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sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Resenha nº 100 - Limonov, de Emmanuel Carrère

Resultado de imagem para livro LimonovTítulo Original: Limonov
Autor: Emmanuel Carrère
Tradutor: André Telles
Editora: Alfaguara
Edição: 1ª edição, especial para a TAG Livros
ISBN: 978-85-5652-040-1
Copyright: 2011
Bibliografia do autor: L’Amie du Jaguar, 1983; Bravoure, 1984; A Moustache, 1986; Hors d’Atteinte, 1988; A Classe de Neige, 1995; O Adversário (L’Adversaire), 1999; Un Romance Russe, 2007; D’Autres Vies que La Mienne, 2009; Limonov, 2011; O Reino, 2015; Eu Estou Vivo E Vocês Estão Mortos, 2016.
Em português, estão em catálogo os seguintes trabalhos de Emmanuel Carrère: O Bigode/A Colônia de Férias (Alfaguara); Um Romance Russo (Alfaguara); Outras Vidas Que Não A Minha (Alfaguara); Limonov (Alfaguara); Eu Estou Vivo E Vocês Estão Mortos (Aleph); O Reino (Alfaguara).

Emmanuel Carrère é um escritor francês nascido em Paris, em 09/12/1957. É formado pelo Institut d’Études Politiques e atua como escritor, roteirista e diretor. A novela O Bigode foi adaptada para o cinema pelo próprio autor. A Colônia de Férias conquistou o prêmio Femina de 1995.
Segundo um ótimo artigo publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, autoria de Antônio Gonçalves Filho, publicado em 21/05/2016,
 “Entre 1990 e 1993, Carrère passou por uma grave crise de depressão. Não acreditava mais em seu talento como escritor, tentou a psicanálise e acabou optando por ir à missa todos os dias. Seu casamento seguiu os ritos da Igreja Católica, mas ele, pouco a pouco, foi se afastando dela, dedicando-se em tempo integral a uma biografia do escritor de ficção científica norte-americano Philip K. Dick (1928-1982), famoso por seu livro Androides sonham com Ovelhas Elétricas?, adaptado para o cinema como Blade Runner. O americano, no fim da vida, teve visões místicas descritas em Exegesis, livro no qual ele define essas experiências de natureza religiosa (Dick sonhava em grego, segundo Carrère).”
Emmanuel desenvolve, desta forma, uma predileção pelo anti-herói como o Limonov do livro que me proponho resenhar hoje e Jean-Claude Romand, do seu livro O Adversário. Nosso autor se notabiliza exatamente por construir suas narrativas sobre fatos acontecidos e pessoas reais. Este gênero literário é costumeiramente batizado de “romance de não ficção”, tendência esta inaugurada na Literatura pelo argentino Rodolpho Walsh, em seu Operação Massacre (1957) e, quase dez anos mais tarde, o americano Truman Capote publica, na mesma linha narrativa, o famoso A Sangue Frio (1966).
Limonov não é uma leitura fácil, posto que gastei com ele mais tempo do que gastaria com livros de mesmas 371 páginas. E a dificuldade não foi por texto difícil, hermético, ou por defeitos na condução da história. Muito pelo contrário, não há dificuldades com o texto a ponto de afastar um leitor mediano e – é preciso deixar claro – Emmanuel Carrère é um senhor escritor. A dificuldade com Limonov é exatamente com o personagem central, que dá nome ao livro. Um anti-herói absolutamente incoerente, portador de atitudes asquerosas e sublimações incompreensíveis em sua personalidade estranha.
Limonov é uma espécie de apelido, nome de guerra, como o queiram, do russo Eduard Savenko. O vocábulo Limon significa limão, acidez; limonka é uma espécie de granada de mão, no idioma russo. Bissexual, amante da guerra, inquieto, inteligência brilhante, vejamos como Emmanuel descreve o seu biografado:
“”Esbarrava-se com ele no Palace, envergando um dólmã de oficial do Exército Vermelho. Escrevia no L’Idiot International, jornal de Jean-Édern Hallier, o qual, embora ideologicamente não ingênuo, congregava espíritos anticonformistas e brilhantes. Gostava de uma boa briga, fazia um sucesso terrível com as mulheres. Sua desinibição e seu passado de aventuras impunham respeito aos jovens burgueses que éramos. Limonov era nosso bárbaro, nosso maldito; nós o adorávamos.” (página 16)
A ambientação do livro é o esfacelamento da URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – e o caos do leste europeu logo após. Como Limonov é um híbrido entre biografia e ficção, entramos em contato com personagens como o físico, dissidente político e prêmio Nobel Andrei Sakharov; o enxadrista campeão mundial Garry Kasparov; o poeta odiado por Limonov, Joseph Brodsky; o romancista exilado por um tempo nos EUA, Alexander Soljenitsyn (autor de Arquipélago Gulag). Desfilam igualmente os personagens políticos de alta importância como Leonid Brejnev, Bóris Iéltsin, Joseph Stálin, Mikhail Gorbachev e o atual presidente da Rússia, Vladimir Pútin. Referências são feitas a Françoise Mitterand, Jean-Marie Le Pen, Liev Tróstski, o genial cineasta Andrei Tarkovski (diretor do primeiro filme Solaris) e a jornalista russa, possivelmente assassinada pelo regime russo, Anna Politkovskaia. Este é o campo em que Carrère trabalha magnificamente, o político:
