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quinta-feira, 17 de abril de 2014

Resenha nº 38 - Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex

Daniela Arbex é uma jornalista premiada, repórter especial do jornal Tribuna de Minas há dezoito anos. Em seu currículo, conta com mais de vinte prêmios nacionais e internacionais; dentre esses, três prêmios Esso, o mais recente em 2012, com a série Holocausto Brasileiro, outros dois Vladimir Herzog (Mensão Honrosa) e o Knight International Journalism Award, entregue nos Estados Unidos (2010).

Holocausto Brasileiro é um livro-reportagem de leitura profundamente incômoda. Estarrecedora, porém, obrigatória para quem queira formar consciência social. Famosos pelos horrores contra os internos, os hospitais psiquiátricos são de triste memória, como o Galba Veloso, o Raul Soares. Entretanto, o Hospital Colônia, de Barbacena, conhecido pelo apelido dado pela equipe de reportagem da extinta revista O Cruzeiro, “sucursal do inferno” é o ícone maior dessa torrente de desmandos, de arbitrariedades desumanas.

Para o Colônia não eram mandados apenas os loucos, mas quaisquer pessoas que caíssem em desgraça de gente poderosa, como prostitutas, mulheres estupradas, mães solteiras indesejáveis, mendigos de rua, homossexuais, epilépticos, alcoólatras, esposas confinadas para que seus maridos pudessem morar com suas amantes, homens que ousavam se insurgir contra o poder militar dos Anos de Chumbo. Não havia necessidade de diagnóstico; impunha-se-lhes a mordaça do silêncio e os enviavam para Barbacena, no trem que originou a expressão “trem de doido”, criada pelo escritor João Guimarães Rosa.

Um campo de concentração, nos moldes daqueles, nazistas. Mais de 60 mil pessoas morreram naquela instituição maldita. Cerca de 70% nunca tiveram qualquer diagnóstico. Do total de internados, aproximadamente 33 eram crianças.

Os pacientes do Colônia dormiam em colchões recheados de feno, comiam uma comida de porcos, fedorenta e que provocava subnutrição, bebiam da única fonte de água: o esgoto a céu aberto. Pacientes nus, desvestidos de sua mínima dignidade, eram tratados como animais. Os mortos – e havia excesso deles – tinham seus corpos vendidos para as faculdades de medicina de várias partes do país, sem qualquer indagação ou apuração. Frequentemente, aqueles pacientes sãos tornavam-se completamente loucos pelos maus tratos a que eram submetidos. Praticava-se o choque elétrico para “acalmar” os mais agitados, ou então, a lobotomia, cirurgia nos lobos cerebrais para deixarem alguns internados completamente apáticos.

Tocantes casos de amor ao próximo também fazem parte desse relato corajoso:

“Mesmo desospitalizado, Adelino manteve o compromisso com a paciente, indo visitá-la todos os fins de semana que se seguiram. Levava roupas, guloseimas. Em troca, ganhava a atenção que precisava para se sentir seguro. Mas a liberdade sem Nilta não tinha o sabor que ele imaginava. Ela fazia falta em sua vida, e isso ele começou a perceber nos primeiros dias longe do Colônia. Assim, arquitetou um plano maluco: casar-se com ela. Seu desejo era arranjar um lugar onde os dois pudessem morar. Empolgou-se com a ideia, mas a responsabilidade de manter um lar era desafio que Adelino nunca havia enfrentado. Teria que usar o benefício que recebia do governo, um salário mínimo, para pagar aluguel, contas, despesas com alimentação. Mas como números eram seu forte, Adelino descobriu que somando o seu dinheiro com o dela, tudo ficaria mais fácil.(…) O casório foi marcado para o dia 2 de dezembro de 2005. Havia muito a ser preparado. Com o apoio da equipe técnica, eles viveram esse momento especial como qualquer casal, com direito a chá de panela, enxoval e até curso de noivos, exigência da Igreja Católica.” (páginas 138/139)

Não faltam depoimentos que nos enchem os olhos de lágrimas. O livro é apoiado por uma extensa pesquisa, com fotos obtidas de várias fontes, como a do fotógrafo de O Cruzeiro, Luiz Alfredo (trezentas fotos, cedidas ao Museu da Loucura).

