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quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Resenha Nº 180 - Anos de Chumbo e Outros Contos, de Chico Buarque de Hollanda

 

Titulo: Anos de Chumbo

Autor: Chico Buarque

Editora: Companhia das Letras

Copyright: 2021

ISBN: 978-65-5921-307-8

Gênero literário: Contos

Origem: literatura brasileira



 

Francisco Buarque de Hollanda nasceu em 19/07/1944, na então capital do Brasil, Rio de Janeiro. Compositor, cantor e escritor, é irmão das também cantoras Miúcha, Ana de Hollanda e Cristina. Chico – apelido pelo qual é conhecido – é um artista multifacetado. Sua discografia conta com mais de oitenta músicas e ele venceu o antigo Festival de Música Popular Brasileira, com a icônica A Banda.

Como escritor, Chico é autor de Estorvo (Prêmio Jabuti, 1992), Benjamim, Budapeste (Prêmio Jabuti, 2004), Leite Derramado (Prêmio Jabuti, 2010), O Irmão Alemão, Essa Gente. Pelo conjunto da obra, o autor levou o Prêmio Camões, em 2019. Seu livro mais recente é um livro de contos, Anos de Chumbo.

Anos de Chumbo e outros contos é a obra resenhada aqui. Tem oito textos: Meu Tio, O passaporte, Os Primos de Campos, Cida, Copacabana, Para Clarice Lispector com Candura, O Sítio e Anos de Chumbo. Nesta obra – como nas outras – está estampada a visão engajada com que este autor compõe suas histórias.

Em Meu Tio prevalece a crítica à hipócrita família brasileira, que acoberta um caso de abuso sexual da menor, protagonista do conto, por seu tio. Tudo acontece com o conhecimento e aquiescência da mãe e do pai:

“Meu tio veio me buscar em casa com seu carro novo. Ele não costumava subir, mas dessa vez trazia uma encomenda para a minha mãe. Como sempre acontece nessas situações, papai fingiu que estava dormindo no quarto. Mamãe recebeu meu tio com dois beijinhos, ofereceu café, água, pão de queijo, mas lá em casa ele ficava irrequieto, não se instalava. Os beijinhos da chegada já valeram como despedida, e mal tive tempo de catar a bolsa. Meu tio parecia menor sem os óculos escuros, que só tirou para descer os dois lances de escada de lâmpadas quebradas. Reclamou do elevador que vive enguiçado, mas até o fim do ano pretendia nos mudar para um apartamento melhor.” (páginas 11/12)

O Passaporte aborda um grande artista que chega ao Aeroporto Tom Jobim e esquece seu documento sobre a pia do banheiro. Volta ao mictório para reavê-lo; numa passagem-síntese, o artista é mostrado como alguém em decadência:

“O passaporte não estava no cubículo, e sem saber o que fazer, o grande artista se olhou no espelho bem no momento em que estava envelhecendo. Pensou na humilhação de depender de um acompanhante nas próximas viagens, por incapaz de cuidar de seus papéis e se arranjar sozinho. Pensou nos filhos, que mesmo com pena dele, tinham seus próprios filhos e a vida para levar. Pensou nas mulheres que o amaram num passado próximo e que hoje talvez preferissem não ser vistas em sua companhia. Mas ao sair para o saguão atrás do funcionário com o cadeirante, se convenceu de ser um homem de sorte. Deu de barato que alguma boa alma, porventura um passageiro do seu voo que encontrasse o passaporte, o confiaria a um comissário da companhia aérea no portão de embarque.” (Página 30)

Os primos de campos nos coloca no centro do preconceito racial, num país em que, com poucas exceções, temos o sangue africano circulando nas nossas veias:

“Nunca mais me ocupei disso até ver a foto do caçula no colo da mãe, seus traços tão sedentários do meu irmão, para quem os primos são afrodescendentes, segundo minha namorada, que já publicou no jornal do grêmio estudantil um artigo sobre a negritude. Confesso a mim mesmo que por um instante vacilei, mas agora posso lhe jurar que ter primos-irmãos afrodescendente é motivo de orgulho para mim. Ela acha graça e diz que não poderia ser de outra maneira, pois em boa medida afrodescendente eu também sou. Não sei, as pessoas costumam dizer que sou a cara do meu irmão, que por sua vez é igual à minha mãe, com seus cabelos lisos e alourados.” (página 63/64)

Em Cida, a personagem central é uma mulher em situação de rua – como se atenua hoje – completamente sem noção. Mistura fatos, tem uma visão bastante peculiar das pessoas que a cercam:

“Por um bom tempo a Cida encasquetou que eu era um agente secreto. Ao me ver chegando ela fugia com a caixa de sapatos debaixo do braço para se esconder atrás dos carros estacionados na praça. Depois passou a me ignorar, período em que deu para se pintar; usava batom, blush, esmalte de unhas, bobes de cabelo, e descobriu um balde para escovar os dentes com água do canal. Ao mesmo tempo foi corrigindo a postura acorcundada, a cabeça baixa, o modo de olhar sem ver, e um dia me parou para dizer que, apesar de ser político, eu tinha jeito de bom pai. Eu tinha cara de quem amaria o seu futuro filho, o levaria para morar num apartamento alto e lhe ensinaria bons modos. Expliquei que eu era casado, não podia fazer filho nela, mas não era isso que ela queria. Ela queria que eu criasse o filho que ela trazia na barriga, e bem que eu já a tinha achado meio pançuda.” (páginas 77/78)