“Foi a libertação da história que levou à derrocada dos regimes comunistas do Leste Europeu. Desde o dia em que se admitiu a existência de um protocolo secreto Ribbentrop-Molotov, mediante o qual, em 1939, a Alemanha nazista cedeu à URSS, meio que por baixo da mesa, os estados bálticos, esses estados dispunham  de um argumento irrefutável para reivindicar sua independência. Bastava dizer: “A ocupação soviética era ilegal em 1939, continua como tal cinquenta anos depois, fora daqui”. A esse tipo de argumento, a URSS teria anteriormente respondido enviando tanques, mas esse tempo passou, e o resultado é que 1989 foi o ano milagroso da Europa. O que o Solidariedade, na Polônia, levara dez anos para obter os húngaros alcançaram em dez meses, os alemães orientais, em dez semanas e os tchecos, em dez dias. À exceção da Romênia, não houve violência: revoluções de veludo que, na efusão geral, levavam ao poder heróis da inteligência como Václav Harvel. As pessoas beijavam-se nas ruas. Os editorialistas discutiam sem gracejos a tese de um professor universitário americano proclamando “o fim da história”. Todos os pequeno-burgueses da Europa Ocidental, eu entre eles, foram passar o ano-novo em Praga ou Berlim.” (página 187)
Eduard Limonov, como foi dito, é também um escritor e, ao que parece, pelas críticas à sua obra, um bom escritor. Alguns dos seus livros: Diário de um perdedor, Poeta russo prefere os negros, Livro das águas, etc. Emmanuel Carrère se baseia nestes livros do autor russo, seu biografado, para elaborar um Limonov rico, contrastante, conflituoso – como nós o somos. Carrère está ciente de que seu trabalho biográfico não é preciso, apesar da pesquisa objetiva; é que os buracos na construção de Limonov têm de ser preenchidos com imaginação. Por exemplo, nos vários trechos nos quais nos conta os pensamentos do dissidente russo, o narrador não tem acesso real ao que se passava na cabeça do homem Limonov; entretanto, pelo material em mãos, pode, clara e coerentemente, “pressentir” as elucubrações mentais dele.
Em livros assim – com personagens tão discutíveis, mas no caso deste Limonov absolutamente reais – o leitor tem, muitas vezes, de impor uma “distância histórica relativa”, para que o anti-herói não o faça desistir de ler a obra. Com este termo entre aspas, e à falta de ocorrência de uma expressão melhor, quero dizer do não envolvimento com o protagonista (ou seria antiprotagonista?); se o leitor cair na armadilha de não tolerar o personagem, achá-lo repugnante e por sua repugnância se afastar do livro, perderá a experiência de uma boa leitura. Aliás, este afastamento, não o executo pela primeira vez: ao ler, há muitos anos, o visceral Crime e Castigo, de Dostoiévski, tive de exercer tal “distanciamento histórico relativo”: Ródion Românovitch Raskólnikov é absolutamente amoral.
O que teria levado Emmanuel Carrère a escrever um livro sobre tão controverso homem, revelando um personagem que nos fascina e ao mesmo tempo, nos repulsa? Deixemos que ele mesmo o diga:
“Pronto, a ordem do dia se esgotou. São quatro horas, anoiteceu, ouvimos a geladeira zumbir. Ele mira seus anéis, cofia seu cavanhaque de mosqueteiro: não é mais Vinte anos depois, é O visconde de Bragelonne. Cheguei ao fim de minhas perguntas e não lhe passa pela cabeça fazer-me uma. Sei lá: sobre mim. Quem sou, como vivo, serei casado, tenho filhos? Prefiro os países quentes ou os frios? Stendhal ou Flaubert? Iogurte natural ou de frutas? Que tipo de livros escrevo, por que sou escritor? Segundo ele, o interesse pelo outro faz parte de seu programa de vida e sem dúvida teria se interessado por mim se houvesse me conhecido na prisão, culpado de um belo crime bem sangrento, mas não é a situação tal como se apresenta. A situação é que sou biógrafo: faço-lhe perguntas, ele responde, quando terminou de responder, cala-se, admirando seus anéis, e espera pela pergunta seguinte. Rumino estar fora de questão aguentar horas de entrevista desse tipo, posso me virar perfeitamente com o que tenho. Levanto-me, agradecendo-lhe pelo café e pelo tempo que me dispensou, e é na soleira da porta que, finalmente, ele me dirige uma pergunta:
            — De toda forma, não deixa de ser bizarro. Por que deseja escrever um livro sobre mim?
            Pego de calças curtas, respondo, sinceramente: porque ele tem — ou porque teve, não me lembro o tempo que empreguei — uma vida apaixonante. Uma vida romanesca, perigosa, uma vida que assumiu o risco de misturar-se à história.
            E então ele me diz uma coisa que me deixa estupefato. Com sua risadinha seca, sem me fitar:
            — Uma vida de merda, isso sim.” (página 368)

Este trecho último serve para eu fazer uma observação: é impressionante como há uma superposição de sentidos entre a vida de um Limonov contestador e um Emmanuel Carrère em crise religiosa e existencial. E isto fica muito mais contundente, na medida em que o autor francês estampa na abertura do seu livro uma tradução das palavras de Vladimir Pútin:
“Quem pretende restaurar o comunismo não tem cabeça. Quem não sente saudades dele não tem coração.”
Leit-motif do livro Limonov, esta ambiguidade de sentimentos – condenação e nostalgia – perpassa todo o trabalho e une os dois, biógrafo e biografado. Um livro cheio de incertezas, mas com esperanças; um personagem repulsivo, mas que pode jogar luz no mais recôndito de nossos seres imperfeitos. Talvez o melhor seja mesmo o que Carrère nos aconselha, sobre Limonov:
“Ele mesmo se vê como herói, podemos considerá-lo como um tratante: suspendo neste ponto o meu julgamento.”

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