Parte das dependências do Colônia foi erigida sobre terreno doado a Joaquim Silvério dos Reis. Sim, o nome está correto, é aquele mesmo Joaquim Silvério dos Reis, delator do movimento da Inconfidência Mineira e que ganhou as terras como recompensa pela delação.

A situação de completa desumanização dos internos do Colônia só começou a mudar a partir de 1980. Restam hoje menos de 200 sobreviventes desta verdadeira tragédia, em que mulheres grávidas tinham de untar o ventre crescido com seus próprios excrementos para salvarem o filho do aborto.

Daniela Arbex põe o dedo na ferida, na página 255:

“O fato é que a história do Colônia é nossa história. Ela representa a vergonha da omissão coletiva que faz mais e mais vítimas no Brasil. Os campos de concentração vão além de Barbacena. Estão de volta nos hospitais públicos lotados que continuam a funcionar precariamente em muitas outras cidades brasileiras. Multiplicam-se nas prisões, nos centros de socioeducação para adolescentes em conflito com a lei, nas comunidades à mercê do tráfico. O descaso diante da realidade nos transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos tornamos cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos. Enquanto o silêncio acobertar a indiferença, a sociedade continuará avançando em direção ao passado de barbárie. É tempo de escrever uma nova história e de mudar o final”.

O cineasta mineiro, Helvécio Ratton, filmou um documentário no qual denuncia as condições infernais da instituição de Barbacena: Em nome da razão. Ratton ligava sua câmara alugada logo no início da manhã e só a desligava quando as condições de luz não permitiam mais a filmagem. O curta acabou se convertendo no tiro de misericórdia no modelo de psiquiatria praticado até então, tendo sido exibido nos cinemas brasileiros e nos do exterior. Foi premiado em vários festivais.

Existe também um filme americano de 1975, dirigido por Milos Forman e com Jack Nicholson (Randle Patrick McMurphy) no papel principal, que recebeu o nome de Um estranho no ninho aqui no Brasil. Randle é um homem inteligente, que, internado num hospício, tenta instaurar uma revolta contra os desmandos da enfermeira-chefe Ratched.

Outro filme importante, mostrando a terrível realidade intramuros desses manicômios é a produção nacional Bicho de Sete Cabeças, com Rodrigo Santoro no papel de Neto. Direção de Laís Bodanzky e roteiro de Luiz Bolognesi. Neto é internado pelo pai porque ele descobre que o filho fuma um cigarro de maconha. A película foi premiada e ajudou a repensar a questão dos hospícios no Brasil.

Condição, aliás, criticada por Machado de Assis em seu excelente conto O Alienista, embora o foco dessa obra não tenha sido sobre o inferno dos internos, mas questionou a tirania da ciência do século XIX. Simão Bacamarte, o alienista da história, funda um hospício, a Casa Verde, interna cobaias humanas para suas experiências e termina sendo uma delas.

Há livros que se impõem pela trama magistral, a criação impressionante dos personagens, pelo suspense bem arquitetado, por todo um mundo ficcional criado. Há livros que, como esse, se impõem pelos horrores constatados, lembrados muito de perto por certas narrativas sobre os campos de concentração, Auschwvitz, por exemplo, ou o Recordações da Casa dos Mortos, no qual o escritor russo Fiódor Dostoiévski relata seu sofrimento durante sua prisão, na Sibéria . Têm de ser lidos, para que de uma vez por todas, nunca mais deixemos que tais coisas sejam perpetradas.

ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. Geração Editorial Geração. São Paulo, SP: 2013

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