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terça-feira, 26 de março de 2024

Resenha nº 218 - Casas Vazias, de Brenda Navarro




Título original: Casas Vacias

Autora: Brenda Navarro

Tradutora: Livia Deorsola

Editora: TAG/Dublinense

Edição: s/n

Copyright: 2018

ISBN: 978-65-5553-060-5

Origem: México

Gênero Literário: Romance

 

Brenda Navarro nasceu no México, no ano de 1982. Vive em Madri, Espanha. Formou-se em Sociologia e estudou Economia Feminista no México. Tem mestrado em Estudos de Gênero em Barcelona.

Além do engajamento em órgãos que lutem pelos chamados direitos humanos, Brenda é conhecida por seu envolvimento em projetos que buscam promover a escrita de mulheres; o Enjambre Literario foi fundado por ela. Tem como objetivo divulgar autoras na América Latina, publicando suas obras.

Brenda é autora de contos e poemas, tendo ganhado o prêmio Tigre Juan exatamente por este Casa Vazias – seu romance de estreia. Recentemente, publicou seu segundo romance, Cinzas na Boca.

Adianto, caro leitor, esta obra de Brenda Navarro me impressionou bastante. É uma obra bem escrita, com personagens interessantes – foco nas personagens femininas, como não podia deixar de ser. Casas Vazias é forte candidato a figurar entre os melhores romances lidos por mim, neste ano de 2024.

Estruturalmente, a obra se assenta em dois arcos narrativos: Fran, Nagore, Daniel e uma narradora, mãe de Daniel; no segundo arco, estão Rafael, Leonel e outra narradora, mãe de Leonel. Capítulo a capítulo, as duas narradoras se alternam, numa trama bastante eficiente.

Para completar, no primeiro arco, Nagore é filha de Amara e Xavi, mas que vive com a família da narradora. É informado que Xavi, numa crise conjugal, matou sua esposa Amara. Nagore é criada por Fran – irmão de Amara – e a narradora.

Os capítulos não obedecem a uma linha temporal, o que sempre exige uma atenção a mais do leitor, pois será seu o trabalho de “organizar” os fatos para a sequência da história.

O enredo não é difícil. Certo dia, a narradora – mãe de Daniel – está com o menino em um parque. Ela se distrai um breve momento, ao despedir-se do seu amante Vladimir. Daniel, que estava brincando, desaparece. A mãe o procura pelos quatro cantos do parque, mas nada. A partir daí, ela tem de lidar com o pouco interesse dos policiais em descobrir o paradeiro do menino. E tem um agravante: Daniel é autista.

“Preguei alguns cartazes perto de casa e do parque onde Daniel desapareceu. Não faltavam curiosos que irrompiam em meio à dor com que eu me desprendia da imagem do meu filho. Olhavam, mas não olhavam, nunca olham e, quando o fazem, é para reafirmar a eles mesmo que estão bem. A desgraça do outro é a obliquidade do nosso próprio eixo. Uma vez escutei que uma mulher enfatizava a condição autista de Daniel. Coitadinho, tomara que esteja morto, disse. E eu apertei os lábios e as mãos, porque suas palavras eram o eco de algo que eu não podia dizer.” (página 131)

O casal não tem boa condição financeira. A narradora não manifesta profundo desejo de ser mãe. Mesmo a sua relação com Nagore não é boa; passa por um casamento tumultuado com Fran.

“Tinha pena de mim mesma, me jogava no travesseiro resmungando contra a minha sorte em casa sem janelas por causa de vá saber que ideia arquitetônica. O calor e a umidade me asfixiavam e, quando ninguém estava me vendo, eu dava tapinhas em Daniel, que, do lado de dentro, toda hora me chutava. Era uma batalha campal da qual eu sempre saía perdendo. Nagore fazia barulho perto da única janela daquele edifício escuro no qual passamos o verão antes de voltarmos ao México; várias vezes eu a escutei falando em catalão com seu boneco, quando achava que ninguém estava escutando. Enquanto isso, Fran saía para enfrentar a burocracia como alguém que fareja, sussurra, examina um mundo que lhe é proibido habitar. Tínhamos problemas tão supérfluos que éramos imperceptíveis, até mesmo uns em relação aos outros. Já nesse momento tínhamos que ter concluído que nos regozijar em nossa miséria podia ter como consequência nos tornar miseráveis diante do mundo, porque por dentro já éramos.” (página 86)

O outro arco vai focar a outra narradora, seu filho Leonel e o marido, Rafael. Aqui, teremos outra realidade diferente: o casal tem ótima condição financeira, habita uma boa casa com piscina. Igualmente, o casal não vive um casamento harmonioso. A narradora tem verdadeira fascinação por ser mãe. E ficamos sabendo que esta mãe que não consegue engravidar é a pessoa que sequestrou Daniel no parque. Deu ao menino o nome de Leonel. Logo, a tão desejada maternidade se mostra um problema: o menino é de difícil relacionamento – é autista – e Rafael nunca desejou ter filhos.

