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Título
original: Casas Vacias Autora:
Brenda Navarro Tradutora:
Livia Deorsola Editora:
TAG/Dublinense Edição:
s/n Copyright:
2018 ISBN:
978-65-5553-060-5 Origem:
México Gênero
Literário: Romance |
Brenda Navarro nasceu no México, no ano
de 1982. Vive em Madri, Espanha. Formou-se em Sociologia e estudou Economia
Feminista no México. Tem mestrado em Estudos de Gênero em Barcelona.
Além do
engajamento em órgãos que lutem pelos chamados direitos humanos, Brenda é
conhecida por seu envolvimento em projetos que buscam promover a escrita de
mulheres; o Enjambre Literario foi fundado por ela. Tem como objetivo divulgar
autoras na América Latina, publicando suas obras.
Brenda é autora
de contos e poemas, tendo ganhado o prêmio Tigre Juan exatamente por este Casa
Vazias – seu romance de estreia. Recentemente, publicou seu segundo
romance, Cinzas na Boca.
Adianto, caro
leitor, esta obra de Brenda Navarro me impressionou bastante. É uma obra bem
escrita, com personagens interessantes – foco nas personagens femininas, como
não podia deixar de ser. Casas Vazias é forte candidato a figurar entre
os melhores romances lidos por mim, neste ano de 2024.
Estruturalmente,
a obra se assenta em dois arcos narrativos: Fran, Nagore, Daniel e uma narradora,
mãe de Daniel; no segundo arco, estão Rafael, Leonel e outra narradora, mãe de
Leonel. Capítulo a capítulo, as duas narradoras se alternam, numa trama
bastante eficiente.
Para completar,
no primeiro arco, Nagore é filha de Amara e Xavi, mas que vive com a família da
narradora. É informado que Xavi, numa crise conjugal, matou sua esposa Amara. Nagore
é criada por Fran – irmão de Amara – e a narradora.
Os capítulos não
obedecem a uma linha temporal, o que sempre exige uma atenção a mais do leitor,
pois será seu o trabalho de “organizar” os fatos para a sequência da história.
O enredo não é
difícil. Certo dia, a narradora – mãe de Daniel – está com o menino em um
parque. Ela se distrai um breve momento, ao despedir-se do seu amante Vladimir.
Daniel, que estava brincando, desaparece. A mãe o procura pelos quatro cantos
do parque, mas nada. A partir daí, ela tem de lidar com o pouco interesse dos
policiais em descobrir o paradeiro do menino. E tem um agravante: Daniel é
autista.
“Preguei alguns
cartazes perto de casa e do parque onde Daniel desapareceu. Não faltavam
curiosos que irrompiam em meio à dor com que eu me desprendia da imagem do meu
filho. Olhavam, mas não olhavam, nunca olham e, quando o fazem, é para
reafirmar a eles mesmo que estão bem. A desgraça do outro é a obliquidade do
nosso próprio eixo. Uma vez escutei que uma mulher enfatizava a condição
autista de Daniel. Coitadinho, tomara que esteja morto, disse. E eu apertei os
lábios e as mãos, porque suas palavras eram o eco de algo que eu não podia
dizer.” (página 131)
O casal não tem
boa condição financeira. A narradora não manifesta profundo desejo de ser
mãe. Mesmo a sua relação com Nagore não é boa; passa por um casamento
tumultuado com Fran.
“Tinha pena de mim mesma, me jogava no travesseiro resmungando contra a minha sorte em casa sem janelas por causa de vá saber que ideia arquitetônica. O calor e a umidade me asfixiavam e, quando ninguém estava me vendo, eu dava tapinhas em Daniel, que, do lado de dentro, toda hora me chutava. Era uma batalha campal da qual eu sempre saía perdendo. Nagore fazia barulho perto da única janela daquele edifício escuro no qual passamos o verão antes de voltarmos ao México; várias vezes eu a escutei falando em catalão com seu boneco, quando achava que ninguém estava escutando. Enquanto isso, Fran saía para enfrentar a burocracia como alguém que fareja, sussurra, examina um mundo que lhe é proibido habitar. Tínhamos problemas tão supérfluos que éramos imperceptíveis, até mesmo uns em relação aos outros. Já nesse momento tínhamos que ter concluído que nos regozijar em nossa miséria podia ter como consequência nos tornar miseráveis diante do mundo, porque por dentro já éramos.” (página 86)
O outro arco vai
focar a outra narradora, seu filho Leonel e o marido, Rafael. Aqui, teremos
outra realidade diferente: o casal tem ótima condição financeira, habita uma
boa casa com piscina. Igualmente, o casal não vive um casamento harmonioso. A narradora
tem verdadeira fascinação por ser mãe. E ficamos sabendo que esta mãe que não
consegue engravidar é a pessoa que sequestrou Daniel no parque. Deu ao menino o
nome de Leonel. Logo, a tão desejada maternidade se mostra um problema: o
menino é de difícil relacionamento – é autista – e Rafael nunca desejou ter
filhos.
