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domingo, 30 de janeiro de 2022

Resenha Nº 182 - Viagem ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre

 



 

Título original: Voyage autour de ma chambre

Autor: Xavier de Maistre

Tradutora: Veresa Moraes

Prefácio: Enrique Vila-Matas

Editora: 34

Copyright: 2020

ISBN: 978-65-5525-029-9

Origem: Ficção francesa

  

 

Xavier de Maistre nasceu em 08/11/1763, em Chambéry (antigo Reino da Sardenha[1]) e faleceu na cidade russa de São Petersburgo, em 12/06/1852. Era membro de uma família da nobreza da Saboia, tendo o pai como presidente do senado local. Joseph, seu irmão mais velho, tornou-se um nome importante no movimento de reação à Revolução Francesa. Ingressou na carreira militar, mas, de início, não obteve significativa ascenção de patente, pois sua área de interesse era literatura, pintura paisagista, balonismo e ciência.

O autor escreveu um relato breve, O leproso da cidade de Aosta, vindo à lume em 1811. Em 1794, Xavier envolveu-se num duelo e, por esta causa, ficou 42 dias recluso em seu quarto, na cidade de Turim, na Itália. Desta experiência nasceu este Viagem ao redor do meu quarto. O escritor desligou-se do serviço militar, viveu um tempo na Itália e, ainda, na Rússia. Escreveu, também, A jovem siberiana e Os prisioneiros do Cáucaso.

A “culpa” por eu chegar a este pequeno volume, um clássico, é inteiramente de um senhor chamado Brás Cubas. Ninguém mais, ninguém menos,  um personagem do nosso querido escritor brasileiro, Machado de Assis.

Com efeito, num famoso “aviso ao leitor”, nosso Machado escreveu:

“Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio.” (grifos meus)

O Sterne, a que Machado se refere, é Laurence Sterne, autor de outro clássico incontornável, A vida e opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. O próprio Sterne influenciou Xavier de Maistre – aliás, influenciou outros grandes escritores.

Mas, eu dizia que a “culpa” é do Machado. Sim, pois quando eu li Memórias póstumas de Brás Cubas, fiquei muito curioso para entender quais influências eram aquelas, aludidas de própria pena, pelo escritor brasileiro. Some-se a isto a republicação de Viagem ao redor do meu quarto, em 2020, numa jogada de marketing livreiro, pois o livro fala exatamente das reações de um personagem vivendo uma quarentena em seu quarto, em Turim.

A edição da editora 34 está muito boa; a diagramação é interessante, sem parágrafos justificados, com notas ao texto colocadas no espaço à direita ou esquerda das margens recuadas.

É um livro cujo gênero literário não se deixa enquadrar; ao longo de suas 71 páginas, a narrativa corre com um fiapo de enredo. Não há ações, no plano físico, que impulsionem a leitura. Trata-se de um personagem preso em um quarto, por 42 dias, que usa sua imaginação para vencer o tédio. Entretanto, se fosse só isso, não seria, provavelmente, um clássico. Eis como se inicia:

“Como é glorioso inaugurar uma nova carreira e surgir de repente no mundo letrado, um livro de descobertas à mão, como um cometa inesperado que reluz no espaço!

Não, não guardarei mais meu livro in petto; ei-lo, senhores, leiam-no. Empreendi e levei a cabo uma viagem de quarenta e dois dias ao redor do meu quarto. As observações interessantes que fiz e o prazer contínuo que senti ao longo do caminho me inspiraram o desejo de trazê-lo a público; a certeza de sua utilidade facilitou a decisão. Meu coração saboreia uma satisfação inexprimível quando penso no número infinito de infelizes aos quais ofereço um recurso garantido contra o tédio e um alívio das dores que padecem. O prazer que há em viajar dentro do próprio quarto está a salvo do ciúme inquieto dos homens; ele tampouco está ao sabor da fortuna.” (página 9)

Lá no capítulo 6 o narrador culto deste livro nos dá a conhecer sua teoria de duplicidade constitutiva do ser humano:

“Seria impossível explicar como e por que vim a queimar meus dedos logo aos primeiros passos que dei, quando começava minha viagem, se não explicar antes ao leitor, nos mínimos detalhes, meu sistema da alma e do animal. – Aliás, essa descoberta metafísica tem tanta influência sobre minhas ideias e ações, que seria muito difícil compreender este livro caso eu não oferecesse essa chave já de saída.” (página 15)

E passa a explicar: o ser humano é dividido, composto de uma alma e um animal, completamente distintos um do outro. Justificando-se com Platão, nos diz que

“Aprendi com um antigo professor que Platão (se a memória não me engana) chamava a matéria de o outro. Está bem, mas eu preferiria dar esse nome de preferência ao animal conjugado à nossa alma. Essa substância, sim, é o verdadeiro outro que nos atormenta de maneira tão estranha. Sabe-se, em linhas gerais, que o homem é duplo, uma vez que é composto, segundo dizem, de uma alma e de um corpo, e acusam esse corpo de sabe-se lá quantas coisas; com o que cometem grande erro, pois o corpo é tão incapaz de sentir como de pensar. É contra o animal que devíamos nos voltar, contra esse ser sensível, perfeitamente distinto da alma, verdadeiro indivíduo que tem existência à parte, tem gostos, inclinações, vontade, e que só está acima dos outros animais porque foi mais bem adestrado e provido de órgãos mais perfeitos.” (página 15)

Dentro do que se propõe o narrador instituído por Xavier, o entendimento disto é, de fato, fundamental para se entender como se pode viajar dentro do próprio quarto. Enquanto o corpo fica confinado, a alma lança-se a voos nos campos da memória, do filosofar. O corpo se mexe, ora coleando-se à parede, ora dela se afastando e tocando móveis, explorando recantos.

