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quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Resenha nº 140 - Rua do Odéon, de Adrienne Monnier


Rua do Odéon por [Monnier, Adrienne]Título original: Rue de l’Odéon
Título em português: Rua do Odéon
Autora: Adrienne Monnier
Tradutor: Júlio Castañon Guimarães
Editora: Autêntica
Copyright: 2017
ISBN: 978-85-8217-613-9
Gênero literário: Biografia
240 páginas
Bibliografia da autora: La Figure, 1923; Les Vertus, 1926; Fableaux, 1932; Souvenirs de Londres, 1957; Les Gazettes, 1960; Rue de l’Odéon, 1960.
(foto Amazon Books)

A leitura deste Rua do Odéon, que nos fala a respeito de La Maison des Amis des Livres – A Casa dos Amigos dos Livros – livraria localizada na famosa Rua do Odéon, me trouxe lembranças recentes de Paris. Estive na Cidade-luz em 2017. Não conheci a rua onde se situava a livraria de Adrienne Monnier, nem tinha qualquer referência desta mulher. Mais uma prova de que, de qualquer jeito, sempre somos ignorantes de alguma coisa, mesmo se da nossa área de interesse. E é por isso que o mundo dos livros me é absolutamente fascinante. Por que, então eu disse aí acima “famosa Rua do Odéon”? Nesta mesma via pública localizava-se outra livraria, não menos icônica na história literária de Paris: do outro lado da rua, ficava a Shakespeare & Cia, da americana Sylvia Beach. Adrienne e Sylvia eram amigas, Adrienne ajudou-a a abrir a livraria dela, especializada em literatura inglesa. Por aquelas duas livrarias passaram figuras importantes da literatura, tais como James Joyce, André Gide, Ernest Hemingway, Paul Verlaine, Valéry, Ezra Pound... Sylvia foi responsável pela primeira edição de Ulisses, de Joyce; Adrienne bancou a versão para o francês do trabalho do irlandês. Não conheci a rua do Odéon, é bem verdade; não passei em frente à Maison des Amis des Livres, admito-o. Entretanto, visitei, no endereço atual à Rue de la Bûcherie, pertinho da Cathédral de Notre Dame. O proprietário não é mais Sylvia Beach, já  falecida. Mas, num ato de tietagem explícita, adquiri ali um exemplar de The Great Gatsby, naturalmente em inglês, em cuja folha de rosto está, orgulhosamente aposto, o carimbo da casa: Shakespeare & Cia. – Kilometer Zero – Paris.

Adrienne Monnier nasceu em 26/04/1982 em Paris, França e faleceu em 19/06/1955, na mesma cidade. Era filha de Clovis Monnier, um carteiro, e sua mãe, Philiberte era dona de casa, mas considerada de “mente aberta”, com enorme interesse em literatura e artes. Foi sob influência da mãe que Adrienne e Marie – sua irmã mais nova – se iniciaram no gosto pela leitura. Adrienne se destacou no cenário da moderna literatura francesa, e mais especificamente, parisiense, exercendo as atividades de livreira, ensaísta e editora. Em 1909, com a idade de 17 anos, Monnier graduou-se como professora e trabalhou também como secretária literária. Resolveu, então, abrir uma livraria para compartilhar com o público seu amor pelos livros. Como não possuía bom capital para o empreendimento, teve de se restringir a trabalhar com livros de literatura moderna e num tempo de pós-guerra em que os antigos livreiros estavam fechando suas livrarias. La Maison des Amis des Livres foi aberta em 1915, em regime de sociedade com uma amiga, Suzanne Bonnierre.

Naqueles tempos difíceis, não era comum que uma mulher abrisse qualquer empresa; era comum que viúvas herdassem os negócios dos maridos mortos na primeira guerra. As especificidades da livraria de Monnier foram alavancas para o sucesso do empreendimento. Logo, ela criou uma espécie de clube de leitura, emprestando livros e incentivando as pessoas. Programava palestras, sessões de autógrafos, tornando-se figura importante no meio cultural modernista.

