-lhe o perfume. Quando Laura viu o gesto dele, esqueceu-se totalmente das karakas, tão maravilhada ficou de vê-lo interessar-se por uma coisa como aquela – interessar-se pelo perfume da lavanda! Quantos homens que ela conhecia teriam tido aquele gesto? Ah, que gente extraordinária, simpática, são os operários, pensou ela. Por que ela não poderia ter amigos operários, em vez dos bobalhões com quem dançava e que vinham jantar aos domingos? Ela se daria muito melhor com homens como aqueles.” (página 14)
Uma xícara de chá
Rosemary Fell é uma mulher rica, acostumada a fazer comprinhas em Paris quando assim o desejar. Certa vez, ela viu numa loja algo que desejava muito. Não tinha dinheiro para pagá-lo e consegue, com o vendedor, que ele o reserve para ela. À saída, dá de cara com uma pedinte. Compadecida dela, leva-a para sua casa e a alimenta.

Passagem selecionada:
“Aliás”, Philip falou devagar, cortando a ponta de um charuto, “ela é de uma beleza surpreendente. É linda!”
“Linda?” Rosemary ficou tão surpresa que se ruborizou. “Você acha? Eu... Eu não tinha pensado nisso.”
“Santo Deus!” Philip riscou um fósforo. “Ela é absolutamente encantadora. Olhe outra vez, minha querida. Levei um choque, quando entrei no seu quarto, um erro terrível. Desculpe , querida, se estou sendo rude, e tudo o mais. De qualquer forma, me avise se a senhorita Smith for jantar conosco, para que eu tenha tempo de ler a Milliner’s Gazette.” (página 42)
O Desconhecido
O Sr. Hammond aguarda no cais o navio que vai atracar. Dentro dele, sua esposa, Janey chega de uma viagem à Europa. Ele fora visitar uma filha mais velha do casal. Um incidente, porém, faz com o processo de atracagem demore: um passageiro desconhecido morrera a bordo e quem teve de fazer o primeiro atendimento fora exatamente Janey.

Cena escolhida:
“Mas no momento mesmo em que Hammond a abraçou, ele sentiu que ela estava longe e que ele jamais, jamais mesmo, iria sabe se ela estava tão contente quanto ele. Como poderia saber? Iria ele sentir sempre aquela vontade, aquela aflição, aquela fome lancinante de tornar Janey de tal modo uma parte dele que nada, nada dela lhe escapasse? Tinha vontade de riscar tudo, todo mundo, do mapa! Nesse momento, agora, ele gostaria de apagar a luz, o que poderia trazê-la para mais perto dele. E ainda por cima aquelas cartas das crianças farfalhando dentro da blusa dela. Ele poderia tê-las atirado ao fogo.” (página 58)
A Vida de Mãe Parker
A Sra. Parker era uma viúva que tivera 13 filhos. Destes, sete morreram e sobraram-lhe seis. Tinha que trabalhar duro, vida de mulher pobre, na casa de um homem de letras. A irmã do marido veio para ajudá-la com as crianças, mas sofrera um acidente doméstico. Quebrara a coluna e a Sra. Parker ganhou mais uma pessoa para cuidar.

Parte extraída:
“Mas a ideia de chorar era como se o pequeno Lennie saltasse de novo nos braços de sua avó. É isso mesmo o que ela está querendo, meu pombinho. A vovó está com vontade de chorar. Se ela ao menos pudesse chorar agora, chorar muito tempo, por tudo, desde o começo: seu primeiro emprego, com a cozinheira ruim, a casa do médico, depois os sete anjinhos, a morte do marido, a debandada dos filhos, e todos os anos de miséria até Lennie. Mas chorar por todas essas coisas levaria muito tempo. Contudo, tinha chegado a hora; precisava fazê-lo. Não podia adiar mais. Não podia esperar mais... onde iria?...” (página 71)
Srta. Brill
A Srta. Brill é uma professora de inglês, mulher muito solitária. Quando há exibições da banda na praça do local onde mora, aos domingos, ela comparece. Sua principal atividade é observar as pessoas ao redor. Sua companhia mais constante é uma estola de pele de raposa, objeto que prezava muito.