“Queria ser mãe dos filhos de Rafael, que, naqueles dias, quem sabe o que aconteceu com ele tempos atrás, e mesmo que eu perguntasse ele não dizia nada, porque ele era assim, que porra ele tinha o quê, pois algo você tem, não diga que não, eu dizia, mas ele nunca falou olha, eu tenho isso, ou sinto que, sei lá, alguma coisa, ou olha, é que seu te contasse, mas nada, e acho que ainda que eu não aceite, sou dessas mulheres que preferem estar com um homem mesmo que ele não goste delas e que sempre dizem então amanhã será  outro dia, porque tem que se fazer alguma coisa para melhorar; muito otimista ou muito entusiasmada; por isso achei que Leonel ia chegar e deixar tudo melhor, mas não posso tapar o sol com uma peneira,  que está estragado está estragado, não tem jeito.” (página 41).

O leitor poderá perceber com facilidade a diferença de linguagem deste trecho, na comparação com aquele, em que a mãe de Daniel se manifesta. Aqui, é uma linguagem solta, apenas um período em que se penduram várias orações subordinadas, separadas por vírgulas, até serem contidas pelo ponto final.

Se o livro se dedicasse a discutir a questão da maternidade, já poderia ser bom. Mas, Casas Vazias vai além. Discute a questão central da maternidade, mas nos coloca que esta tem sido uma percepção composta por uma sociedade de predominância masculina. Será esta uma postura polêmica e Brenda Navarro tem coragem de pôr o dedo na ferida.

Se, de um lado temos uma mãe que não quer ser mãe, mas é levada a isso; se, de outro, temos uma mãe que o deseja ser, mas para quem a maternidade se torna um peso quase insustentável, temos aí um questionamento sério. Ser mãe – condição essencialmente da mulher – pode ser imposta, pode ser cobrada de qualquer mulher?

Toda mulher se realiza na maternidade? Ou não, há mulheres que não se realizem com tal condição? E, ainda, por que é concebido que nem todo homem nasceu para ser pai? No livro, nem Fran, nem Rafael se importam com seus dependentes. Afinal, Fran nunca quis ter filhos e Rafael só foi nessa onda diante do desejo de sua esposa em ser mãe – aspiração tão intensa que ela sequestra Daniel por não poder gerar seu próprio filho.

A revista que acompanha sempre as edições da TAG – Experiências Literárias tem um artigo de Tatiana Cruz, que acho interessante reproduzir:

“Narrado por duas vozes que se intercalam, capítulo por capítulo, em um fluxo de memórias sem ordem cronológica e sem o filtro da maternidade idealizada modulando as falas das personagens, o que vemos são duas mulheres desempenhando o papel de mãe em meio a um contexto de miséria emocional estruturado pela misoginia, marcado nas entranhas pela violência endêmica.” (Tatiana Cruz, in Dos Desparecimentos, revista da TAG)

Casas Vazias é um livro inquietante. Contém vários trechos de grande impacto, ao correr do texto. Mas nenhum me causou mais impacto do que aquele, dito pela narradora do primeiro arco, a mãe de Daniel:

“A lactância é o reflexo das mães que querem afogar os filhos diante da impossibilidade de comê-los. Oferecemos o peito a eles não só por instinto, mas também pelo desejo obliterado de acabar com a descendência antes que seja tarde demais. De todo modo, um erro crasso.” (páginas 86/87)

Não é que a gente tenha de concordar com o dito, mas é muito forte e, com adaptação para o feminino, navega no mito de Saturno devorando seus próprios filhos. Alertado por um oráculo, o deus do tempo – Saturno para os latinos, Cronos, para os gregos – de que ele seria morto por um de seus filhos que o sucederia no trono, resolve acabar com o problema.

Mas, e o final de Casas Vazias? Este, meu caro leitor, minha cara leitora, não te conto. Digo apenas que é um final muito inteligente, muito interativo. Sei, de antemão, nem todos irão gostar do desfecho, como de resto, acontece com qualquer final.

Outros livros, outras vozes abordam esta importante questão da maternidade colocada no centro de uma sociedade misógina são apontados na revista da TAG, e os transporto para cá na intenção de que, quem deseje aprofundar no tema possa contar com algum material: Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso (2020), Resta Um, Isabela Noronha (2015), Rebentar, de Rafael Gallo (2015), Mapas para Desaparecer, de Nara Vidal (2020), Canção de Ninar, de Leïla Slimani (2016), A Filha Perdida, de Elena Ferrante (2006) e Noites Azuis, de Joan Didion (2011). Acrescento As Alegrias da Maternidade, de Buchi Emecheta, resenhado neste blogue – um livraço, recomendo! Como recomendo, de modo enfático, o livro de Brenda Navarro! 

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