Segundo uma descrição de Sylvia Beach, Adrienne Monnier era
“uma escandinava, com seus cabelos lisos e penteados para trás. O mais impressionante eram os olhos dela. Eles eram cinza-azulados e ligeiramente abaulados, e me lembravam os de William Blake.”
Monnier lançou uma revista em língua francesa, Le Navire d’Argent, em 1925. Continha obras de escritores franceses frequentadores de sua livraria; nesta revista, foi publicada uma tradução de The Love Song of J. Alfred Prufrock, de T. S. Eliot, feita pela própria Adrienne e Sylvia.

Enquanto Sylvia Beach foi forçada a fechar sua livraria, pela ocupação alemã de Paris, por trabalhar com livros ingleses e americanos, Adrienne pôde continuar com seu trabalho na Maison des Amis des Livres. Entretanto, ela sofria de problemas auditivos e tinha alucinações. Em 1955, ela saiu da cena cultural parisiense, cometendo um ato extremo: suicidou-se, tomando uma overdose de pílulas para dormir.

A Primeira Guerra Mundial acabou em 1918. O saldo, na França, foi muitas viúvas de combatentes contra os alemães, a queda do positivismo do século XIX, a chegada de uma nova geração desejosa de aproveitar tudo o que a vida poderia lhes dar, na superação dos horrores traumáticos do conflito recente. Uma efervescência cultural se instaurou, então, principalmente em Paris. A capital francesa vivia dias de glória, de arte, de liberdade sexual e novos costumes. Este período é chamado de “Anos Loucos” e atraiu artistas de toda parte. Relativamente à literatura, viveram aí escritores como Ernest Hemingway, James Joyce, F. Scott Fitzgerald, Ezra Pound. O tom do modernismo francês é dado por André Gide e Marcel Proust. Correntes artísticas e literárias se construíram, como o Dadaísmo, com Tristan Tzara, o surrealismo, com André Breton, nitidamente renegando valores anteriormente preestabelecidos.

Inaugura-se a época esfuziante dos cabarés parisienses, influências norte-americanas, ritmos como o jazz, o shimmy. Montam-se espetáculos como a Revue Nègre, tendo como protagonista Josephine Baker proclamada como musa. Tudo o que é americano é bem-vindo. A cultura de massa toma conta da cidade, talvez numa forçada alegria de viver. Ao redor da escritora Gertrud Stein se organizam saraus, festas literárias; um pouco disto se pode ver na comédia romântica de Woody Allen, Meia-noite em Paris, de 2011.

É a própria Adrienne que se apresenta e nos diz algo de sua época:
“Meu pai era funcionário do correio; seu serviço o obrigava a ficar fora de Paris dois dias a cada quatro; quando estava fora, minha mãe ia todas as noites ao teatro, levando suas duas filhas pequenas, desde que haviam completado sete e oito anos. Admirávamos sobretudo De Max e Sarah Bernhardt. Assisti, com onze anos, à representação de Pelléas et Mélisande; Debussy e Maeterlinck tornaram-se meus deuses.” (página 7)
Adrienne tinha realmente uma visão romântica das atividades desenvolvidas em seu estabelecimento. O livro, para ela, não era meramente um objeto a se vender; era um bem precioso e os escritores franceses seus entes queridos, como se vê nesta passagem:
“Não é útil defender o que se defende muito bem sozinho, ajudar o que é muito mais forte do você. Lembro-me de um caso. Um dia, há bem doze anos, um jovem romancista, já bastante conhecido nessa época, dizia a olhar minha vitrine: “você faria melhor pondo meu livro que se vende como pão em lugar das poesias de Mallarmé de que ninguém compreende nada”. Eu lhe respondi naturalmente que, se seu livro se vendia como pão, ele não precisava de mim e que podia muito bem  deixar para Mallarmé o modesto benefício de minha modesta livraria.” (página 26)
Era de se prever, as inevitáveis rusgas entre autores, artistas, crises de ciúmes também se manifestavam naquela Paris sedenta por novidades e propensa a incensar autores e artistas, principalmente nos anos vinte. Isso fica bastante claro na transcrição abaixo:
“Fiquei ainda mais surpresa, mas desta vez desagradavelmente, ao ler pouco depois, na nota sobre Paul Valéry (de que eu não tinha dúvida que era ele o autor), as linhas reservadas a minha livraria. Eu, no entanto, deveria ter ficado satisfeita. Ali ele falava que tudo aquilo de que Paul Valéry tinha se beneficiado: celebridade, edições muito caras, Academia, etc., que tudo então partira dessa “simples e encantadora livraria: Aux Amis des Livres”. Sim, concluía ele, “ele deve tudo a uma livraria”.” (página 143)
E conclui, logo a seguir, “evidentemente era dito menos para me lisonjear do que para irritar Valéry”.