Excerto:
“Mas, só quando um cachorrinho marrom passou trotando com solenidade, e caminhou de volta, como um pequeno cachorro “teatral”, como um cachorrinho que tivesse sido dopado, foi que a Srta. Brill se deu conta do que é que tornava tudo aquilo tão interessante. Estavam todos num palco. Não eram apenas a plateia, que só assistia, estavam todos representando. Ela própria desempenhava um papel, e vinha ali todos os domingos.” (página 77)
Prelúdio
Prelúdio acompanha um dia na vida das crianças da família Brunell. As crianças interagem com os diversos membros da família, propiciando à autora um estudo psicológico dos personagens, fechadas em seu mundinho burguês.

Trecho:

“Observem!” – disse Pat, alto. Pôs o pato no chão e o corpo começou a andar – apenas com um longo coágulo de sangue onde estiver a cabeça. Começou a vaguear, sem um único som, na direção da rampa que levava ao riacho. Era o coroamento maravilhoso daquela aventura.
“Está vendo? Está vendo?” – gritou Pip. Ele corria entre as menininhas, puxando os aventais delas.
“Parece uma maquininha. É como uma locomotivazinha engraçada” – gritou Isabel” (página 125)
Katherine Mansfield compõe todos os seus contos desta forma. Como diz Flávio Moreira da Costa, no Prelúdio a Katherine Mansfield, que acompanha o livro, os contos de Mansfield tratam de “gente sem história”. Personagens miúdos, do dia a dia, sem qualquer grandeza. E nada de muito importante acontece em suas vidas; não há emocionantes turning points (viradas de enredo).

Homens cansativos e sem imaginação, mulheres burguesas sustentadas por seus maridos, perdidas num mundo no qual não há nada para se fazer, crianças inquietas, sem terem muito como canalizarem suas energias vão compor a galeria da autora. Não há glamour. É bem o retrato de uma sociedade burguesa que vive quase que exclusivamente por viver, obedecendo regras e etiquetas sociais, como fica, de certo modo, claro no trecho pinçado do conto Srta. Brill, quando a protagonista chega à conclusão de que “não era só a plateia que estava assistindo, estavam todos representando”.

Katherine não diz, em uma única linha, que tal ou qual personagem sua é burguês ou burguesa; mas a descrição e a interação entre estas figuras sem alma as caracterizam como burgueses. Os dois mundos quase não se tocam: a burguesia e o proletariado são separados por uma espécie de fosso, como aqueles ao redor das muralhas dos castelos antigos. Tal condição fica implícita na fala de Laura, do conto A Festa, em que ela pontua a sensibilidade do operário e lamenta não ter como amigos homens com tal sensibilidade. Esta técnica de mostrar e não dizer é poderosa no conto, pela tensão criada. O leitor terá de fazer inferências para perceber as nuances. Além do mais, isto confere à narradora certo distanciamento do objeto descrito ou comentado.

É impressionante a superficialidade e a insensibilidade de Rosemary, no conto Uma xícara de chá, ao relacionar-se com a Srta. Smith, a pedinte que a aborda na rua. Rosemary não a leva para casa por compaixão verdadeira; todo o ato se configura como algo que estava na moda, aconselhado pelas revistas e jornais. E ela simplesmente não consegue entender a situação da pobre, sem acesso a seus acepipes deliciosos. A escolha do objeto ao redor do qual se move todo o conto – uma xícara de chá – algo tão caro à burguesia inglesa, já nos dá a dimensão da falta de importância dos sentimentos da Sra. Rosemary e da formalidade com que ela trata a convidada. Ela realmente não se importa!

A Festa e Outros Contos, um excelente livro de crítica social. Encheu-me os olhos. E o cérebro. Definitivamente, Katherine Mansfield é um monstro – no bom sentido – pois que há também monstros bons. O filme Monstros & Cia., da Disney, que o mostre (sorriso sarcástico).

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