“Queria ser mãe dos filhos de Rafael, que, naqueles dias, quem sabe o que aconteceu com ele tempos atrás, e mesmo que eu perguntasse ele não dizia nada, porque ele era assim, que porra ele tinha o quê, pois algo você tem, não diga que não, eu dizia, mas ele nunca falou olha, eu tenho isso, ou sinto que, sei lá, alguma coisa, ou olha, é que seu te contasse, mas nada, e acho que ainda que eu não aceite, sou dessas mulheres que preferem estar com um homem mesmo que ele não goste delas e que sempre dizem então amanhã será outro dia, porque tem que se fazer alguma coisa para melhorar; muito otimista ou muito entusiasmada; por isso achei que Leonel ia chegar e deixar tudo melhor, mas não posso tapar o sol com uma peneira, que está estragado está estragado, não tem jeito.” (página 41).
O leitor poderá
perceber com facilidade a diferença de linguagem deste trecho, na comparação com
aquele, em que a mãe de Daniel se manifesta. Aqui, é uma linguagem solta,
apenas um período em que se penduram várias orações subordinadas, separadas por
vírgulas, até serem contidas pelo ponto final.
Se o livro se
dedicasse a discutir a questão da maternidade, já poderia ser bom. Mas, Casas
Vazias vai além. Discute a questão central da maternidade, mas nos coloca
que esta tem sido uma percepção composta por uma sociedade de predominância
masculina. Será esta uma postura polêmica e Brenda Navarro tem coragem de pôr o
dedo na ferida.
Se, de um lado
temos uma mãe que não quer ser mãe, mas é levada a isso; se, de outro, temos uma
mãe que o deseja ser, mas para quem a maternidade se torna um peso quase
insustentável, temos aí um questionamento sério. Ser mãe – condição essencialmente
da mulher – pode ser imposta, pode ser cobrada de qualquer mulher?
Toda mulher se
realiza na maternidade? Ou não, há mulheres que não se realizem com tal
condição? E, ainda, por que é concebido que nem todo homem nasceu para ser pai?
No livro, nem Fran, nem Rafael se importam com seus dependentes. Afinal, Fran
nunca quis ter filhos e Rafael só foi nessa onda diante do desejo de sua esposa
em ser mãe – aspiração tão intensa que ela sequestra Daniel por não poder gerar
seu próprio filho.
A revista que
acompanha sempre as edições da TAG – Experiências Literárias tem um artigo de
Tatiana Cruz, que acho interessante reproduzir:
“Narrado por duas vozes que se intercalam, capítulo por capítulo, em um fluxo de memórias sem ordem cronológica e sem o filtro da maternidade idealizada modulando as falas das personagens, o que vemos são duas mulheres desempenhando o papel de mãe em meio a um contexto de miséria emocional estruturado pela misoginia, marcado nas entranhas pela violência endêmica.” (Tatiana Cruz, in Dos Desparecimentos, revista da TAG)
Casas Vazias
é um livro inquietante. Contém vários trechos de grande impacto, ao correr do
texto. Mas nenhum me causou mais impacto do que aquele, dito pela narradora do
primeiro arco, a mãe de Daniel:
“A lactância é o reflexo das mães que querem afogar os filhos diante da impossibilidade de comê-los. Oferecemos o peito a eles não só por instinto, mas também pelo desejo obliterado de acabar com a descendência antes que seja tarde demais. De todo modo, um erro crasso.” (páginas 86/87)
Não é que a gente
tenha de concordar com o dito, mas é muito forte e, com adaptação para o
feminino, navega no mito de Saturno devorando seus próprios filhos. Alertado
por um oráculo, o deus do tempo – Saturno para os latinos, Cronos, para os
gregos – de que ele seria morto por um de seus filhos que o sucederia no trono,
resolve acabar com o problema.
Mas, e o final de
Casas Vazias? Este, meu caro leitor, minha cara leitora, não te
conto. Digo apenas que é um final muito inteligente, muito interativo. Sei, de
antemão, nem todos irão gostar do desfecho, como de resto, acontece com
qualquer final.
Outros livros, outras vozes abordam esta importante questão da maternidade colocada no centro de uma sociedade misógina são apontados na revista da TAG, e os transporto para cá na intenção de que, quem deseje aprofundar no tema possa contar com algum material: Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso (2020), Resta Um, Isabela Noronha (2015), Rebentar, de Rafael Gallo (2015), Mapas para Desaparecer, de Nara Vidal (2020), Canção de Ninar, de Leïla Slimani (2016), A Filha Perdida, de Elena Ferrante (2006) e Noites Azuis, de Joan Didion (2011). Acrescento As Alegrias da Maternidade, de Buchi Emecheta, resenhado neste blogue – um livraço, recomendo! Como recomendo, de modo enfático, o livro de Brenda Navarro!
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