Talvez não explicitado desta forma, mas este tema já nos deu outras obras literárias, como O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson. O homem duplo faz conviver, como seres completamente distintos, o médico e o monstro. Outro exemplo famoso é O duplo, de Dostoiévski, com seu personagem Golyádkin. As histórias de super-heróis usam e abusam desta mesma duplicidade, apresentando sempre, como seres independentes, o super-herói com seus poderes e seus alter egos, seres comuns, inexpressivos (vejam-se, por exemplo, Super-homem e Clark Kent, Homem-Aranha e Peter Parker).

Do ponto de vista estrutural, a obra possui 42 capítulos, todos bem curtos – um capítulo para cada dia de reclusão. Há também mini capítulos, como o 33, composto de apenas 4 frases; há o capítulo composto por pontos e apenas a expressão “a colina”, deixando espaço para que o leitor, a seu bel-prazer, o complete. Muito parecido fez Machado de Assis, na antes referida obra.  

O narrador culto de Xavier de Maistre pontua o texto com algumas referências do mundo grego:

“Eu me encaminhava insensivelmente para uma dissertação sobre a medicina e seus progressos desde Hipócrates. — perguntava-me se os personagens famosos da Antiguidade que faleceram em seus leitos, como Péricles, Platão, a célebre Aspásia e o próprio Hipócrates, morreram como pessoas comuns, de uma febre pútrida, inflamatória ou verminosa, ou foram sangrados e cevados de remédios.” (página 66)

Para este curioso livro, não há problemas de spoiler. Desde o início, já é dito que tal viagem duraria os exatos 42 dias da detenção. E o excelente final pode ser publicado aqui:

“Entretanto, jamais me dei conta com tanta clareza que sou duplo. — Por mais que lamente meus deleites imaginários, sinto-me forçosamente consolado: uma força secreta me arrasta; ela me diz que preciso do ar e do céu, e que a solidão mais se parece à morte. — Eis-me vestido; – minha porta se abre: — deambulo sob as espaçosas arcadas da via Po — mil fantasmas agradáveis revoluteiam diante dos meus olhos; — Sim, eis aqui esta mansão — esta porta, — esta escada; — estremeço de antemão!

É assim que experimentamos um antegosto ácido, quando cortamos um limão para comer.

Ah, meu animal, meu pobre animal, toma cuidado!” (página 71)

Por este final, o leitor atento verificará mais uma característica deste De Maistre: a forma muito, muito particular como ele usa os travessões – sinais tradicionalmente empregados para a inserção de falas de personagens.

 O autor trafega com facilidade da ironia ao deboche, construindo uma obra que, não é demais dizer, é transgressora. Imaginem um militar, preso em seu quarto por determinação superior. Ele se vinga, como se dissesse: “ok, vocês cercearam a minha liberdade, me atirando a este cômodo; eu reencontro minha liberdade pela minha imaginação!”

A leitura deste opúsculo durou uma sentada, menos que um dia. Diverti-me e, ao mesmo tempo, lamentei por não tê-lo lido durante a pior fase da pandemia. Teria me valido dos caminhos propostos por ele.

Para terminar, penso ser útil transcrever aqui a apreciação do mestre Antônio Cândido:

“Parece claro, portanto, que houve impregnações de Xavier de Maistre na virada narrativa de Machado de Assis, como este sugere na citada nota ao leitor. Talento de envergadura infinitamente superior, ele percebeu que na modesta e encantadora Viagem a teoria do “outro” era um recurso ameno para ilustrar sem pedantismo a complexidade e as contradições do comportamento e da mente. Na sua obra, o automatismo, aqui e noutros lugares, se engrena com um tratamento muito mais rico e expressivo das divisões do ser, mas nem por isso é menor a dívida em relação ao oficial escritor que hoje poucos consideram e alguns chegam a desprezar, como André Gide em certo trecho do Diário, [Diário de um escritor] onde (como se estivesse pensando com acrimónia em Machado de Assis) escreve que nada o irritava mais do que certo espírito convencional “gênero Sterne e Xavier de Maistre”.

Já se disse, parte da explicação do frescor de Viagem ao redor do meu quarto vem de seu autor não desejar mais que se divertir, vencer o tédio. Não sei, opinião é apenas isto: uma opinião. Não temos como invocar a alma de Xavier de Maistre, numa sessão de mesa girante, e exigir-lhe explicações dos seus feitos de escrevente...



[1] Reino da Sardenha: era um estado nacional, na Europa, existente entre 1297 e 1861. Foi legalmente substituído pelo Reino da Itália.

 

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