No livro, Monnier emite suas opiniões sobre os escritores da época. Sob o título “Passagem de Rilke”, ela faz suas reflexões:
“Há duas espécies de poetas. Há os que são eleitos por outrem; são chamados de “homens representativos”; são levados ao gênio por um conjunto de circunstâncias quase estranhas ao seu eu. São com frequência os maiores, mas nunca os mais puros ou mais sensíveis. Os outros são poetas por eles mesmos. Vivem antes de tudo. Cantam como as pedras preciosas escondidas no seio da terra. É preciso procurar para descobri-los. Sua obra tem uma espécie de auréola. Nunca se entrega por inteiro, de modo a poder dar-se inesgotavelmente.
Rainer Maria Rilke era um desses.” (página 147)
Adrienne exercia também a atividade de ensaísta; várias vezes, demonstrava seu domínio teórico das correntes ou escolas artístico-literárias:
“De resto, o surrealismo, em muitos aspectos, é um pré-rafaelismo dinamitado (sim, um pré-rafaelismo mais do que um simbolismo); o maravilhoso está no ponto de partida, e é sempre ao maravilhoso que ele retorna quando quer descansar dos seus feitos fora da literatura; está bem claro no Arcane 17, de André Breton; está aparente nos poemas alegóricos e ornamentados de René Char; está muito visível nas mulheres – de temperamento menos dinamitador do que os homens – como Valentine Hugo e Leonor Fini.” (página 189)
Rua do Odéon nos oferece, por meio da biografia muito mais de uma época e de uma cidade do que da própria Adrienne Monnier, um retrato bastante significativo do que era a Paris daqueles anos. Do livro transborda a vontade de viver novidades daqueles jovens do pós-guerra, após a ocupação alemã. Aos olhos de hoje, que localizam o período como de “entre guerras”, toda aquela atividade ensandecida, aquela procura desenfreada de sorver a cultura, o prazer, a vida enfim, soa mais como um soluço entre crises do que como o atingimento de algum nirvana estético ou existencial.

Mal sabiam os franceses, como de resto o mundo todo, o que estaria para vir – uma segunda apresentação dos mesmos horrores, muito mais aprofundados. Adrienne Monnier viveu até os anos cinquenta; sobreviveu, portanto, à Segunda Guerra Mundial.

Para quem gosta de literatura e é um leitor mais maduro, este livro deve interessar. Ele ajuda, sem dúvida, na compreensão dos chamados “Anos Loucos”, a Belle Époque francesa.    

Antes de terminar, cabe uma recomendação de leitura sobre tais escolas literárias para quem se interesse pelo assunto. Há, aqui mesmo no Brasil, um ótimo livro que historia bem as chamadas vanguardas: Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro, de Gilberto Mendonça Teles, editora Vozes.

Um comentário:

Evelize Volpi disse...

Que maravilha de livro, já quero.
Juntamente com Shakespeare and company uma livraria na Paris da entreguerras, serão presentes que me darei de aniversário. Essa resenha foi um achado esse livro, não sabia da existência.