Copacabana é o conto mais curto do livro. Nele, o tom é o do non sense; um narrador nos conta fantasias que só se passam em sua cabeça. Envolve, no mesmo texto, Walt Disney com Pablo Neruda, passando, de quebra, por Jorge Luís Borges:

“Relembrar a juventude é como olhar dentro de um poço, e da última vez em que estive numa avenida Atlântica cheia de gente esquisita, minha cabeça rodou e vi tudo preto. Busquei abrigo no Copacabana Palace, onde Pablo Neruda me contou que Romy Schneider também tinha síndrome do pânico. Tudo começou quando ela descobriu que o tio Adolfo, que a sentava no colo e beijava suas bochechas de criança, outro não era senão Adolf Hitler, íntimo de sua mãe. Daí compreendi o ar angustiado com que ela me pediu um cigarro na piscina do hotel.” (páginas 95/96)

Num vídeo do YouTube, numa entrevista, Chico Buarque nos fala de uma conversa que ele teve com a escritora Clarice Lispector. Ele declara, a certa altura, que não entendia aquela mulher.

Em Para Clarice Lispector com candura, ele presta uma homenagem à escritora. O narrador nos conta sobre um escritor incipiente que envia seus originais para Clarice, que deverá fazer uma apreciação do trabalho. A homenagem procede, pois, neste ato; o autor iniciante, um poeta, a tem como referência:

“Numa folha à parte, encaminhou um poema de recente feitura, acreditando que Clarice Lispector, se escrevesse em versos, o assinaria com gosto. Na falta de resposta, dias mais tarde telefonou para ela, que após nove toques atendeu pedindo perdão mas não podia interromper sua tarefa. Seus erres franceses soaram mais ríspidos que o habitual, mas nem por isso ele se acabrunhou: nutria o sonho de um dia ser ele a publicar um livro e imaginava o estado de nervos de que se confronta com um reles revisor para impor sua sintaxe, sua pontuação peculiar, seu direito de escrever errado.” (páginas 113/114)

O Sítio é o penúltimo trabalho que compõe o livro. Nele, um casal classe média se isola do mundo – vai passar algum tempo num sítio. Apesar da paisagem bonita, com cachoeira, logo a incompatibilidade entre os dois se torna visível.

O caseiro é um personagem quase fantasmagórico, ou, pelo menos, alguém parece que saído de um filme de terror: não tem um braço (a manga direita pende, vazia), e “fartas marcas de varíola lhe davam um rosto sem contornos” (página 129). Vive sozinho.

O sinal do celular ali não chega bem. É preciso subir ao telhado para conseguir uma ligação:

“Logo o vulto segue sua escalada de galho em galho, e quando ela desfalece a meu lado, vou lá fora ter com o caseiro. Ele está falando sozinho, sentado no topo do telhado, e ao me ver desce pelo outro flamboyant nos fundos da casa. Traz um celular no bolso da jaqueta e parece nervoso quando o interpelo, pois desata a falar comendo as palavras, explicando que somente no telhado tem sinal de telefone para se comunicar com o primo.” (página135)

Em Anos de Chumbo, há um menino com paralisia infantil. Tendo a mobilidade prejudicada, e sofrendo bullying, ele prefere ficar em casa, brincando com soldadinhos de chumbo que ganhara de presente. Luís Haroldo é seu amigo e os pais dele visitam sua família, sendo as figuras paternas, ambas, militares.

 

“É possível que tais maledicências tenham chegado aos ouvidos do major. Sem explicações ele deixou de vir tomar seu uísque com meu pai, o que não o impedia de ver minha mãe toda semana. O Luiz Haroldo deve ter precavido o pai contra a comida da casa, pois nessas visitas ele mandava vir jantares e vinhos de bons restaurantes. Eu também me servia dessas iguarias, com exceção do vinho e dos queijos mofados, e ficava por ali até minha mãe me mandar para a cama.” (Página 161)

O projeto gráfico do livro lembra bem aquelas edições antigas, com lombada confeccionada em pano, complementada por capa dura e cinza. Anos de Chumbo não é uma obra para se ler apenas na superfície; o tom dos textos é de quem apenas relata o que vê. Isto, e mais a estrutura do gênero conto – textos curtos, com camadas mais internas de significado – pode representar alguma dificuldade.

Trata-se de uma sociedade disfuncional. A conivência da família quanto ao abuso da menor, em Meu Tio, o delírio de quem se vacina contra a dura realidade, em Copacabana e Cida, ou de quem sabe que seu sonho não sairá do papel, em Para Clarice Lispector com Candura, o preconceito de cor, o distrato de uma classe social mais baixa, em Os Primos de Campos, a perda da identidade em O Passaporte, a ameaça de um mundo externo (pandemia) em O Sítio e, sobretudo, em Anos de Chumbo tornam a obra bastante contemporânea. Os implícitos do último conto não podem ser inteiramente compreendidos pelo menino semiparalítico, que no seu discurso ingênuo, os revela aos leitores. Tais implícitos não serão, óbvio, circunscritos à ditadura militar. Eles encharcam o mundo atual

Anos de Chumbo foram aqueles, do golpe militar, mas são também estes tempos, em que vivemos. Afinal, a sociedade não mudou tanto que não possa abrigar as mesmas disfuncionalidades.

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